terça-feira, 30 de agosto de 2022

Tensão e limites

Em Oh! My Sunshine Night o casal secundário, Phayu e Rain, interpretados por Noh e Peterpan respectivamente, tem chamado bastante atenção pela tensão que suas cenas passam. 

Embora tenham crescido juntos, Phayu é filho do mordomo da família de Rain e trabalha para eles como um tipo de motorista e assistente dos filhos, além de um emprego de meio período numa churrascaria. Rain o trata como um amigo próximo mas Phayu se recusa a aceitar isso, sempre se colocando na posição de servo e pronto a servir. Seu sentimento por Rain é nítido, e ele demonstra isso fazendo o seu trabalho com perfeição, se preocupando com o outro acima de tudo. Infelizmente ambos não conseguem ver um futuro em que fiquem juntos.

Phayu pra começo de conversa não se sente a altura do outro, e seu pai reforça isso com um discurso de que as coisas tem sua própria ordem que não deve ser quebrada jamais, ele vê seu sentimento com algo errado, e foge sempre. Rain também se sente preso ao compromisso de assumir os negócios da família, o que significa não ter tempo para um relacionamento e, futuramente, vai significar um casamento que envolva os interesses da empresa, no entanto, ele já age de modo a deixar claro para o outro o que sente. Como as repetidas vezes que dorme no quarto do amigo, o recorrente discurso de que Phayu deve agir conforme seu coração e não apenas seguir as suas ordens, na verdade ele quer dizer que que prefere que Phayu cuide dele porque o ama e não porque é seu dever como seu servo. 

Mas os limites que os outros colocaram sobre eles é pesado demais, seus pais praticamente extirparam deles a força pra superar esse fardo. Na viagem Rain deixa bem claro que tem interesse no outro, que foge mais uma vez e prefere se resolver sozinho no banheiro ao invés de ficar na cama com ele e dar vasão ao que sentem. Na noite anterior ele pensa bem antes de deitar na cama com Rain (que armou a situação) e, quando cede, sente uma tensão crescente ao ser tocado pelo outro. Ele luta constantemente contra o que sente e é uma tortura porque ele quer fazer o que for possível para ajudar seu mestre, não raramente confundindo seu dever com um cuidado e atenção especiais dos seus sentimentos. 

Essa visão melancólica de um relacionamento impossível mas que eles não conseguem ignorar pela força dos sentimentos é bela e traz em si o peso de uma experiência real: a de que muitas e muitas vezes apenas a força do que sentimos não é suficiente para superar as dificuldades ou, ainda, que o nosso medo de cruzar a linha nos paralisa a torna a coisa impossível. Em ambos os casos a dor de falhar é o que fica, além de um coração machucado e ferido demais para seguir em frente. Cada um disposto a sacrificar o próprio sentimento em nome do bem estar e do futuro do outro. Atitude nobre, sim, mas igualmente dolorosa. 

Cento e oitenta graus

Uma breve reflexão acerca de arte e entretenimento. Bem, para começo de conversa, um dos elementos que podem ser usados pra distinguir ambos é a objetividade de cada um. Uma obra de arte se destaca assim que os olhos a tocam e ela nos fala proporcionando um diálogo entre o artista, a obra e o espectador, ainda que esse último não consiga expressar em palavras o que ele sente, ele sente mesmo assim. É isso que acontece ao entrar na Capela Sistina, ao ouvir uma sinfonia de Beethoven ou vendo um quadro de Caravaggio, essas peças iniciam um longo diálogo com o quem as vê que pode durar indefinidamente. O entretenimento é apenas passagem de tempo sem uma profundidade maior, e a arte de verdade pode servir como entretenimento, como é o caso do diletantes, mas o entretenimento não tem a profundidade da arte.. E tudo bem ouvir o álbum daquela banda que você gosta, eu faço isso bastante também, não sempre, mas o que eu procuro de verdade é sempre algo que seja capaz de dialogar comigo de algum modo.

Guardadas as devidas proporções para com as obras que citei anteriormente, uma série tem me chamado atenção nas últimas semanas pelo nível do diálogo que ela propõe. 180 Degree Longitude Passes Through Us traz uma história intimista e melancólica de um jovem que perdeu o pai muito cedo e sua mãe, na época já divorciada, o mandou para um internato. Agora, de volta a morar com ela eles têm uma relação de amizade muito forte mas entram em atrito com frequência devido as suas visões diversas de mundo. Ele se encontra então com um antigo amigo de seus pais que tem mais envolvimento com eles do que aparenta. Hospedados na casa desse homem a história começa a se desenrolar enquanto vemos as perspectivas distintas se cruzarem.

Esse é o ponto que quero destacar, já que isso não é uma resenha: cada um dos três protagonistas tem uma visão de mundo e um peso diferente para o passado com Siam, o pai do protagonista Wang. 

O jovem Wang é idealista e sonhador, muito próximo de seu pai, ele herdou dele um pequeno globo terrestre e o sonho de viajar de norte a sul do mundo, algo que pode ser visto de modo prático e objetivo mas que também é um símbolo para alguém que quer viver o novo, experimentar o desconhecido e, principalmente, cruzar fronteiras. Essa é a marca principal que diferencia os três personagens. In, o amigo da família a quem Wang considera como um tipo de tio, é o completo oposto, ele foi estudar fora e trabalhou como professor, mas acabou morando sozinho numa mansão no interior, longe de problemas como limites e fronteiras, dos quais ele se afasta, preferindo a firmeza e a segurança que a ordem lhe dá. A mãe de Wang se encontra entre essas duas perspectivas, ela é uma diretora famosa, produz histórias que não são novas mas releituras de clássicos e nisso se sai bem, ela parece ir adiante, romper as fronteiras, mas no fim permanece onde está. 

A relação de Wang e In é de uma tensão imensa. É nítido que ele vê no amigo dos pai uma figura paterna, de posição firme, que ele mesmo questiona algumas vezes. Mas ele também se sente atraído pelo homem que é um completo mistério, embora se apresente simples e sem grandes ambições. Como Wang mesmo descreve, In é às vezes quente como o sol, como um livro complicado ou uma pintura abstrata, onde seus pensamentos reais estão escondidos atrás de pinceladas disformes e pouco ordenadas. 

No terceiro episódio In define, num jogo onde todos deveriam falar sobre seus ídolos, sua admiração para com a baleia solitária de 52 hertz que, produzindo um som único não pode ser identificada por nenhum outro de sua espécie. Ele e  In começam a especular se ela seria solitária, e por isso triste, ou se essa era apenas a sua forma de ser. Wang se diz solitário e In o consola dizendo que eles não são como a baleia. No entanto o jovem diz que In se fecha como se ele o fosse, e emite sons como se ninguém os captasse, mas Wang o entende, e entende que ele prefere viver sozinho, mesmo emitindo os sons em busca de companhia que ninguém vai ouvir. 

A forma como esse assunto complexo é tratado é de uma beleza notável. A forma como os diálogos têm tantas camadas de interpretação assim como os gestos (o toque de Wang limpando o peito de In após a construção da ponte, In colocando o morango na boca de Wang ou abraçando-o para colocá-lo na cama), os olhares, que se demoram em cenas simples mas de uma profundidade incrível porque tudo acontece sempre em mais de um plano, o exterior onde explodem as emoções em choros ou risadas provocadas pelo vinho e o interior, onde os dilemas são dialetizados. A já citada cena do morango como símbolo do fruto proibido, outra barreira... Esses pequenos gestos e ações revelam uma multidão de sentimentos, incertezas, desejo, revolta, medo, coragem... Tudo condensado em pequenos símbolos de expressão corporal e facial.

A revolta de Wang com sua mãe que se esconde para não mudar ou encarar a realidade e a sua crescente curiosidade e tensão romântica e sensual por In, encarnação das fronteiras que seu pai enfrentou e que ele mesmo enfrenta e o que fazem se aproximar dele como um imã aponta para o polo magnético. 

A figura do globo terrestre é de um simbolismo poderoso, pois ela contém em si as distâncias e fronteiras num objeto único, ao mesmo tempo que as direções também estão ali, o que fica evidente na cena em que Wang decide atravessar o pequeno rio andando, enquanto In vai pro outro lado e sai de cena. Um decide cruzar a fronteira natural e o outro permanece desse lado e ainda se afasta mais do que poderia levá-lo adiante. 

É quase certo afirmar que In tinha um peso no relacionamento da mãe de Wang, Sasivimol, com Siam. Mesmo estando fora do país esse peso foi suficiente para acabar em divórcio e numa bebedeira que culminou no acidente que matou o pai. Qualquer passo em direção a esse passado, além do já absurdo de ter a ex do seu grande amigo e seu filho ali em sua casa, é um convite a cruzar de novo uma fronteira que existe ali pra manter uma ordem. E temos mais desse simbolismo: os diálogos através das grades no quadro e as camas em posições opostas. 

Tudo pode ser interpretado, dialogado. E isso porque é apenas uma série BL indie, não é uma obra de Shakespeare ou Dante e, mesmo assim, proporciona, dentro das suas limitações, um diálogo. Uma série dessas não pode ser vista apenas como entretenimento, ou melhor, até pode, mas seria desperdiçar todo o potencial que ela tem de tornar mais rico o seu imaginário e, por conseguinte, a sua experiência humana e capacidade de compreender agir sobre o mundo. 

Aqui essa obra tem o mesmo papel da literatura que é, nas palavras do Prof. Olavo de Carvalho: "A formação literária é a essência da educação. É a literatura que dá o senso da significação múltipla das palavras. Significação e intenção que mudam conforme a situação, a entonação, o lugar, a hora... É aí que se pega o senso da infinita maleabilidade da linguagem. Não se pode adquirir isso lendo livros de ciência, porque na ciência se dá o contrário, na ciência as palavras têm significados fixos, uniformes. Lendo apenas livros de ciência nunca se vai aprender a ler." (COF Aula 500)

sábado, 27 de agosto de 2022

Recomeçar

Hoje foi mais um dia atípico por aqui. Ainda estamos de acampados na casa da minha prima mas começamos a maratona de olhar casas pra alugar. Depois de semanas olhando casas online nós escolhemos algumas e fomos visitar. Uma muito longe, outra muito distante, a outra um pouco pequena, outra a imobiliária exigia muita documentação, enfim, foi um dia longo. Quando a gente já estava bem cansado de andar por metade da cidade, sem exagero, resolvemos ir numa casa que minha prima tinha visitado semanas atrás e que havíamos descartado por ser muito pequena. E nesse meio tempo o caminhão chegou com a mudança e inclusive chegamos a tirar algumas coisas dele. 

Fomos até a tal casa, eu já sem muita esperança e só querendo fechar qualquer negócio pra não precisar descarregar a mudança inteira aqui e depois levar pra outro lugar. Surpreendentemente todos gostaram da casa, que fica na parte de cima de um sobrado, e acabamos por fechar negócio. Na verdade não foi tão simples já que uma pessoa estava na fila para alugar antes mas, felizmente pra gente, o locatário logo ligou e disse que poderíamos ficar com a casa. 

A sensação de alívio foi grande, mesmo sabendo que por conta da disposição dos móveis no caminhão a gente ainda vai ter de descarregar tudo aqui, separar as nossas coisas das da minha tia e só depois levar as nossas coisas pra lá, já é uma tranquilidade maior saber que não precisamos mais nos preocupar em procurar um lugar pra ficar. Isso já é o começo de uma tão esperada reestruturação, já que tendo uma casa podemos saber onde procurar trabalho, podemos nos estabelecer antes de realmente conhecer o lugar. É realmente um alívio.

Bom, enquanto o cansaço continua batendo forte esses dias as coisas estão um pouco menos divagantes, o objetivismo é um efeito da sensação de urgência e isso é um bom sinal: não me perder em palavras demais talvez signifique que a realidade está sendo mais importante do que o subjetivismo um tanto exagerado de sempre que tantas vezes parece me cegar, como por exemplo nos últimos dias em que deixei me levar pela insegurança ao invés de confiar na Providência. 

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As almas que caminham na luz cantam cânticos de luz; as que caminham nas trevas cantam o cântico das trevas. Deixai cantar umas e às outras , até ao fim, a parte e o motete que Deus lhes destina. Quando é Deus a encher a alma nada temos nós que ajuntar, mas deixar correr as gotas desse fel das amarguras divinas. Assim faziam os profetas Jeremias e Ezequiel: todas as lágrimas não eram senão gemidos e suspiros, só encontrando consolação nesses continuados lamentos. Quem tivesse detido o curso dessas lágrimas, ter-nos-ia privado de alguns dos trechos mais belos das Sagradas Escrituras. Só o espírito que produz desolação é capaz de dar consolação: são águas diferentes, mas que brotam da mesma nascente divina. 

Quando Deus atemoriza uma alma, ela treme; quando a ameaça, ela sente-se tomada de pavor. Deixai desenvolver-se a operação divina, que em toda a sua extensão traz consigo o mal e o remédio. Chorai, queridas almas, tremei na vossa inquietação e agonia; não façais esforços para mudar esses divinos temores e esses celestes gemidos. No fundo do vosso ser recebei os riachos desse mar que inundou a alma santa de Jesus. Ide sempre para diante, semeando lágrimas, enquanto o sopro da graça as fizer correr; e insensivelmente o mesmo sopro as fará secar. As nuvens dissipar-se-ão, o sol voltará a espalhar a sua luz, a primavera cobrir-vos-á de flores, e na sequência do vosso abandono encontrareis a admirável variedade, produzida pela ação divina em toda a sua extensão. (Jean-Pierre de Caussade, O Abandono à Providência Divina)

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Hoje foi mais um dia exaustivo. O volume de coisas na mudança é absurdo e todos estávamos extremamente cansados quando acabamos, e isso porque levamos um dia inteiro carregando as coisas. Depois de tudo colocado mais ou menos dentro de casa, e muita coisa ainda do lado de fora, nós finalmente conseguimos começar a organizar um pouco. É um trabalho demorado, tirar as coisas das caixas, limpar, ver se ficam bem num lugar, tentar colocar em outro, mas aos poucos as coisas vão se ajeitando.

Infelizmente eu não consegui ajudar muito, meu corpo simplesmente chegou no limite, eu sentei e não conseguia mais levantar, não conseguia nem falar direito, e então eu precisei de uma pausa. Não pude ser útil e isso é tudo.

Cheguei naquela fase da mudança que o cansaço e a fadiga cobram uma taxa do meu corpo e eu simplesmente desligo. Amanhã provavelmente vou conseguir acordar com mais disposição e ai sim começar a colocar as coisas no lugar onde elas vão ficar. Pouco a pouco a casa vai ganhando forma, assim também a mente vai se organizando e colocando um pouco mais de ordem nesses dias caóticos. 

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Consegui, como disse, acordar com mais ânimo e agora sim consigo ver o resultado do esforço da última semana. Os cômodos já estão mais ou menos como deverão ficar e já começamos aqueles ajustes que nos permitirão arrumas os pequenos detalhes quando o grosso dos móveis e objetos já estiverem onde devem estar. Essa parte é reconfortante, sentar cansado agora num fim de tarde, com a brisa fresca do mar entrando pela janela, e olhar pro esforço de dias e de várias pessoas e ver que as coisas estão tomando seu lugar. 

Meus livros foram acomodados nas estantes, quase tudo no meu armário está no devido lugar (o mais próximo possível de como estava na outra casa), a internet foi instalada e a televisão e o home theater também, o que significa que essa noite eu já poderei assistir meus BLs na casa nova e não apenas na tela do computador com fone. Isso já é sinal de que as coisas estão caminhando e, embora cansado, eu estou feliz e otimista com tudo isso. Agora não adianta mais o temor de antes, já passou, ficou algumas centenas de quilômetros para trás, preciso agora ver o sol daqui como um novo sol, que voltou a brilhar depois de longas trevas. Até consegui brincar com a situação, dizendo que agora eu sou finalmente uma gay chão de taco morando numa ilha. É, isso é uma coisa boa. Finalmente recomeçar. 

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Primeiras Impressões

Pois bem, após breves horas de voo e mais algumas na estrada finalmente chegamos em terras catarinenses: estamos em Joinville, como já há um bom tempo desejávamos. Ainda não consegui organizar o pensamento o suficiente para dizer quais são as minhas primeiras impressões, então vou tentar fazer isso aqui. 

De qualquer modo todo julgamento vai ser influenciado pelo peso do cansaço acumulado dos últimos dias. Não dormi direito à noite e o esforço demasiado me pegaram com força mas ter chegado aqui não significa que eu possa descansar, antes disso, ainda precisamos encontrar uma casa aqui e parece que ninguém está atento pra urgência dessa necessidade. Sinceramente eu não consigo entender como minha família pode achar minimamente aceitável guardar a mudança inteira num galpão indefinidamente até conseguir uma casa aqui. É mais um caso claro de falta de senso das proporções onde o crivo do bom senso foi simplesmente abandonado. 

Pois bem, dito isto, eu caminhei um pouco por algumas ruas, o pessoal estava um pouco ansioso e queria ver alguma coisa. A primeira diferença óbvia é que as casas seguem mais ou menos os mesmos padrões, o que dá ao todo uma unidade, mesmo que tenha crescido de modo orgânico, e isso é fácil de perceber vendo os polos comerciais que se formaram, a cidade não é aquele caos que era no Goiás. Quase todo mundo tem um jardim e isso por si já deixa as coisas mais bonitas. 

Visitei uma igreja uma ou duas ruas acima da cama em que estou ficando, por fora é até bonita mas dentro ela tem aquela pegada inconfundível da Teologia da Libertação, com uma pintura exagerada no presbitério, nada como um afresco ou um vitral, um altar nu formato esquisito e um menorá na frente do ambão. Sinceramente nunca entendi a necessidade de um menorá num presbitério, mas tudo bem, a igreja que eu vou frequentar aqui vai depender da casa que eu conseguir. 

Eu realmente estou cansado demais pra dizer mais do que isso, além do que ainda estou preocupado com a questão da casa pra conseguir me distrair, e ainda tem o barulho inevitável de uma casa com nove pessoas. Infelizmente não foi uma decisão prudente decidir vir sem antes ter preparado o que devia ter sido feito. Mas bom, de todo modo as coisas parecem que têm de ser assim, e isso significa que os fatos devem ser aceitos em sua totalidade como a linguagem própria da realidade e, encarando-a de frente, podemos tentar agir sobre ela de alguma forma. 

Essa foi uma reflexão que fiz durante os momentos de espera entre uma condução e outra. Enquanto olhava pro céu pelos grandes vidros do aeroporto eu via as nuvens passar, os aviões imensos e como as pessoas iam e vinham para todos os lugares pelo céu. Ao contrário do que alguém poderia dizer isso mostra não um desafio a natureza mas uma concordância a ela e a sua força para assim, conseguir agir sobre ela. 

Não veja isso com um pessimismo que eu sei que é claro nas minhas palavras, mas talvez seja apenas efeito do cansaço e da preocupação, eu ainda não consigo confiar o suficiente pra me entregar a ponto de fechar os olhos tranquilamente e não me preocupar. Preciso melhorar isso aqui em mim. 

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Peixinho

Fui à missa como de costume, sabendo que é a última que participo aqui em Valparaíso, próximo domingo já estarei em Santa Catarina, e estava sentadinho no banco rezando o terço quando eu vi uma figura que eu não via já há algum tempo e então eu senti o coração errar uma batida. 

O sol estava tocando meu rosto, e eu fiquei com preguiça de arrumar o cabelo bagunçado pelo vento no caminho até a igreja, e então ele passou com uma camisa laranja, e a luz fazendo brilhar a sua pele morena e o sorriso doce. Eu nem percebi e já estava suspirando. Já fazia muito tempo que não pensava nele, resignado em esquecer eu o abandonei num lugar profundo do coração. E então a luz do sol iluminou esse lugar escondido, um jardim que eu já não visitava há muito tempo. 

Não me aproximei, e saí rapidamente quando acabou a celebração. Depois que acabou a missa eu me dei conta da presença dele de novo e então decidi que voltaria a ignorar aquela luz que brilhava intensamente num sorriso já esquecido e deixa-lo de novo num profundo onde ninguém vê, nem eu mesmo, e que algum dia vai simplesmente deixar de existir ou ser iluminado por uma luz diferente, revelando flores que eu há muito já não via e, ao me sentar do lado da cristalina fonte que ali corre, não mais ficarei hipnotizado pelo nado daquele peixinho que ali um dia habitou. 

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Hoje foi atipicamente cansativo. Desde cedo embalando coisas e na confusão de carregar o caminhão da mudança. A loucura foi total, é claro, e então a mudança oficialmente começou. Agora eu estou na casa de uma tia e amanhã logo cedo vamos pro aeroporto, em algumas horas estarei de vez em Santa Catarina. A ficha ainda não caiu, me parece apenas uma viagem, um dia diferente. Ainda não entendi que possivelmente nunca mais virei aqui ou, se vir, será apenas brevemente. Mas é uma boa experiência, reconheço, e agora me sinto até mesmo um pouco emotivo, talvez até feliz, e amanhã, durante o voo e o tempo no ônibus talvez eu consiga sentir mais essa transição até finalmente chegar lá. Estou otimista, por incrível que pareça, graças aos muitos votos de felicidade que recebi, de amigos e até conhecidos, e já começo a sentir um pouquinho da responsabilidade que será ter de recomeçar e, a partir de agora, vai depender de muito do meu esforço em conseguir fazer dessa uma oportunidade de mudar de vida, sair dessa letargia que me dominou nos últimos anos. Não é como se eu fosse ficar curado de uma hora pra outra, eu sei que isso não vai acontecer e os momentos de noite escura podem, e provavelmente vão, durar pra sempre, mas isso também significa que algo mudando no exterior pode mudar dentro de mim. 

Estava cansado demais para sentir que me despedia de Valparaíso, só sinto um pouco disso agora mais quieto e quando o cansaço vem me cobrando uma taxa de fadiga, mas isso aconteceu, eu dei adeus ao lugar onde tanta coisa aconteceu, sejam boas ou ruins, onde eu só soube existir ali, e agora eu vou existir em outro lugar, distante, e é como se um tema diferente fosse executado por uma orquestra invisível, e esse novo tema abre um novo movimento da minha sinfonia. Até ontem eu ouvia um triste clarinete contar a minha história, e agora ela começa a tomar um ritmo parecido com o de uma valsa, como na Sexta Sinfonia de Tchaikovsky, e é um movimento mais agitado, com uma ansiedade crescente porém não daquelas aterradoras, mas algo sutil que vem me impulsionando. É, e isso é bom, eu não sabia que iria sentir algo novo um dia. 

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Até breve!

"Ó Senhor como é bom ser teu povo, ser Igreja e viver como irmãos! 
Pelo amor que nos tens eu te louvo. Por te dares a nós neste pão!"

Em alguns anos de caminhada na Igreja esse foi um dos trechos de música que mais me marcou, e ironicamente eu nunca o cantei numa missa. Mas ele reflete bem a alegria que eu senti ao começar a servir, e vem refletindo esse mesmo prazer através do tempo que brevemente passou. 

Ontem eu fui à uma despedida na Paróquia Sagrada Família no Jardim Ipanema, às vésperas da minha mudança para Santa Catarina, para um recomeço. Embora a minha conversão tenha se dado na Paróquia São Francisco de Assis, no Valparaíso I, foi no Ipanema que minha caminhada ganhou rumos mais certos. 

Foi lá que eu aprendi a viver em comunidade, e as dificuldades que isso significa, bem como as alegrias, como momentos assim. Me lembro de muitas, muitas mesmo, missas em que acabei extremamente cansado, dias sem comer, preparando celebrações por horas mas com a sensação de dever comprido numa bela missa ou em outros eventos, saindo de casa cedo e chegando de madrugada, maratonas de missas, formações. Me emocionei no batizado de um senhor de mais de noventa anos, chorei na missa de sétimo dia de um amigo do grupo de jovens, escutei broncas por deslizes, algumas questões sérias chegaram ao bispo, enfim, muita coisa. Vi muitos e muitos aspectos da Igreja ali. Conheci pessoas que dão a vida pelo mínimo dos trabalhos, pessoas que não entenderam bem o que estão fazendo ali, e outras que nem queriam estar, mas de todo modo estamos no mesmo barco, a barca de Pedro. 

Foram oito anos que passaram rápido, mas que renderam tantas e tantas experiências. Foi nessa pequena comunidade, que quando eu cheguei se chamava Quase Paróquia Nossa Senhora de Fátima (em transição do desmembramento da Paróquia São Maximiliano e criação da nova paróquia) que eu fui catequista, cerimoniário, leitor, coordenador, palestrante, secretário, músico, consultor e pentelho. Tive de estudar muito para conseguir fazer alguma coisa, desde servir o altar numa missa simples de semana só comigo, o padre e uma fiel até preparar uma Solene Vigília Pascal para mais de trezentos fiéis e com mais de 50 oficiantes entre coroinhas, cerimoniários, seminaristas e músicos. Foram muitas novenas, trezenas, tríduos, festas, vigílias, terços, batizados, casamentos, adoração ao Santíssimo Sacramento, faxinas na sacristia, eu nem consigo lembrar de tudo, mas tudo acabou deixando uma marca em mim. 

Essa marca é a prova de que a Igreja é o corpo de Cristo, e por isso não há nenhum problema quando digo que a coisa mais importante pra mim é a Igreja porque dizer isso é dizer que a coisa mais importante pra mim é o próprio Cristo, da qual ele é cabeça inseparável. Aprendi a amar a Cristo por causa da Igreja que a Ele me apresentou e, se posso fazer algo assim, digo como Santo Agostinho que não acreditaria no Evangelho se a isso não me levasse a Igreja de Roma. Foi por ver Cristo na beleza da liturgia e no esforço dos fiéis que eu vi a beleza de Deus e seu sacrifício por mim, e quantas vezes eu fui ingrato com Ele. Quantas vezes eu poderia ter feito mais e melhor e não o fiz, que ele me perdoe por isso. Mas o que eu fiz, desde que cheguei, foi com carinho, todo o carinho, mesmo que algumas vezes não entendesse o que estava fazendo. 

Agora carrego comigo essas lembranças, esse amor, as amizades, os sorrisos, os aprendizados e digo aos povo da Sagrada Família do Valparaíso: até breve!

domingo, 21 de agosto de 2022

Resenha - My Secret Love

Contém SPOILERS!

Depois de algumas polêmicas com a última empresa e de ficar afastado das telas, mas não dos fãs, por um tempo, Earth Teerapat (2Moons2) está de volto como protagonista numa comédia romântica que chegou tímida mas se revelou uma excelente produção. 

Num ano com tantos lançamentos excelentes fica até difícil classificar as séries mas é certo que além daquelas que chamaram mais a atenção do pessoal também tem muitas que valem ser assistidas mas que acabam passando quase despercebidas. Essa foi uma produção que acabou rompendo a bolha e chegando em muitos fãs que até então só estavam dando atenção para as grandes produções. 


My Secret Love conta a história de dois grupos de amigos que tem experiências completamente diferentes na universidade e que acabam tendo de trabalhar juntos. Kim (Earth Teerapat) é o presidente do conselho estudantil, sério e responsável, e acaba entrando em conflito com Mek (Fluk Chatchawan), um youtuber famoso pelas suas pegadinhas. Mek resolve mexer com Kim e o resultado é uma briga que acaba envolvendo a imagem da universidade, como punição a diretora exige que os alunos do conselho e os youtubers produzam um conteúdo online para melhorar a visão da instituição com Mek e Kim como um shipp BL! Mesmo se odiando eles precisam fingir se gostar e é claro que dessa convivência forçada vai sair algo a mais.


Os amigos deles também começam a se aproximar mais. Descobrimos o longo relacionamento secreto entre Lee (Daniel Chang de Call It What You Want) e Park (Bew Sitthikarn) e também a paixão platônica de Bomb (Yut Kritsadayut de I am Your King 2) e Bear (Por Patsakon), o colega de tela de Mek no canal.  Temos ainda Tim (Boat Yongyut), uma outra celebridade da internet por quem Kim tem uma quedinha e Mai (Kenji Sivarut) seu melhor amigo e secretário, que já se declarou uma vez anos atrás mas que continua gostando do amigo mesmo seu relacionamento tendo ficado estagnado na amizade.

A série ganhou o gosto do fandom ao apresentar um bom desenvolvimento com todos os casais. Todos têm o seu plot desenvolvimento, mesmo alguns sendo mais complexos do que outro. O roteiro e a direção fluíram muito bem entre as cenas cômicas e as mais românticas e até as mais dramáticas com naturalidade e fluidez. A química entre os personagens é deliciosa e é simplesmente impossível não se apaixonar pelos dois grupos de amigos que, mesmo com personalidades tão distintas, se dão tão bem e não demoram a virar um grupo só. 

Mek é esquentadinho e tem péssimas ideias, mas tem um lado sensível que ele esconde de todos, enquanto Kim é sincero porém desiludido, tendo um conflito com seus sentimentos mas se esforçando pra se entender o mais rápido possível. Lee e Park estão juntos há muito tempo e precisam decidir se vão continuar escondendo isso de todos, ambos com seus medos e inseguranças e também um sentimentos construído por esses anos. Bomb conquista Bear pela sua admiração, ajudando o outro quando ele entra em conflito sobre sua carreira como youtuber e acaba encontrando mais do que apenas um amigo. Tim e Mai construíram uma relação de dependência através dos anos mas Mai acaba se sentindo menosprezado quando Tim parece se interessar por Kim, e então ele começa a se afastar de Tim, fazendo-o perceber seus verdadeiros sentimentos. 

Os relacionamentos são mostrados com carinho e delicadeza, seja nos momentos românticos como quando surge algum desentendimento entre os meninos. A forma como todos são apaixonados e tem sua própria forma de mostrar isso é uma graça. Mek é gentil, Kim cuidadoso, Bomb aquele que ajuda sempre, Bear o que faz biquinho, Lee e Park tem um fogo que não apaga e Tim e Mai descobrem que o carinho e consideração que tinham pela amizade um do outro já era sinal do seu amor. Logo os meninos passam a ser fofos e carinhosos uns com os outros e o amor domina a atmosfera da produção que ganha um ar mais fofo a partir da segunda metade. O final então é de deixar o coração quentinho de tanto amor!

Como disse, com um ótimo desenvolvimento e um roteiro simples e cativantes todos tiveram seu tempo para brilhar e todos os casais ficaram bem em tela. A impressão que fica é que todos merecem ser protagonistas da sua própria série, de tão boa que é a química entre o grupo todo. Com uma trilha sonora simples, mas que conta com uma faixa do Jeff Satur o que por si só já é muito bom. Combinando elementos de comédia, drama e romance na medida certa a série foi uma excelente surpresa nesse segundo semestre e, especialmente pro Earth, marcou um retorno aos BLs mais do que merecido para um ator tão carismático e talentoso. 

Nota: 9,5/10

sábado, 20 de agosto de 2022

Formas de Beleza

Não são raras as vezes que eu me pego invejando aquelas vidas, que passam nas telas das redes sociais, e que parecem simplesmente perfeitas. E muitas vezes já falei sobre isso mas este que vos escreve tem claramente uma deficiência de percepção que o força a continuar tendo as mesmas impressões repetidas vezes, quase que numa tendência masoquista em ficar vendo e revendo coisas que parecem tão distantes e irreais. 

Mas eu continuo encantado com aqueles que ostentam a perfeição física que se pode alcançar. Os belos rostos, as peles perfeitas, cabelos em bom estado, pessoas que poderiam facilmente se dizer anjos e as quais eu não negaria o título de as melhores entre nós pois, sendo o belo um sinal daquilo que é bom elas refletem o que há de melhor no mundo. Sim eu sei que filosoficamente é errado e absurdo afirmar algo desse tipo, mas essa ainda é a impressão que eu tenho. 

Há alguns dias um ator que eu sigo já há certo tempo retornou as suas atividades após uma breve pausa para cuidar de sua saúde mental, trata-se de Jimmy Karn, que iria estrelar em breve mais um BL ao lado do seu parceiro Tommy. Acontece que ele nem retornou direito e anunciou a sua saída permanentemente do projeto, bem como a saída do seu parceiro, e que não estava em condições de continuar a trabalhar, indicando uma pausa maior dessa vez. Em nota em rede social ele deu uma declaração preocupante ao dizer: "Sempre me arrependerei disso em minha vida, desculpa mas não posso continuar. Tudo está cada vez mais difícil, é mais do que posso lidar. O fracasso e a culpa estarão sempre comigo, deve ser o castigo que mereço. Me desculpem."

É assustador que alguém como ele passe por isso, mas eu posso imaginar a pressão que ele sentiu: dezenas de eventos por semana, ter de sempre sorrir e ser educado com todos, horas e horas de exposição, práticas intermináveis além de longas horas de gravação ou sessões de fotografia. Claro, é o trabalho dele, mas nem todos suportam o mesmo volume de trabalho, além de que devem existir outras questões íntimas envolvidas, o que só piora tudo. 

Mas, a despeito dos meus votos de que ele fique bem e se recupere, voltando com aquele sorriso doce e semblante tranquilo que sempre teve, eu ainda continuo insistindo em admirar essa vida. 

Continuo abrindo as redes sociais e vendo as belas fotos em locações espetaculares, com roupas de marca, maquiagem perfeita e fico hipnotizado por essa beleza, ela me encanta de tal modo que eu me torno prisioneiro de sua magia. 

Sei bem que isso trata-se de um arremedo de beleza, não é a beleza em si ainda, pois a beleza verdadeira não aprisiona, antes disso, ela nos torna cada vez mais livres para ver o que é de fato bom no mundo, e essa beleza me cega para a escravidão que se segue dela. 

Também percebo elementos de baixíssimo desenvolvimento de personalidade, já que para desejar tanto essa beleza eu acabo por colocar a validação do outro como critério único do sucesso, quando na realidade a realização do homem está na compreensão dos elementos próprios da consciência individual, está no desenvolvimento mesmo do indivíduo mas que nada tem que ver com a validação do outro, pelo contrário, muitas vezes passa completamente despercebida pelo outro porque se dá na intimidade do ser, na sua alma imortal, ou seja, entre a pessoa e Deus, numa sinceridade absoluta. 

Preciso melhorar isso em mim, admirar a beleza sem que ela me aprisione e apenas quando ela me conduz a verdade e a bondade.

Termino mais uma vez desejando que Jimmy volte bem, e que ele consiga transmitir mais uma vez aquela alegria e gentileza que sempre foram tão características dele. Meus sinceros votos de melhoras!

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Oitenta e sete


– Cada um de nós está, no final, sozinho. – disse Joe.
– Como assim?
– Quero dizer, não importa quão bem a coisa esteja indo no sexo, no amor ou em ambos, chega um dia em que tudo acaba.
– Isso é triste – disse Edna.
– Claro que é. Então chega o dia em que tudo acaba. Ou há uma separação ou a coisa toda se resolve em uma trégua: duas pessoas vivendo juntas sem sentir nada. Acho que ficar sozinho é melhor.
(Charles Bukowski - Ao sul de lugar nenhum)

Eles não têm ideia, nem sequer podem imaginar. Minha mãe entrou no meu quarto hoje e, me vendo deitado, disse que eu deveria me animar mais, arrumar as coisas pra mudança em alguns dias. Disse que eu não posso ficar desanimado assim, que eu preciso reagir. Ela não imagina que eu quase não amanheci o o dia de hoje vivo, que eu já não aguentava mais e que não queria chegar ao fim da noite de ontem, e estava decidido a dar cabo disso de uma vez por todas. Estava tomado de pânico, o desespero me rodeava como fera prestes a me devorar, não via nenhuma luz, não ouvia nenhuma voz, era tudo escuridão e silêncio.

Foi a contragosto que eu comecei a assistir, e então consegui me acalmar, e pouco a pouco deixei os remédios fazerem o efeito desejado e consegui deitar e dormir... 

Aprendi a ser sozinho. As pessoas da minha casa ou meus amigos não imaginam o inferno que é minha mente. Os personagens dos BLs e as músicas que escuto são minhas únicas companhias nessa existência amarga. Também não entendem, que minhas coisas sujas, a mesa cheia de poeira, é um reflexo do meu desânimo para tudo. 

Hoje eu me confessei, e realmente precisava ouvir alguns conselhos. Mas o fato é que, embora tenham me acalmado um pouco, não foram capazes de despertar em mim esse ânimo que esperam, e eu lamento muito por isso. Tenho vivido dias lacrimosos. Minha vontade é apenas dormir e, se possível, não acordar mais, assim seria bem melhor e mais fácil. Mas pelo jeito ainda há muito para lutar, e eu só não sei pelo quê estou lutando. 

Felicidade? 

Realização? 

Essas coisas sequer existem? 

Me sinto absolutamente perdido. As pessoas ao meu redor correndo, arrumando as coisas, falando alto, ocupadas demais, e eu catatônico, sorrindo porque me lembrei do trecho de uma música bonita e só, não consigo passar disso. Enquanto eles lutam eu deito e fecho os olhos me obrigando a fugir pra outro mundo, onde não podem me encontrar, onde não há barulho, onde eu existo de modo tão abstrato que sequer pode-se dizer que estou vivo, apenas uma ideia parando no sobrecéu sem nenhum compromisso com essa realidade caótica. Mas uma hora ou outra eu preciso voltar a realidade...

Quisera adormecer um sono profundo e não mais acordar, quisera que a Tua bondade me deixasse morrer de amor. Essa é a minha prece mais sincera. Já não peço por nada que possa vir a ter ou ser, não almejo nada além da Tua paz, que ela possa habitar em mim. Pois já não restou nada, o ser que eleva essas preces é apenas uma casca vazia, não há algo em mim que possa se tornar algo mais. Por isso eu peço a clemência de uma morte santa, apenas isso. 

Saturada de males se encontra a minh’alma, 
minha vida chegou junto às portas da morte.  
Sou contado entre aqueles que descem à cova, 
toda gente me vê como um caso perdido!  

O meu leito já tenho no reino dos mortos, 
como um homem caído que jaz no sepulcro, 
de quem mesmo o Senhor se esqueceu para sempre 
e excluiu por completo da sua atenção. 

Ó Senhor, me pusestes na cova mais funda, 
nos locais tenebrosos da sombra da morte. 
Sobre mim cai o peso do vosso furor, 
vossas ondas enormes me cobrem, me afogam. (Sl 87)

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Palavras a completar

Ele passou diretamente por mim, mesmo que nossos olhares tenham se cruzado por um milésimo de segundo. Ambos viramos o rosto, como se não fosse nada, como se não fosse ninguém. Apenas dois estranhos nos bancos cheios da igreja. Mesmo sabendo que não foi nada, não fingimos que não foi nada simplesmente, na verdade há um motivo pra isso, mas ninguém se atreve a dizer ou reconhecer, será pra sempre apenas isso, um olhar desviado, um incômodo momentâneo e nada mais. 

X

Queria não perceber muitas das coisas que percebo. A alegria alucinada de quem está em profundo sofrimento é dolorida demais de se ver. O desespero do outro é assustador, quando transparece não apenas em lágrimas e gritos mas em risadaria e brincadeiras, quando o outro se assusta e foge para tão fundo dentro de si que apenas demonstra uma felicidade desmedida, insensata na verdade, é uma declaração clara demais de um espírito em aflição. É assustador, ainda mais quando isso se vê de alguém que busca sempre demonstrar fortaleza. 

X

Queria que ele olhasse para mim, como eu olhei um dia. Me lembro ainda da alegria que tinha ao chegar cedo na sala e ver o garoto tímido e cabeça baixa, o cabelo preto caindo numa franja discreta sob o rosto. O sorriso tímido que eu levei algumas semanas para ver. Eu precisava me aproximar dele sempre que queria ouvir sua voz. Me lembro também do dia que ele chorou porque não tirou uma boa nota na minha prova, e eu fiquei com coração partido. Sempre me aproximava para conversarmos um pouco, queria saber mais sobre ele, sempre tão discreto, silencioso, reservado e eu encantado com aquele jeito único dele. A essa altura eu já não olhava mais para ele como um aluno e, quando eu fui mandado embora, minha tristeza foi saber que eu não o veria mais. Nossos caminhos já estavam distante demais. E eu só queria que ele me olhasse diferente, como eu olhei um dia e assim, quem sabe, poderíamos voltar um a vida do outro. Um devaneio bobo. É aqui que eu devo acordar do meu sonho.

Isso porque a forma como eu vejo as coisas é sempre minha, e apenas minha. Apenas a consciência individual percebe os fatos e os medita no seu íntimo, e isso me dá uma amostra de solitária condição humana. Eu sei a reação de repulsa que eu causo nas pessoas, conheço bem. Meu abraço, meu carinho, sempre serão apenas meus. 

X

Obrigado, pelo seu carinho, pelas suas lágrimas, pela confiança. Obrigado por estar ao meu lado. 

X

Me sinto perdido, inquieto e absolutamente desesperançado, incomodado com toda as incertezas dessa mudança. A sensação de insegurança, um grande defeito meu, tem me dominado completamente. Eu fico pintando os piores cenários. As coisas nunca pode ser simples? Tudo precisa ser sempre confuso assim? São tantas questões que fogem a nossa capacidade de ação que é nauseante, eu simplesmente não tenho conseguido ficar acordado com isso. Parece que eu vou explodir diante da perspectiva e constatação de toda a minha impotência.

Minha família resolveu levar a mudança e acampar na casa de uma prima minha até a gente conseguir pessoalmente olhar as casas para alugar, acontece que, já não bastasse a gente ter ligado pra metade da cidade, não estão levando em conta que todo mundo em casa está negativado, o que significa mais um empecilho na hora de locar um imóvel, e parecem não se preocupar com isso. 

Talvez seja uma demonstração clara de que eu não confio na Providência. Não me surpreenderia, eu também não tenho Esperança, o que posso fazer? É a isso que me refiro quando digo que já não sou nada, que apenas me restou uma casca vazia. Sonhos, esperanças, amor, tudo o que move as pessoas morreu dentro de mim. Eu olho o mundo com uma lente sépia, opaca, e todo brilho se dissipou. Eu só vejo um futuro complicado, dolorido. 

E o que mais me irrita é que as pessoas ao meu redor dizem pra ter paciência, que elas passaram décadas tentando conseguir as coisas e nunca chegaram lá, mas isso devia me animar? Não existe nenhuma razão para eu me obrigar a passar trinta anos de dificuldades e ainda assim não conseguir o mínimo, se for assim é melhor eu me jogar da ponte hoje mesmo. Como isso pode ser incentivo? Eu só vejo razões para desistir. 

X

Nesse momento eu me odeio, odeio pela minha falta de coragem de fazer o que é necessário. Me odeio com todas as forças por não conseguir fazer isso. Bastariam alguns remédios que eu tenho aqui, ou que pulasse de uma ponte, bastaria me jogar a frente de um carro na BR movimentada, ou que afundasse o canivete com um pouco mais de força na veia certa, mas eu não tenho coragem, eu sou alguém que não presta nem mesmo pra tirar a própria vida, uma vida miserável e sem sentido. Não tenho mais dignidade nenhuma se não consigo nem mesmo isso. Sou patético, nojento e não sou digno nem mesmo de pena, senão que mereço apenas o desprezo, que cuspam em mim, que me deixem sozinho. Eu não quero ir embora, mas eu também não quero ficar, eu só quero desaparecer, eu só quero voltar ao nada. 

X

E nem preciso falar da ingratidão, da solidão que é estar tão preso dentro da minha própria mente que quem está ao meu lado não consegue sequer ouvir os meus gritos lancinantes e desesperados pela libertação dessa tortura. Ao mesmo tempo sou tomado de arrependimento e vergonha por não confiar o bastante, por não conseguir ter esperança, por não conseguir seguir o imperativo evangélico "não vos preocupeis!", eu me preocupo, isso porque estou preso as minhas forças humanas, e eu sei que nada posso, elas nada podem. Só posso elevar em prece "E eu pobre, que farei? Que patrono invocarei?".

X

Hugo de São Vitor disse na Didascalicon que "onde não há fim não pode haver repouso. Onde não há repouso não há paz. Onde não há paz, Deus não pode habitar."

X

Queira me conformar a Vontade Divina, aceitar com alegria os espinhos que entre rosas vou colhendo, eu queria mesmo. Mas quanto mais eu tento, sempre que paro pra observar a realidade, me sobe um desespero, me sinto inseguro, e eu não consigo me agarrar a nada. E eu queria confiar, acreditar, esperar, me abandonar completamente ao que Deus preparou para mim. Mas eu não consigo fugir da tristeza e da aflição, e isso me tira a paz. E quanto mais eu penso nisso menos paz eu tenho e mais infiel me sinto porque sei que isso é trair o princípio mais básico da cristandade. Eu me envergonho profundamente por não conseguir fazer algo tão bobo quando tantos outros que vieram antes de mim foram tão heroicos em suportar martírios horrendos em nome do que acreditam, enquanto eu não consigo suportar nem mesmo as mais básicas adversidades sem pensar em desistir, sem desejar o fim. "Gemendo tal qual réu envergonhado, a culpa me enrubesce a face, suplicando a Deus..."

X

"Não há no mundo horror que comparar se possa, à luz perversa desse sol que o gelo acossa, e à noite imensa que no velho Caos se abriu; Invejo a sorte do animal talvez mais vil, capaz de mergulhar num sono que o enregela, enquanto o dédalo do tempo se enovela." (Baudelaire)

Companheiros

Estou bem sensibilizado por uma coisa que os homens de estudo diriam banal, mas ainda assim mexeu comigo. Talvez seja um sinal da minha imaturidade intelectual e de uma deficiência no meu senso de proporção, mas ainda assim acho importante falar sobre isso, expressar um pouquinho do que tenho sentido. 

Há alguns dias aconteceu o OhmNanon 1st FanMeeting, ainda parte da produção envolvendo a série de Bad Buddy da GMM TV. No fim do show eles, emocionados, se sentaram e conversaram algumas coisas com os fãs ali presentes. Não é segredo que eles tiveram um desentendimento alguns meses atrás, com os dois saindo às pressas de um evento depois do que pareceu uma discussão, um pouco alterados e evidentemente abalados. 

Primeiramente eles falaram sobre a importância que todo esse projeto teve na vida deles. O Ohm explicou melhor, que um projeto desse não envolve apenas a gravação da série em si, mas tem workshops e laboratórios, ensaios, teve a gravação de um MV e de uma música, vários eventos de divulgação, entrevistas, programas de variedades... Enfim, um número grande de momentos que eles tiveram de estar juntos, se conhecendo melhor, trabalhando para ajudar um ao outro. Ele destacou que precisou se esforçar muito para cantar ao lado do Nanon que também é músico e tem bem mais experiência cantando, e que foi difícil acompanhar mas ele fez isso porque era importante. 

Era importante porque era o que eles precisavam entregar e porque eles tinham de fazer tudo isso juntos. Com essa proximidade é claro que surgem momentos de tensão, e em às vezes estamos mais sensíveis do que o normais, mais cansados também, afinal a rotina deles é uma loucura. 

O Ohm disse que se sentiu muito culpado pela forma que tratou o amigo porque ele sabia que não estava sendo justo, e que acabou descontando nele uma frustração que não cabia ali, e ele sentiu isso por fazer com alguém que ele ama. E esse é o ponto em que eu queria chegar. Nanon respondeu que não conseguiu ficar bravo com ele, mas que ficou triste e preocupado porque o Ohm é alguém que ele ama. Ele tentou entender e ficar ao lado do amigo mesmo machucado. 

Isso acontece quando duas almas se encontram, elas podem se ferir, mas juntas podem cantar uma bela canção e agradecer. E eles agradeceram, aos agentes, ao diretor, a equipe técnica por trás da série e do evento, todas as pessoas que direta e indiretamente ajudaram eles nessa jornada e os fãs, por quem eles fizeram tudo isso, para nos alegrar e nos mostrar uma bela história de amor. Mas, além de todas essas pessoas haviam duas especiais: os próprios OhmNanon, a amizade que eles construíram, e que permitiu que o trabalho deles não ficasse nada menos do que perfeito, e que ali, de frente com tantas pessoas que os amam e os apoiam, e também de pessoas que, como eu, estão emocionados e chorando ao ouvir essas palavras do outro lado mundo, ele viram o resultado de todo esse esforço. 

Momentos de desentendimento, personalidades diferentes, mas um amor, um amor que os une numa amizade belíssima. Não vi fanservice, vi dois amigos que se amam e que estavam felizes por pdoerem trabalhar juntos, fazendo o que amam e sendo felizes por isso. 

Nanon tem um histórico de depressão, e já chegou a dizer que só consegue se sentir bem quando está envolvido num projeto porque consegue ocupar a sua cabeça, e ali, se debulhando em lágrimas, com a voz embargada pelo choro ele só conseguia repetir o quanto amava o outro, que devolvia esse carinho com mais amor. 

Isso me tocou, profundamente, e fui às lágrimas assistindo mais de uma vez. E, como fã, espero que essa amizade dure muito tempo e que, em projetos futuros, juntos ou separados, eles vão continuar se apoiando e crescendo. A cena deles chorando enquanto se abraçavam ficou marcada no meu peito, ficou mesmo, porque ali eu vi não dois atores, não dois artistas, mas dois homens felizes por estarem juntos e fazendo o que amam: levando felicidade aqueles que os assistem. 

Eu sei bem que isso nunca vai chegar a nenhum deles, e não tem problema porque eles chegaram até mim. E me sinto grato, imensamente grato por ter visto coisa tão linda, tal demonstração de amor, carinho e admiração. 

Obrigado por isso OhmNanon, vocês são sensacionais!

domingo, 14 de agosto de 2022

Resenha - Love Mechanics

Contém SPOILERS!

O amor, quase sempre, é uma coisa complicada. Não apenas vem de onde não esperamos como pode insistir e machucar antes de, finalmente, construir a confiança capaz proporcionar aquela completude, deixando aquele sorriso doce no rosto e um brilho no olhar. É essa a mensagem principal de Love Mechanics, obra que veio para contar melhor a história que inicialmente tinha sido adaptada da novel pelo Studio WabiSabi no segundo arco de EN of Love, agora pela WeTV com a maior parte do elenco retornando para essa temporada.

Mark (War Wanarat) acaba não tendo seu amor correspondido por Bar (Got Kanidsorn), veterano do curso de Engenharia Mecânica, mas não desiste facilmente e aí que Vee (Yin Anan Wong) decide intervir para tirar o calouro dos pés do seu amigo. Depois de uma noite de bebedeira Vee e Mark acabam dormindo juntos e, a partir daí, eles começam a viver uma relação de amor, ódio e desconfiança já que, até então, Vee tem namorada. 

A construção de ambos os personagens principais é simplesmente sensacional. Nada é tão simples quanto parece e, conforme somos apresentados as motivações de cada um vamos entendendo mais sobre como eles lidam com as coisas do coração. 

Vee é um namorado esforçado e um amigo atencioso, e acaba sendo pego de repente ao se ver gostando de um garoto que gostava do seu melhor amigo. Ele ainda precisa lidar com o fato de que está sendo traído por sua namorada. Vemos então um longo arco de redenção e aceitação dos seus sentimentos bem como de esclarecer o que ele sente, tanto por Vee quanto por sua namorada. Inicialmente confuso sobre o que fazer ele segue seu coração e comete alguns deslizes no caminho mas se mostra sempre preocupado e faz o possível para agradar, mesmo que isso signifique se machucar e até machucar os outros sem querer. 

Mark é decidido e obstinado, ele vai atrás de Bar com sinceridade mesmo sabendo que ele já está comprometido com Gun (Jeff Nathadej) e posteriormente começa a namorar com ele oficialmente. Depois do incidente com Vee ele se vê rodeado pelo calouro por todos os lados e, a princípio, pensa que ele só quer tirá-lo de perto de seu amigo, mas aos poucos ele vai percebendo que o veterano realmente tem sentimentos por ele e, pior, ele começa a corresponder. No entanto, enquanto Mark é seguro sobre si e sobre o que ele quer, Vee não sabe como demonstrar, além de ter o inconveniente de que sua namorada mora no quarto ao lado do dele, o que o obriga a ver os dois juntos sempre. 

Essa dinâmica de conseguir conquistar a confiança e o equilíbrio num relacionamento que tinha tudo para dar errado faz os dois passarem por muitos momentos difíceis. War e Yin fizeram um excelente trabalho e, graças ao longo trabalho que têm juntos desde o lançamento da primeira versão em 2019, esbanjaram química e momentos fortes na série. Seja nas intensas cenas dramáticas, nas bem construídas situações românticas ou cômicas a atuação de ambos foi impecável. Vee é bobo e apaixonado enquanto Mark se faz de difícil mas também só quer um amorzinho. A obra tem um equilíbrio perfeito entre episódios mais melancólicos, onde vemos o lado mais vulnerável e inseguro dos meninos, bem como momentos mais cômicos onde eles tentam acertar as arestas do relacionamento contando com a ajuda de seus amigos também. 

Bar e Gun se revelam bons amigos e conselheiros que, com delicadeza, conseguem ajudar quando o mundo todo parece despencar. Foi uma grata surpresa já que foram os únicos dois personagens a mudar de atores em relação a primeira adaptação. Nuea (Prom Ratchapat) que também tem interesse em Mark é super protetor com o calouro mas, ao ver que os sentimentos de Vee são sinceros, ele assume uma posição mais compreensiva com ambos, apoiando o mais novo e encorajando seu amigo a fazer as escolhas certas. Importante participação também de Yiwaa (Ormsin Supitcha), amiga do Vee e mãezona do Mark que vive puxando a orelha do veterano pra ele não machucar o coitado. Ploy (Perth Veerinsara), a namorada de Vee, embora um pouco apagada, tem um papel importante no desenvolvimento da história, servindo como ponto de ignição para Mark confrontar Vee e suas intenções reais. 

Prometendo um romance intenso, cheio de conflitos e entregando uma obra sensacional, construindo personagens sólidos e uma narrativa cativante que emociona e diverte Love Mechanics foi uma das melhores obras desse segundo semestre de 2022. Ficamos ainda com um gostinho de quero mais com a cameo de Mark Siwat num episódio, o ator de Bite Me tem feito muitos eventos ao lado de Prom o que levantou ainda mais suspeitas de que brevemente teremos um projeto dos dois vindo aí. Outra expectativa, talvez apenas minha, foi pela de Got e Jeff como o casal TOSSARA, meu favorito de EN of Love e que, mesmo com tempo limitado, roubaram a cena e me deixaram com vontade de ver mais.

Nota: 10/10

sábado, 13 de agosto de 2022

Trono

Foi uma noite longa e difícil, como há muito eu já não via. Pude sentir as minhas forças se exaurirem, desaparecerem do meu corpo como fumaça no ar, e fui deixado, sozinho e vazio, apenas com a dor a me assolar a carne até o tutano, com cada fibra do meu ser implorando para não ficar sozinho, ou que finalmente fosse me deixado partir. 

A cada vez que fechava os olhos era como se eu fosse lançado ao chão por uma força diferente, açoitado por algozes, perseguido, sufocado. Banhada ficou minha face, de pranto e vergonha a noite toda. Meus lamentos se prolongaram até o cair da madrugada, quando adormeci em profunda amargura. 

A solidão por vezes vem me fazer essa companhia, trazendo consigo seus chicotes para me ferir a carne, rasgando meu coração com seu punhal e arrancando-o pelas minhas costas, restando apenas uma casca vazia onde antes havia um quente pulsar. 

Feita então a oblação de meu coração libertou a já conhecida fera, sedenta por saciar seus apetites bestiais ela me dominou até que meu corpo se desfizesse e, desaparecendo os contornos do meu ser, esquecido quedei-me, o rosto frio como um cadáver. Não se via sinal de vida em mim. 

E até mesmo agora, se fecho os olhos só vejo os ecos de uma cidade abandonada, não há nem mesmo sangue que possa derramar nessas palavras. Eu nem sei o que posso dizer para explicar o vazio que sinto, deitado por horas, sem conseguir me mexer, sem vontade de nada, meu ser se encontra em ruínas que vão se tornando pó e desaparecendo com o vento. Tudo é vazio e silêncio. 

Tudo se foi, desaparecendo lentamente como o sol poente, ficando apenas a escuridão de uma noite que jamais há de se acabar, de um sofrimento silencioso que há de começar sempre numa samsara terrível onde tudo o que ouço é a risada maligna do demônio ao ver os meus restos se aproximarem lentamente de seu trono. 

As coisas parecem não ter solução, apenas o tempo pode dar conta disso, e é inútil pensar em problemas que não se pode resolver. Mas eu pelo menos consigo pensar numa forma de ficar em paz com isso. Se morresse, se desaparecesse não precisaria mais me preocupar, seria tudo mais simples, seria o fim desse ciclo interminável. Não tenho mais apego a minha vida, a mais nada e nem a ninguém, morrer agora seria nada mais que um alívio. 

Estou consciente do que essas palavras significam. Eu ignoro assim as palavras do Evangelho que ordenam "não vos preocupeis", e eu sei também da consequência que há ao tirar a própria vida. E minha alma imortal sabe disso, mas o meu corpo fraco e perecível não suporta mais. É isso que ele deseja. Não há mais nada a fazer. Não há razão para continuar insistindo. 

E tudo retorna ao nada.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Resenha - Senpai, Danjite Koidewa!

Continuando na linha dos BLs japoneses que trazem histórias mais tímidas e personagens carismáticos com surtos de timidez Senpai, Danjite Koidewa! chegou trazendo uma série curtinha, leve e gostosa de acompanhar. 

Jun Yanase (Naito Shuichiro) trabalhou com CG 3D ao redor do mundo e agora, de volta ao Japão, ele precisa cuidar de um novato em sua equipe, o problema é que enquanto ele é amigável e gentil o jovem Yuki Kaneda (Seto Toshiki) é ríspido e logo de cara pede que o veterano evite se aproximar dele, falando apenas o indispensável. Com um trabalho grande pela frente Yanase se vê perdido tentando deixar o novato confortável ao seu lado. 

Não é surpresa para ninguém que na verdade Yuki age assim porque tem ataques de pânico toda vez que o veterano se aproxima, já que ele o admira tanto que se candidatou para o trabalho somente para ficar ao lado dele.

Depois desse dilema inicial nós acompanhamos então a aproximação dos dois, enquanto descobrem mais sobre sua paixão pela arte digital e também sobre seus sentimentos. 

O Japão consegue trabalhar dramas muito bem, e equilibra isso com a comédia tipicamente exagerada, com os personagens gritando e correndo sempre que se sentem envergonhados. Embora fique caricatural muitas vezes o roteiro consegue puxar a história de volta e colocar os pés no chão, fazendo com que a gente se identifique com personagens muito humanos e inseguros que precisam lidar com os seus sentimentos cada vez mais fortes. 

Enquanto Yuki faz o possível para aprender com seu amado veterano Yanase, que acostumou-se a fazer o trabalho de modo mais automático, vê-se redescobrindo a sua paixão e encontrando no outro inspiração para fazer projetos que tenham sempre a sua marca que foi, aliás, o que conquistou Yuki pra começo de conversa. O jovem se sente inspirado pelo mais velho e é muito esforçado mas sempre perde o controle quando o outro se aproxima, percebendo que está perdidamente apaixonado e com medo de que ele descubra e o rejeite. Embora tenha uma personalidade descontraída, Yanase é tão inseguro quanto o outro sobre como se sente e então, na segunda metade da temporada, vemos ele se obrigando a tomar mais coragem e aceitar os seus sentimentos. 

A fotografia é belíssima, Naito é simplesmente lindo e está deslumbrante em todas as cenas e é impossível não se apaixonar por ele igual Yuki que, por outro lado, diverte com suas caras e bocas assustadas toda vez que fica muito perto do outro. 

Por fim, com uma aura leve e doce os dois vão aos poucos criando coragem para se aproximar como desejam, e acompanhamos então a construção de uma relação tímida porém bela. A construção de ambos os protagonistas é muito bem feita e, embora ainda tenha aquela insegurança das séries BL japonesas (em contraste com os filmes que são bem mais diretos), não decepciona, proporcionando risadas e um coração quentinho ao final dos oito episódios. A única coisa que fica um pouco a desejar é que poderiam ter explorado mais um pouco dos dois juntos, como saindo nos primeiros encontros e dando mais alguns passos no relacionamento, mas nada que atrapalhe a experiência.

Nota: 7,5/10


quinta-feira, 11 de agosto de 2022

O homem e seu clarinete

Lenta e delicadamente um clarinete solitário rompe o silêncio murmurando a sua história, na verdade não é nem mesmo a sua histórias, mas alguns balbucios incompletos de um sentimento profundo que vem avançando como a névoa matutina vem do mar em direção a praia, tornando o chão um pouco vago, sem que o transeunte consiga distinguir exatamente onde há a areia e onde começa a água gelada. O som do mar em ressaca, no entanto, dá o aviso de que ele está ali, pronto a engolir qualquer um desavisado que ousar transpor os umbrais de sua realeza. 

O homem com seu clarinete não sabe como chegou ali, ainda é de madrugada e o efeito das bebidas que ele tomou enquanto tocava em algum bar da orla começa a passar, deixando sua mante naquele limbo entre a sobriedade e a confusão ébria. Por algum motivo ele resolvera caminhar na praia, e agora vê diante de si um oceano de escuridão e névoa. Ele olha, distante, mas não consegue ver nada. Sua mão aperta seu instrumento contra seu peito e ele então passa a sentir com mais precisão os seus músculos, estão enrijecidos, talvez por tocar por algumas horas, ou efeito do frio, e ele então lembra-se que deixou seu casaco em algum banco do bar. 

Parado ele é ali apenas uma sombra disforme naquela névoa, agora que a cor do céu começa a mudar e a cidade vai acordando devagarinho, preguiçosamente, e ele não tem um lugar para onde retornar. Não pode chamar aquele cubículo fétido de lar, aquele lugar tem sempre o choro de mofo e solidão, e sim, depois de um tempo sozinho é possível sentir o cheiro da solidão, já que tantas vezes ela senta-se ao seu lado, exalando como que lufadas de um grande cachimbo e lembrando-o que não há ninguém ali. 

Quantos dias imensos não se prolongaram naquele lugar, a cama cheirando a suor, ele já nem se importa em trocar os lençóis, apenas gira de um lado para o outro esperando o tempo passar, e ele parece que nunca passa. Muitas vezes nem sequer se mexe, apenas fica parado de olhos fechados, esperando que chegue o dia que precise levantar, tomar um banho, passar um pouco de creme no cabelo e tocar por algumas horas junto com alguns conhecidos enquanto muitos desconhecidos enchem a cara num bar que, curiosamente, ainda toca jazz nesses tempos onde tudo é industrializado, inclusive a música. Em dias assim ele apenas existe numa forma quase etérea, e ele tem a certeza que em alguns momentos desaparece, apenas para aparecer novamente, quando a luz do sol faz revelar a sua presença já fundida aos lençóis.

Ele não sabe como consegue imprimir a sensualidade de algumas peças, e ainda assim o faz, automaticamente. As pessoas, aquelas poucas que prestam atenção nele, pensam que trata-se de um homem de apetite sexual voraz e que certamente vai terminar a noite levando alguma garota dali para sua cama, ou para o beco atrás do bar. Mas ele gosta mesmo é de tocar as lânguidas melodias que evocam a melancolia mais profunda do seu coração, assim como agora ele é todo preenchido por ela ao ver a lua distante em meio a névoa e ao horizonte do mar. Relaxando seus braços ele os deixa pender junto ao corpo, e seus músculos protestam. Eles desejam abraçar alguém com força, não uma moça do bar mas algum jovem rapaz tão perdido quanto ele, desejam tocar uma melodia diferente daquela que ressoou de seus dedos e sopros durante a noite. 

Um vento repentino o faz estremecer de frio e, girando no calcanhar, ele começa a caminhar meio desajeitado pela areia úmida. Após alguns passos ele de repente para e, de olhos fechados, tenta forçar suas pernas a avançarem. Sem sucesso. Cada fibra do seu corpo não quer que ele volte para aquele quarto vazio, aquela cama que parece mais fria do que a água daquele mar que se espraia infinitamente. Ele se esforça mais um pouco e uma lufada de ar sai de sua boca, um vapor quente desaparece no ar e abrindo os olhos lentamente ele sente uma lágrima descer quente por seu rosto frio como mármore, essa única lágrima é como uma lente de aumento para o medo que paira em seu coração. Ele não consegue avançar, mas consegue girar mais uma vez, abre os dedos deixando cair o instrumento na areia, e caminha em direção ao mar, pouco a pouco sendo engolido pela névoa até que a água gelada parece atingir seu corpo como se fosse facas afiadas, logo misturando-se aquela pequena lágrima, que perde-se na imensidão agora já azul, um pouco clareada pela manhã...

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Em fragmentos


Todos estavam dormindo, não é comum que minha casa fique tanto tempo em silêncio porque nossos hábitos são muito distintos. Eu durmo tarde e às vezes perco o sonho e fico assistindo na sala, minha irmã passa a noite acordada e dorme o dia inteiro, então tem sempre movimento em algum lugar mas, essa noite, era tudo silêncio. 

Eu me levantei e sentei com os braços abraçando as pernas que tocavam meu peito. Abaixei a cabeça apoiando-a nas mãos enquanto ouvia um disco de jazz bem antigo, mas que deixava tudo com uma atmosfera leve, melancólica, aliada a luz azul que entrava pela janela discretamente. E ali eu me senti absolutamente sozinho, era noite e todos estavam dormindo, a cidade estava em completo silêncio e eu sentia apenas um grande vazio no peito. Apertava ainda mais os braços ao redor das pernas, e algumas lágrimas fluíram e naquele momento eu nem entendia direito o que estava acontecendo, só me sentia perdido, sozinho, sem forças para mudar.

Não é como se esperasse alguém, um namorado, que mudasse isso de um para outro com sua presença. É mais profundo que isso, é mais do que apenas carência, a qual é apenas sintoma e não causa desse vazio profundo e aterrador. É uma desesperança que se apossou de mim, uma completa falta de vontade de continuar a viver e a pensar. 

Novamente sobre as belas imagens dos belos homens que me sigo despertam em mim uma dupla reação: um admiração pela sua forma bela e encantadora e, ao mesmo tempo, inveja por uma vida de fama e reconhecimento. Me vejo desejando admirando a aprovação dos outros, não sabia que era tão vaidoso assim, mais um aspecto em mim que desprezo. Queria poder com verdade fazer das palavras de Sta. Terezinha a minha oração "Que eu nunca procure e nunca encontre senão a Ti. Que as criaturas não sejam nada para mim e que eu nada seja para elas mas que Tu, Jesus, sejas tudo... tudo!"

Fiquei me perguntando quais seriam os motivos para as coisas serem assim, dos motivos para me sentir tão sozinho e tão inútil. Eu olho tudo que já fiz, cursos, faculdades, amigos, pastoral, e tudo foi fracasso, eu nunca obtive sucesso em nada, nem mesmo uma simples rede social tem alguma visibilidade. Hoje eu pretendia fazer uma maquiagem inspirada no tema angelical da apresentação de um cantor que eu acompanho, mas ao ver o desempenho da minha última postagem eu desisti, não vale a pena o esforço. O que é uma pena, eu acho que ficaria interessante... 

Olhando então para tudo que fiz, e não foram poucas coisas, eu vejo que minha contribuição foi mínima e me pergunto se consegui pelo menos mudar um pouco a mim mesmo, e me entristeço em ver que continuo fraco e pecador, errado em todos os sentidos, incapaz de sentir esperança e desacreditado até do amor. 

Minha existência se resumiu a isso: viver um dia de cada vez sem planos, sem sonhos, buscando não dar possibilidades para novas decepções. Ah, estou farto de decepções como estou farto de príncipes, onde é que há gente de verdade na terra? 

Pensei em beber naquela madrugada, mas optei por dormir mesmo, mas acordei com o mesmo sentimento de impotência. E eu sei que repetir isso infinitas vezes não vai mudar nada, mas que posso mais dizer se é isso que meu coração diz? Meu coração desistiu. O que me resta é lamentar, e talvez cantar como naquela ária famosa: "Lascia ch'io pianga mia cruda sorte, e che sospiri la libertà", deixe que eu chore pela minha sorte e que suspire pela liberdade. 

E esse suspiro me faz distanciar de todo o resto, minhas lágrimas são como muros que ergui e que me separam do mundo ao meu redor. Eu já não consigo ficar mais de dois sem me dopar e dormir por horas e horas, não suporto o ócio, não suporto a ansiedade, o medo do desconhecido. Como uma criança assustada de joelhos ralados que se esconde na barra da saia da mãe eu me escondo no meu próprio sono para não obrigado a encarar o que é real, porque o medo de consome e a dor me infesta todo o ser. Enquanto todos vivem eu fujo e me escondo, tremendo, como se fugisse da aula pela porta dos fundos. Mesmo que chamem a atenção eu não ligo, esperar é perda de tempo para pessoas como eu. 

Preciso acordar, preciso despertar desse sono profundo, dessas amarras as quais eu mesmo me prendi, no fundo da caverna no reino de Oneiros. Mas não consigo, eu não tenho forças... Eu não quero ir embora mas também não quero ficar, eu quero desaparecer, eu quero desesperança, eu quero voltar ao nada, eu quero a morte! Mas eles não vão em deixar voltar ao nada...

Parece tudo que fiz foi um grande erro, minha vida não passa de uma imensa sucessão de erros e decisões equivocadas. Como posso me considerar um homem de estudos que, pretendendo compreender o mundo ao meu redor e nele me orientar, tomar tantas decisões erradas? Me velho estilhaçado, como um cristal que se quebrou e não há como consertar, me parti em inúmeros fragmentos que não podem mais ser um adorno em lugar algum. 

"Se me volto à direita e procuro, não encontro quem cuide de mim, e não tenho aonde fugir, não importa a ninguém a minha vida." (Sl 141)