terça-feira, 23 de agosto de 2022

Peixinho

Fui à missa como de costume, sabendo que é a última que participo aqui em Valparaíso, próximo domingo já estarei em Santa Catarina, e estava sentadinho no banco rezando o terço quando eu vi uma figura que eu não via já há algum tempo e então eu senti o coração errar uma batida. 

O sol estava tocando meu rosto, e eu fiquei com preguiça de arrumar o cabelo bagunçado pelo vento no caminho até a igreja, e então ele passou com uma camisa laranja, e a luz fazendo brilhar a sua pele morena e o sorriso doce. Eu nem percebi e já estava suspirando. Já fazia muito tempo que não pensava nele, resignado em esquecer eu o abandonei num lugar profundo do coração. E então a luz do sol iluminou esse lugar escondido, um jardim que eu já não visitava há muito tempo. 

Não me aproximei, e saí rapidamente quando acabou a celebração. Depois que acabou a missa eu me dei conta da presença dele de novo e então decidi que voltaria a ignorar aquela luz que brilhava intensamente num sorriso já esquecido e deixa-lo de novo num profundo onde ninguém vê, nem eu mesmo, e que algum dia vai simplesmente deixar de existir ou ser iluminado por uma luz diferente, revelando flores que eu há muito já não via e, ao me sentar do lado da cristalina fonte que ali corre, não mais ficarei hipnotizado pelo nado daquele peixinho que ali um dia habitou. 

X

Hoje foi atipicamente cansativo. Desde cedo embalando coisas e na confusão de carregar o caminhão da mudança. A loucura foi total, é claro, e então a mudança oficialmente começou. Agora eu estou na casa de uma tia e amanhã logo cedo vamos pro aeroporto, em algumas horas estarei de vez em Santa Catarina. A ficha ainda não caiu, me parece apenas uma viagem, um dia diferente. Ainda não entendi que possivelmente nunca mais virei aqui ou, se vir, será apenas brevemente. Mas é uma boa experiência, reconheço, e agora me sinto até mesmo um pouco emotivo, talvez até feliz, e amanhã, durante o voo e o tempo no ônibus talvez eu consiga sentir mais essa transição até finalmente chegar lá. Estou otimista, por incrível que pareça, graças aos muitos votos de felicidade que recebi, de amigos e até conhecidos, e já começo a sentir um pouquinho da responsabilidade que será ter de recomeçar e, a partir de agora, vai depender de muito do meu esforço em conseguir fazer dessa uma oportunidade de mudar de vida, sair dessa letargia que me dominou nos últimos anos. Não é como se eu fosse ficar curado de uma hora pra outra, eu sei que isso não vai acontecer e os momentos de noite escura podem, e provavelmente vão, durar pra sempre, mas isso também significa que algo mudando no exterior pode mudar dentro de mim. 

Estava cansado demais para sentir que me despedia de Valparaíso, só sinto um pouco disso agora mais quieto e quando o cansaço vem me cobrando uma taxa de fadiga, mas isso aconteceu, eu dei adeus ao lugar onde tanta coisa aconteceu, sejam boas ou ruins, onde eu só soube existir ali, e agora eu vou existir em outro lugar, distante, e é como se um tema diferente fosse executado por uma orquestra invisível, e esse novo tema abre um novo movimento da minha sinfonia. Até ontem eu ouvia um triste clarinete contar a minha história, e agora ela começa a tomar um ritmo parecido com o de uma valsa, como na Sexta Sinfonia de Tchaikovsky, e é um movimento mais agitado, com uma ansiedade crescente porém não daquelas aterradoras, mas algo sutil que vem me impulsionando. É, e isso é bom, eu não sabia que iria sentir algo novo um dia. 

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