quinta-feira, 11 de agosto de 2022

O homem e seu clarinete

Lenta e delicadamente um clarinete solitário rompe o silêncio murmurando a sua história, na verdade não é nem mesmo a sua histórias, mas alguns balbucios incompletos de um sentimento profundo que vem avançando como a névoa matutina vem do mar em direção a praia, tornando o chão um pouco vago, sem que o transeunte consiga distinguir exatamente onde há a areia e onde começa a água gelada. O som do mar em ressaca, no entanto, dá o aviso de que ele está ali, pronto a engolir qualquer um desavisado que ousar transpor os umbrais de sua realeza. 

O homem com seu clarinete não sabe como chegou ali, ainda é de madrugada e o efeito das bebidas que ele tomou enquanto tocava em algum bar da orla começa a passar, deixando sua mante naquele limbo entre a sobriedade e a confusão ébria. Por algum motivo ele resolvera caminhar na praia, e agora vê diante de si um oceano de escuridão e névoa. Ele olha, distante, mas não consegue ver nada. Sua mão aperta seu instrumento contra seu peito e ele então passa a sentir com mais precisão os seus músculos, estão enrijecidos, talvez por tocar por algumas horas, ou efeito do frio, e ele então lembra-se que deixou seu casaco em algum banco do bar. 

Parado ele é ali apenas uma sombra disforme naquela névoa, agora que a cor do céu começa a mudar e a cidade vai acordando devagarinho, preguiçosamente, e ele não tem um lugar para onde retornar. Não pode chamar aquele cubículo fétido de lar, aquele lugar tem sempre o choro de mofo e solidão, e sim, depois de um tempo sozinho é possível sentir o cheiro da solidão, já que tantas vezes ela senta-se ao seu lado, exalando como que lufadas de um grande cachimbo e lembrando-o que não há ninguém ali. 

Quantos dias imensos não se prolongaram naquele lugar, a cama cheirando a suor, ele já nem se importa em trocar os lençóis, apenas gira de um lado para o outro esperando o tempo passar, e ele parece que nunca passa. Muitas vezes nem sequer se mexe, apenas fica parado de olhos fechados, esperando que chegue o dia que precise levantar, tomar um banho, passar um pouco de creme no cabelo e tocar por algumas horas junto com alguns conhecidos enquanto muitos desconhecidos enchem a cara num bar que, curiosamente, ainda toca jazz nesses tempos onde tudo é industrializado, inclusive a música. Em dias assim ele apenas existe numa forma quase etérea, e ele tem a certeza que em alguns momentos desaparece, apenas para aparecer novamente, quando a luz do sol faz revelar a sua presença já fundida aos lençóis.

Ele não sabe como consegue imprimir a sensualidade de algumas peças, e ainda assim o faz, automaticamente. As pessoas, aquelas poucas que prestam atenção nele, pensam que trata-se de um homem de apetite sexual voraz e que certamente vai terminar a noite levando alguma garota dali para sua cama, ou para o beco atrás do bar. Mas ele gosta mesmo é de tocar as lânguidas melodias que evocam a melancolia mais profunda do seu coração, assim como agora ele é todo preenchido por ela ao ver a lua distante em meio a névoa e ao horizonte do mar. Relaxando seus braços ele os deixa pender junto ao corpo, e seus músculos protestam. Eles desejam abraçar alguém com força, não uma moça do bar mas algum jovem rapaz tão perdido quanto ele, desejam tocar uma melodia diferente daquela que ressoou de seus dedos e sopros durante a noite. 

Um vento repentino o faz estremecer de frio e, girando no calcanhar, ele começa a caminhar meio desajeitado pela areia úmida. Após alguns passos ele de repente para e, de olhos fechados, tenta forçar suas pernas a avançarem. Sem sucesso. Cada fibra do seu corpo não quer que ele volte para aquele quarto vazio, aquela cama que parece mais fria do que a água daquele mar que se espraia infinitamente. Ele se esforça mais um pouco e uma lufada de ar sai de sua boca, um vapor quente desaparece no ar e abrindo os olhos lentamente ele sente uma lágrima descer quente por seu rosto frio como mármore, essa única lágrima é como uma lente de aumento para o medo que paira em seu coração. Ele não consegue avançar, mas consegue girar mais uma vez, abre os dedos deixando cair o instrumento na areia, e caminha em direção ao mar, pouco a pouco sendo engolido pela névoa até que a água gelada parece atingir seu corpo como se fosse facas afiadas, logo misturando-se aquela pequena lágrima, que perde-se na imensidão agora já azul, um pouco clareada pela manhã...

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