terça-feira, 30 de agosto de 2022

Cento e oitenta graus

Uma breve reflexão acerca de arte e entretenimento. Bem, para começo de conversa, um dos elementos que podem ser usados pra distinguir ambos é a objetividade de cada um. Uma obra de arte se destaca assim que os olhos a tocam e ela nos fala proporcionando um diálogo entre o artista, a obra e o espectador, ainda que esse último não consiga expressar em palavras o que ele sente, ele sente mesmo assim. É isso que acontece ao entrar na Capela Sistina, ao ouvir uma sinfonia de Beethoven ou vendo um quadro de Caravaggio, essas peças iniciam um longo diálogo com o quem as vê que pode durar indefinidamente. O entretenimento é apenas passagem de tempo sem uma profundidade maior, e a arte de verdade pode servir como entretenimento, como é o caso do diletantes, mas o entretenimento não tem a profundidade da arte.. E tudo bem ouvir o álbum daquela banda que você gosta, eu faço isso bastante também, não sempre, mas o que eu procuro de verdade é sempre algo que seja capaz de dialogar comigo de algum modo.

Guardadas as devidas proporções para com as obras que citei anteriormente, uma série tem me chamado atenção nas últimas semanas pelo nível do diálogo que ela propõe. 180 Degree Longitude Passes Through Us traz uma história intimista e melancólica de um jovem que perdeu o pai muito cedo e sua mãe, na época já divorciada, o mandou para um internato. Agora, de volta a morar com ela eles têm uma relação de amizade muito forte mas entram em atrito com frequência devido as suas visões diversas de mundo. Ele se encontra então com um antigo amigo de seus pais que tem mais envolvimento com eles do que aparenta. Hospedados na casa desse homem a história começa a se desenrolar enquanto vemos as perspectivas distintas se cruzarem.

Esse é o ponto que quero destacar, já que isso não é uma resenha: cada um dos três protagonistas tem uma visão de mundo e um peso diferente para o passado com Siam, o pai do protagonista Wang. 

O jovem Wang é idealista e sonhador, muito próximo de seu pai, ele herdou dele um pequeno globo terrestre e o sonho de viajar de norte a sul do mundo, algo que pode ser visto de modo prático e objetivo mas que também é um símbolo para alguém que quer viver o novo, experimentar o desconhecido e, principalmente, cruzar fronteiras. Essa é a marca principal que diferencia os três personagens. In, o amigo da família a quem Wang considera como um tipo de tio, é o completo oposto, ele foi estudar fora e trabalhou como professor, mas acabou morando sozinho numa mansão no interior, longe de problemas como limites e fronteiras, dos quais ele se afasta, preferindo a firmeza e a segurança que a ordem lhe dá. A mãe de Wang se encontra entre essas duas perspectivas, ela é uma diretora famosa, produz histórias que não são novas mas releituras de clássicos e nisso se sai bem, ela parece ir adiante, romper as fronteiras, mas no fim permanece onde está. 

A relação de Wang e In é de uma tensão imensa. É nítido que ele vê no amigo dos pai uma figura paterna, de posição firme, que ele mesmo questiona algumas vezes. Mas ele também se sente atraído pelo homem que é um completo mistério, embora se apresente simples e sem grandes ambições. Como Wang mesmo descreve, In é às vezes quente como o sol, como um livro complicado ou uma pintura abstrata, onde seus pensamentos reais estão escondidos atrás de pinceladas disformes e pouco ordenadas. 

No terceiro episódio In define, num jogo onde todos deveriam falar sobre seus ídolos, sua admiração para com a baleia solitária de 52 hertz que, produzindo um som único não pode ser identificada por nenhum outro de sua espécie. Ele e  In começam a especular se ela seria solitária, e por isso triste, ou se essa era apenas a sua forma de ser. Wang se diz solitário e In o consola dizendo que eles não são como a baleia. No entanto o jovem diz que In se fecha como se ele o fosse, e emite sons como se ninguém os captasse, mas Wang o entende, e entende que ele prefere viver sozinho, mesmo emitindo os sons em busca de companhia que ninguém vai ouvir. 

A forma como esse assunto complexo é tratado é de uma beleza notável. A forma como os diálogos têm tantas camadas de interpretação assim como os gestos (o toque de Wang limpando o peito de In após a construção da ponte, In colocando o morango na boca de Wang ou abraçando-o para colocá-lo na cama), os olhares, que se demoram em cenas simples mas de uma profundidade incrível porque tudo acontece sempre em mais de um plano, o exterior onde explodem as emoções em choros ou risadas provocadas pelo vinho e o interior, onde os dilemas são dialetizados. A já citada cena do morango como símbolo do fruto proibido, outra barreira... Esses pequenos gestos e ações revelam uma multidão de sentimentos, incertezas, desejo, revolta, medo, coragem... Tudo condensado em pequenos símbolos de expressão corporal e facial.

A revolta de Wang com sua mãe que se esconde para não mudar ou encarar a realidade e a sua crescente curiosidade e tensão romântica e sensual por In, encarnação das fronteiras que seu pai enfrentou e que ele mesmo enfrenta e o que fazem se aproximar dele como um imã aponta para o polo magnético. 

A figura do globo terrestre é de um simbolismo poderoso, pois ela contém em si as distâncias e fronteiras num objeto único, ao mesmo tempo que as direções também estão ali, o que fica evidente na cena em que Wang decide atravessar o pequeno rio andando, enquanto In vai pro outro lado e sai de cena. Um decide cruzar a fronteira natural e o outro permanece desse lado e ainda se afasta mais do que poderia levá-lo adiante. 

É quase certo afirmar que In tinha um peso no relacionamento da mãe de Wang, Sasivimol, com Siam. Mesmo estando fora do país esse peso foi suficiente para acabar em divórcio e numa bebedeira que culminou no acidente que matou o pai. Qualquer passo em direção a esse passado, além do já absurdo de ter a ex do seu grande amigo e seu filho ali em sua casa, é um convite a cruzar de novo uma fronteira que existe ali pra manter uma ordem. E temos mais desse simbolismo: os diálogos através das grades no quadro e as camas em posições opostas. 

Tudo pode ser interpretado, dialogado. E isso porque é apenas uma série BL indie, não é uma obra de Shakespeare ou Dante e, mesmo assim, proporciona, dentro das suas limitações, um diálogo. Uma série dessas não pode ser vista apenas como entretenimento, ou melhor, até pode, mas seria desperdiçar todo o potencial que ela tem de tornar mais rico o seu imaginário e, por conseguinte, a sua experiência humana e capacidade de compreender agir sobre o mundo. 

Aqui essa obra tem o mesmo papel da literatura que é, nas palavras do Prof. Olavo de Carvalho: "A formação literária é a essência da educação. É a literatura que dá o senso da significação múltipla das palavras. Significação e intenção que mudam conforme a situação, a entonação, o lugar, a hora... É aí que se pega o senso da infinita maleabilidade da linguagem. Não se pode adquirir isso lendo livros de ciência, porque na ciência se dá o contrário, na ciência as palavras têm significados fixos, uniformes. Lendo apenas livros de ciência nunca se vai aprender a ler." (COF Aula 500)

Nenhum comentário:

Postar um comentário