terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O que dizer

Não esperava voltar aqui para escrever mais uma vez, e admito que não estou nada feliz com isso. Também não consigo explicar exatamente qual foi o gatilho que me deu, o que me despertou a fazer isso mas, em algum ponto daquele sábado, eu tive uma resolução pura e simples: eu não faria falta a ninguém, estava livre, realmente livre. e podia partir. 

Não fui tomado de desespero, antes disso, mas de uma calma incomum. Já não me machucava em saber que sou a parte da minha família que pode ser negligenciada, ou em perceber como os outros se importam mais com todo o resto de coisas. Eu estava livre. Alguém choraria por mim um ou dois dias, mas nada além disso. 

Acordei no domingo com aquela intenção. Fui a missa, e nenhum dos meninos bonitos me chamou atenção, tampouco ninguém percebeu o meu olhar vazio e o que eu faria a seguir. As pessoas nunca sabem, elas nunca entendem, nunca enxergam, então eu não faria tanta falta assim. 

Quando cheguei em casa tomei mais remédios do que nunca. Meu estômago já doía por causa da crise respiratória que tive essa semana mas eu não me importei. Engoli vidros inteiros de xarope, três cartelas de tarja preta, um monte de relaxante muscular e, ouvindo apenas a música, sem nenhum protesto de ninguém, me deitei na cama. 

Apenas para acordar, completamente tonto, umas dez horas depois, sem que nem mesmo a minha família notasse que isso é bem mais do que durmo normalmente dopado. Algumas mensagens no celular mostravam preocupação de algumas pessoas, duas na verdade, pelo meu silêncio e pela carta que eu tinha publicado aqui. Na verdade eu acreditava que aquela quantidade fosse suficiente, mas não foi, talvez eu não tenha tido coragem o suficiente. O que me segurou?

Na noite anterior ainda tentei buscar algo que me pudesse fazer mudar de ideia, mas a minha imagem no espelho, a ideia de que alguém sentiria falta, nada disso surtiu efeito, como disse, estava livre, livre para morrer. 

Mas ainda estou aqui. Acordei em mais uma manhã, uma maldita manhã. ensolarada e cheia de vida.

Estou envergonhado, não só funcionou como agora preciso voltar ao normal como se nada tivesse acontecido. Estou envergonhado porque mesmo assim não entenderam. 

O que eu queria que fosse diferente? Não sei se a essa altura eu ainda quero algo... Palavras como "amor, amizade, família" perderam completamente o significado, não passam de um amontoado de letras para mim. A única coisa que ficou foi o vazio.

Talvez quisesse ser eterno como uma das músicas que escuto. Mas não estou certo quanto a essa eternidade. Minha alma é eterna não é? Se assim for ela tem mais durabilidade que toda a humanidade e vai apreender toda a história humana num único instante. Mas por qual razão sinto a vida tão insuportável? 

O versos dos Lamentos de Jeremias ainda ecoam na minha cabeça. Fiquei feliz por ele ter dito o que pensa, por ter ficado irritado ao descobrir que queria morrer. Mas admito que continuo sem esperança nenhuma, e talvez continue apenas ouvindo música, até o fim.

Já não tenho mais nem o que dizer, só fechar os olhos e me deixar levar pela música... O que mais eu posso dizer? O mundo continua, e ninguém liga para saber se eu quase morri. 

sábado, 27 de janeiro de 2024

Lascia ch'io pianga

Costumava pensar que tinha um motivo para não ir primeiro, que precisava cuidar dela, porque seria doloroso demais ver o filho que ela criou com tanto esforço morrendo assim, por escolha própria, por não aguentar essa vida horrorosa. E, mais recentemente, comecei a pensar que talvez devesse prolongar um pouco mais a vida por ele, quem sabe... Mas acho que me enganei. Na verdade eu não sou importante nem mesmo para esses.

Não há sorriso ou abraço de afeto, de mãe ou conhecido. Não há herói salvador no último instante. Durante toda a vida eu os esperei e só encontrei olhares frios, maldades e ambição. A nenhum deles correspondeu o meu amor 

Ah! Como está tão deserta
Quem era tão povoada;
Parece pobre viúva
Quem antes se orgulhava;
Rainha entre as nações,
Hoje ao imposto obrigada!

Banhadas ´stão suas faces,
Corre o pranto a noite toda,
Daqueles que a amavam,
Já ninguém mais a consola;
Dos seus amigos traída,
São inimigos agora.

Cercou Judá a vergonha,
Escrava foi desterrada,
Em terra estranha hoje mora
Sem paz, sem lar, sem pousadas;
Aqueles que a perseguem
Agarram-na sufocada.

Gravados em sua lembrança,
Dias de grande aflição,
Quando seu povo aía
Dos inimigos nas mãos,
E ninguém socorria
E grande era a gozação.

Havia graves pecados,
Jerusalém, quem os fez!
Quem antes muito gabava,
Cospe-lhe agora a nudez;
Gemendo, o rosto entre as mãos,
Tenta esconder sua tez.

Nestes meus ossos um fogo
Do alto ele ateou,
Armou-me uma esparrela
E para trás me passou,
E qual cidade arrasada,
Na solidão me deixou.

Que grande pranto que eu choro,
Meus olhos são água só;
Quem me conforta está longe,
Quem de mim sentia dó;
Meus filhos estão perdidos,
Venceu o forte, o maior...

Vê, Senhor, minha tristeza,
Minhas entranhas remoem,
Meu coração se perturba,
Pois não cumpri tua ordem;
Na rua matam meus filhos,
Em casa todos já morrem.

Zela tão bem no castigo
Que a eles vais aplicar,
Como soubeste punir-me
Por todo este pecar;
Sem conta são meus gemidos,
Meu coração a parar...

(Lamentos de Jeremias)

Não culpo ninguém mas, espero não encontrar muitas dessas pessoas no inferno.  

E, minha nossa, como isso é libertador! 

Parece que o dia derradeiro finalmente se aproxima, o dia em que não mais vou suspirar pela liberdade...

Apenas isso

"(...) Há, para as criaturas que amam, 
um prazer infinito em encontrar nos acidentes da paisagem, 
na transparência do ar, nos perfumes da terra a poesia que têm na alma. 
A natureza fala por elas." 
(Balzac)

Não era especialmente bonito o rapaz que entrava no ônibus e que vi ao levantar os olhos do pesado volume de Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac, que vinha lendo nas últimas semanas. 

Tinha pernas fortes visíveis da bermuda jeans rasgada  certa altura da coxa, os peitos saltavam, mais por talvez estar um pouco acima do peso do que por ser forte. Por alguma razão ele havia estendido o cavanhaque até metade das bochechas, o que dava um ar estranho ao rosto. 

Não sei se eu baixei o padrão ou se estou muito carente, talvez excitado, mas o achei bonito, só não consegui entender o motivo. Mas também achava linda essa tarde que terminava, fresca em pleno verão, num céu cinza e um ônibus vazio por conta de uma cidade que se encaminhava para a praia.

Passei por alguns homens ligeiramente mais bonitos depois dele. Um ruivo de cabelos cacheados que parecia um anjinho, um moço de camisa social azul com ar um pouco grave e, já perto de casa, um rapaz novinho, com os ossos da face proeminentes mas em conjunto com um olhar que o deixava elegantemente feminino, olhei pra ele duas ou três nos minutos que fiquei de pé antes de descer no meu ponto, sem deixar de notar, em seguida, que o céu já escurecera um pouco mais, mas essa ainda continuava sendo uma tarde que findava sem razão para ser, não era bela, tampouco triste, mas era uma tarde que findava, apenas isso. 

Me olhei no espelho e percebi que já devia ter feito a barba há algumas semanas, talvez tenha esperado demais. As fotos daqueles atores de pele lisa e perfeita me vieram à mente, mesmo que eu faça a barba não vai ficar igual, então deveria me incomodar? Não há mudança no meu rosto ou no meu corpo que possa me igualar a eles. Mas não é um rosto completamente feio, tampouco, e me achei bonito naquela foto, mesmo que tenha sido depois de uma noite de graves crises respiratórias. A minha pele estava quase perfeita também, e meus lábios rosados, embora ninguém queira beijá-los. 

Bom, talvez eu também não seja um ator de pele perfeita, como aquela tarde não tinha cores chamativas de um pôr do sol romântico ou particularmente cansativo. Era apenas uma tarde fresca qualquer, como eu sou apenas um homem sozinho qualquer. Às vezes me parece que ninguém é realmente especial... E bem, acho que é só isso. Apenas isso. 

Aforismos de uma semana caótica

Praticamente não fiquei acordado durante esses três dias (tinha um dia de folga junto ao trabalho). Eu acordava, comia algo, colocava um ou outro episódio de série em dias e, logo depois, me entupia de reméio pra dormir. Devo ter usado quase metade de um vidro de rivotril esses dias, só ontem foram mais 50 gotas, além de vários comprimidos de zolpidem, ciclobenzaprina e o que mais eu achava pela frente para tomar e dormir, e ainda assim algo, provavelmente essa madita ansiedade, me mantinha acordado. Por fim, enquanto nem meu corpo mais aguentava de tanto remédio, já sentindo dores fortes mas ainda acordado, eu ainda me sentia péssimo e, novamente, fiz aquela prece: que o novo dia não chegasse, que o amanhã não viesse, que tudo acabasse ali.

Mas não foi suficiente, o novo dia veio, o amanhã chegou e cá estou eu. E eu já estava todo suado antes de sair de casa, e nem por um instante conseguia me desligar e parar de pensar na quantidade de coisas que iriam me mandar fazer. Essa vida é um inferno insistente. 

Ao menos os demônios me enxergam como um alma a ser perdida pois, para todos os outros, eu sou mero instrumento, uma máquina de responder perguntas, ninguém nunca me enxerga realmente. Mas isso pode até ser uma coisa boa, se eu morrer, talvez ninguém sinta falta. Não sou muito mais do que isso mesmo. E nem os outros, não passamos de máqunas para desempenhar funcões. Não somos importantes. Ninguém é mais do que isso.

X

de qualquer forma, realizamos nossos movimentos, intestinais, às vezes sexuais, às vezes celestiais, às vezes espúrios, ou às vezes percorremos um museu para ver o que restou de nós ou disso,

a triste paralisia estrangulada de fundo de manicômio envidraçado e congelado é estéril suficiente para fazer você querer sair para o sol de novo e dar uma olhada, 

mas no parque e nas ruas os mortos continuam passando como se já estivessem num museu.

talvez o amor seja sexo.
talvez o amor seja uma tigela de mingau.
talvez o amor seja um rádio desligado. 

(Charles Bukowski)

X

Disse, com lágrimas nos olhos, o que já me vinha pesando o coração há varios dias. E como das outras vezes, não obtive resposta, apenas silêncio. Brutal e ensurdecedor. Silêncio, ondem nem mesmo o arfar do meu peito lacrimoso se ouvia. Chorava, baixinho, sem que ninguém visse nem percebesse que, por trás da correria e da eficiência técnica, se encontrava um homem destroçado, que já não sabia mais se aguentaria sequer o próximo minuto e que cada respiração, por mais curta que fosse, lhe custava todo esforço do ser. E me custa ser assim, porque tudo o que eu era, espírito, alma e corpo, era voltado a amar. E, esquecida de mim mesmo, não tendo como o rosto reclinar sobre amado algum, me esvaí completamente. 

X

Não posso exagerar na dose hoje, talvez um relaxante muscular e um xarope pra gripe daqueles que te deixam meio mole, só isso. E quem sabe um trago de um licor bem forte também. Eu só quero apagar, acho que mereço no mínimo isso, depois do dia infernal que eu tive. 

Sozinho, corrido, e ainda sendo cobrado por isso. A vida é uma doença, não. A vida é uma desgraça.

X

Não me sinto confortável para conversar, deixei de novo que a correria tomasse conta de mim. Fiquei deitado e chapado, ouvindo de vez em quanto a música lá longe, mas reconhecendo a voz a ficando um pouco feliz por sentir algo de confortável nesse mundo. O ar do ventilador soprava meio desesperado em mim, o calor úmido do verão entrando pela janela e deixando minha pele grudenta, já não importava mais, me virava de um lado pra outro, sentia o perfume doce dos óleos de camomila, lavanda e funcho e mergulhava em sono profundo de novo. Fiquei indo e voltando algumas vezes, até sentir os músculos finalmente relaxaram, começando pelo pescoço e indo em direção aos membros. Quando finalmente tudo estava relaxado, eu apaguei completamente. 

X

Não o culpo se decidir ir embora, já o disse mais de uma vez. Só consigo imaginar como deve ser difícil ser amigo de alguém como eu, tão volátil. que muda tão rapidamente... Mas também, sei que não dá nenhuma importância pra isso, sei que não sou importante o bastante, sei que muitas coisas estão ficando pelo caminho, e parece que elas não incomodam você. Acho que você já se acostumou, com essa minha mania de mudar, de me enfurecer, de me apaixonar... E enquanto escrevia essas palavras o meu chá esfriou. 

Só queria, entre um chamado e outro, entre uma correria e outra desses dias, entre uma urgência não realmente urgente, entre nomes importantes sem importância alguma, só queria que ele lembrasse de mim.

X

Admito que esperava um pouco mais de humanidade, não sei exatamente em que ponto me tornei tão otimistas e esperançoso, mas acho que a banalidade conseguiram superar até as minhas expectativas mais brutalmente elaboradas no calor desses dias horrendos, dessas experiências que, cada dia mais me convencem que o homem é o mais horrendo dos animais. Lançando-se vorazes contra vitima indefesa, inerme enquanto devoram sua carne que já apodrece sob seus olhos velhos. 

Cada vez mais me convenço que o fim, é a melhor parte de toda essa vida.

X

" - Vejo você hoje à noite?
- Eu nunca faço planos tão à frente..."
(Casablanca, 1942)

Aquela ressaca social, sentimento de que não se suporta mais interagir com nenhuma pessoa, é uma das coisas mais brutalmente horríveis que a sociedade nos obriga. E eu nem consigo disfarçar o meu absoluto descontentamento em ficar andando por aí com aquela mala, em como cada vez que ela abre a boca para dizer alguma estupidez sonhadora a deconexa de qualquer senso das proporções, eu sinto vontade de simplesmente dar às costas e sair sem nunca mais voltar.

Tive de observar o efeito manada em sua forma mais básica: jovens rindo da própria imbecilidade, e enquanto isso eu observava de longe, do profundo abismo da minha desesperança, e via quão miseráveis somos todos nós. Eles com energia demais, eu sem nenhuma, e todos sem fazer nada de realmente útil. E nem mesmo saber disso conforta. Enquanto todos se deixam levar, fazendo seus desejos se misturarem num amálgama esmagado e disforme que se ergue num totem monstruoso, aglutinado de pecados sem um único dedo de Deus na criação dessa abominação, e eu, assim como outros poucos, vendo essa miséria e sem poder fazer nada. 

A última tarde antes do descanso merecido foi de uma profunda conclusão existencial: se eu não consegui me animar com uma visões mais lindas que já contemplei, é porque nada mais pode me animar, eu estou irrevogavel e completamente morto por dentro. E isso me fez perceber o quanto estou cansado. Foi do volume de trabalho? Do calor? Do ambiente de banalidade a que me submeti nos últimos dias? Ou da própria condição humana, ou do meu meio social, de completa privação de um senso da realidade normal? Ou talvez esteja cansado da existência.

E eles ainda queriam, e foram sem mim, a outro bar depois do segundo lugar caro e brega em que entramos. Mas eu estava cansado demais, e só agora vou deitar, acompanhado daquelas doses de remédio que matariam qualquer um outro tivesse algo menor do que a minha absoluta necessidade de solidão nesse momento.

Sua resposta

É normal que você se pergunte do porquê gosto tanto de você. E é uma pergunta que me fiz algumas vezes, muito embora a resposta para ela sempre estivesse clara no meu coração. Por favor, não entenda essa resposta como uma tentativa de convencer você, sei bem que coisas desse tipo não se prestam a dialética, por assim dizer. 

Mas eu consigo me lembrar de quanto tínhamos uma amizade normal, próxima o quanto fosse, de pessoas que conversam muito tempo porque tem assuntos em comum. Mas, quando se vê certas coisas, que não revelamos a mais ninguém, ou que permitimos que o vejam em nós, isso muda algo dentro das pesoas. 

A resposta é que você conseguiu me mostrar uma possibilidade diferente. Uma forma de sentir-se a vontade, de dizer a verdade, de apreciar a companhia de tal modo que eu ainda não tinha conhecido. 

Veja bem, todas as vezes que me apaixonei é porque algo na convicência com essas pessoas me convenciam disso, e eu vou entender se você pensar que o mesmo se deu contigo, mas é a primeira vez que essa companhia se deu da forma como a nossa se deu: caminhando em busca de uma vida interior mais profunda, com o apoio e a compreensão que lhe é típica das almas próximas pela busca da virtude, como São Francisco o foi de São Domingos ou São Bento com sua irmã Santa Escolástica. 

É normal se apaixonar ao ver o lado mais belo de alguém, como sua curiosidade, a persistência de seus sonhos, coisas desse tipo, mas quando nos apaixonamos por ver o pecado do outro e sua luta constante em mudar, em ser melhor ainda que isso signifique uma mudança profunda e, não raras vezes, dolorosa pela exigência e pelas quedas, acho que isso mostra um amor verdadeiro. 

Talvez não faça sentido, e talvez você nem mesmo considere os meus sentimentos assim, mas o que posso dizer é que, se há nesse amor algo que possa ser transposto em palavras assim, numa resposta, é que me apaixonei por você ao ver quem você é e, tendo sua companhia virtual, passei a desejar sempre mais a sua real, compreendendo o verso de São João da Cruz que disse que "ferida de amor não se cura, se não com a presença e a figura." 

Talvez eu nem mesmo o responda, por medo de uma recusa mais formal, mas essa é a verdade, mais simples do que muitas das elaborações poéticas que costumo fazer. 

Já das suas costas largas eu prefiro não falar.

Morte interior

Supostamente estou mais descansado hoje e, por esse ângulo, eu deveria estar mais apto a avaliar os últimos dias sem a interferência do cansaço extremo, o que possibilitaria uma visão tanto mais colorida ou menos irritada, mas não foi o que aconteceu, pelo contrário. Quanto busco no meu peito algo de bom continuo sentindo a mesma aridez dos momentos de angústia mais intensos, ou seja, a desesperança que me tomou não foi resultado da irritação ou, tampouco, do cansaço extremo, mas apenas se revelou por causa deles, senão que agora ela simplesmente veio mais ainda à superfície.

Bem, acho que isso pode ser dito do que mais se marcou no meu peito: da inutilidade de nossos esforços. De todo suor derramado em prol de sorrisos banais, de superficialidades, de ser obrigado a tratar bem pessoas que não merecem respeito algum justamente por não serem ninguém, e algun os tratam como se fossem deuses. Como isso é desprezível. Se isso é ser um deus então eu não preciso de vocês!

Sobrou ainda uma dúvida, não que seja coisa, que é justamente como alguém realista pode ficar tanto tempo próximo, e sentindo-se confortável com alguém que é esse todo oposto, que não vê absolutamente nada da realidade, a não ser o seu mais imediato. Os opostos realmente se atraem? Ou seria na verdade que meu pessimismo é que se opõe e afasta? De todo modo vou dormir hoje também, aproveitar uma brecha de um dia fresco e chuvoso no verão, obrigado por isso Baía da Babitonga e, quem sabe, acordar amanhã para mais um dia chato com uma resolução diferente. 

Aquilo que disse para minhas amigas, no calor (ou seria no frio) daquele momento, que me sentia completamente morto por dentro, não me animando nem mesmo na mais bonita das paisagens de que consigo me recordar, deve ser porque isso é verdade. Consigo ver e perceber o belo, mas isso é tudo, e não é bastante para fazer cair as escamas de meus olhos de que, se estivesse morto, ainda seria melhor. 

O valor para ir lá foi absurdo, e entendo que as pessoas consideram um tempo de qualidade como uam experiência de valor inestimável, no entanto, afora as horas que os envolvem, e todas as outras nesse ciclo de ímpetos incontidos, de gastos descontrolados, as consequências nos dias seguintes são notáveis. Minha conta bancária não se recuperará tão facilmente, temo que nem sequer sobreviva. Essas consequências eles não têm capacidade de entender. Mesmo que eu também gaste compulsivamente, as consequências se apresentam quase imediatamente. Mas talvez a verdade seja que, neles, realmente não haja tanto impacto, não dependem exclusivamente de si mesmos e da sua administração. 

Talvez eu também possa me desanimar sabendo que, na realidade, aquele não era um lugar para mim. O meu lugar é sentado no chão, tomando um vinho barato e ouvindo música, esse é o único luxo que posso me dar. Aquela é uma alegria para eles, homens e mulheres dispostos, iluminados de algum modo, capazes de irradiar algum brilho e de se assemelharem com fadas em jardins encantados ou seres desconhecidos em espaços limiares entre duas realidades distintas. Eu não sou um deles. 

X

Você disse que se sentia oca, até a podridão ressecou e não tem mais vida. Que não sentia esperança. Sobrevivia apenas. As vezes nem isso. Claro que me identifiquei, se tem algo que me sinto sempre é que nem mesmo sobrevivo mais, que meu corpo se tornou exatamente isso, uma casca oca, sem alma, sem vontade, sem desejo.

É possível chorar pelos outros porque já não choro mais por mim? Continuo chorando, silenciosamente e sem que percebam, porque é claro que não percebem. Mas quanto mais esse vazio aumenta, mais se torna difícil se compadecer de mim e, no entanto, continuo me emocionando com os outros. 

Continuo cheio de nada, imerso em desesperança. Tristeza tão profunda que parece que a fibra de meus ossos tornou-se brasa viva que consome minha carne, me faz ser cinza. E isso não é vida, não é nem subsistência... É ser pó, é ser nada, e ainda assim ter que ficar de pé diante de tudo, porque ninguém o vêm binguém o sabe. 

Sou como cadáver adiado, há muito morto, apenas esperando ser enterrado. 

É uma manhã fresca, mas uma lágrima quente corta meu rosto e se perde no emaranhado de minha barba. Fecho os olhos, reabro e percebo que ninguém o viu. A vida segue agitada, cadáveres continuam andando pelas ruas. Quantos mais estão mortos como eu?

Parece tão dificil olhar para o outro né? Acho que sim. Vemos apenas aquilo que queremos, o tempo todo, e qualquer coisa contra nossa visão já nos tira do sério. E eles se sentem enraivecidos quando percebem que eu não respondo como gostariam. Me deculpem, ó ilustres imbecis. mas eu não sou uma pessoa viva que responde a vocês. Simples assim.

“Sim, existe uma crise humana, pois a morte ou a tortura de alguém em nosso mundo de hoje pode ser examinada com um sentimento de indiferença, interesse amigável, experimentação científica, ou simples passividade." (Albert Camus)

A última visão

Último Crepúsculo: Epílogo

Finalmente, Mee chegou à montanha do Último Crepúsculo. O lugar onde a luz quebraria todas as maldições. Mee foi suavemente envolvida por uma luz laranja, a maldição dentro dela foi gradualmente sendo eliminada enquanto o corpo de Mee se transformava em pedra. No final, Mee se tornou uma estátua que olharia com alegria para aquela última luz para sempre.

A princípio Mhok não entendeu o que aquelas palávras, as últimas do livro que ele vinha lendo para Day nos últimos meses, queriam dizer. Foi o outro que, sentando numa grande pedra mas sem conseguir ver a cadeia de montanhas que se abriam a sua frente, o último cenário daquele livro, que o explicou o significado, que ele mesmo experimentava naquele instante:

- Acho que é bom terminar assim. Mee nunca mais vai desaparecer. Acho que o que o autor viu naquele dia deve ser tão lindo, mas tão lindo, que ele achou que não precisaria levar ela para nenhum outro lugar.

- Isso é um exagero - disse Mhok ainda sem entender e contrariado com o final da história - nada nesse mundo inteiro é tão bonito. 

- Há algo, um momento em que você poderia viver ali para sempre. Eu acabei de entender. 

Mhok tinha levado o namorado ali mas estava inconformado, com o final da história e com as nuvens que tampavam o sol entre as montanhas, ele esperava que a última visão do outro fosse inesquecível, a melhor memória antes que seus olhos se tornassem escuros para sempre. E ele até descreveu como queria que fosse, um céu em tons de laranja, com o círculo da luz do loz brilhando forte, e quem sabe um arco-íris completando essa idílica visão. Mas, por entre as nuvens cinzas, foi Day quem viu e descreveu ao outro que, embora enxergasse, não via nada disso:

- Olhe novamente com mais atenção. Vê? O céu um gradiente do vermelho que passa ao laranja e o amarelo. E lá está o sol: escondido no horizonte, brilhando através das bordas das nuvens. Parecem ondas no oceano. 

Mhok fechou os olhos por alguns instante e, ao abri-los novamente se surpreendeu com o que via a sua frente, exatamente como Day descrevera e como ele sonhara. Ele entendeu também que era assim que funcionava quando ele mesmo descrevia as coisas para o outro. Day, que já não via mais do que alguns borrões há vários meses e, nas últimas semanas e especialmente nas últimas horas piorava ainda mais, imaginava tudo assim, ao ouvir pela voz do amado, mesmo enquanto, entre tropeços, ele subia a ingreme estrada que levava ao topo daquela montanha.

- Estou vendo agora, tão lindo quanto você acabou de descrever. Então - disse virando-se pro outro - você já viu tudo o que queria ver?

- Ainda não. Ainda há uma última imagem. - Day disse enquanto esticava os braços para tocar o rosto do namorado sentado ali ao seu lado - Você está sorrindo? - Disse tocando os lábios de Mhok que tentava não chorar.

- Uhm - murmurou em resposta, tentando a todo custo conter as lágrimas porque ele sabia que Day já não vi mais do que borrões que, a cada minuto, ficavam mais e mais escuros, desaparecendo com tudo, engolindo todo o mundo como um buraco negro. 

- Não minta para mim! - E ao ouvir isso Mhok já não conseguiu mais se segurar enquanto o outro se aproximava, um palmo de distância, mas já sem conseguir ver nada, apenas sentindo uma lágrima quente escorrer pelo seu dedo, descendo pelo rosto que ele segurava tão ternamente - É isso, essa é a última visão que eu queria ter! 

E então tudo ficou completamente escuro. Day ouvi apenas o vento no alto da montanha e os soluços do namorado que, sabendo que ele ficara completamente cego e que a sua última visão tinha sido o seu rosto, iluminado pelo gradiente vermelho, laranja e amarelo do céu, pelo halo de luz do sol e o arco-íris que, refletido nas gostículas de chuva das folhas que cobriam aquela cadeia de montanhas numa pequena província no inteiror da Tailândia, os iluminava e gravava, queimando em seus corações, aquela cena que ficaria para sempre.

Ali eles entenderam o significado da visão. Não apenas da visão como sentido, como forma de conhecer, mas como forma de guardar e significar o mundo ao redor. Muito embora Day não visse mais o que o cercava, ele vivia pela guia do outro, imaginava de acordo com o que ele lhe dizia, ou quando ele mesmo tocava. Mas aquela imagem, a última visão borrada, do rosto de Mhok, chorando e forçando um sorriso para que a sua última visão não fosse triste, era a mesma do fim daquele livro: uma visão tão linda, tão perfeita, que ele gostaria de se tornar uma estátua, que ficasse eternamente parada ali, olhando para Mhok naquele lugar mágico da sua última visão, para sempre. 

E, aproximando a um palmo do rosto do outro, ele gravou em si aquela imagem. Do homem que, para ele, lhe aquecia mais do que o próprio sol, e que era mais bonito do que a combinação de cores naquele céu. Mesmo deslumbrante a paisagem como era, era a presença do outro ali que tornava aquela a visão, a sua última, a mais bela de todas. ~

~

Inspirado na série tailandesa Last Twilight, da GMM TV

Andy, Buck e Eu numa tarde fresca, e estúpida

"As pessoas fazem um grande estardalhaço sobre o amor pessoal. Não precisa se uma coisa tão grande. Igual a viver - as pessoas fazem um grande estardalhaço sobre isso também." (Andy Warhol)

Não sei bem o que pode ter desencadeado isso, talvez seja apenas uma daquelas coisas que brotam naturalmente da alma humana e vem até a superfície mas, por alguma razão, eu me perguntei: e se desse mais uma chance ao amor? 

Mas então eu me lembrei que já havia concordado e decidido, não apenas no íntimo mas até marcado uma data para isso, que eu iria desistir, desistir de toda e qualquer tentativa, desistir até mesmo de acreditar no amor, em qualquer que seja a sua forma humana. 

Isso porque eu já sei bem que não há como o amor dar certo para mim, não há então necessidade de tentar, tudo o que pode restar é apenas decepção. Então não me importo se ele passa por mim e me ignora, não importa se ele não responde as minhas perguntas, não importa, nada disso, se me importar só estarei alimentando alguma centelha de esperança, o que só dará abertura a novas decepções, e foi justamente isso que me trouxe até aqui, a essa vida cética, sem graça, de lente sépia e com uma sensação de vazio que nunca passa. 

Por isso eu não posso esquecer, daquela tristeza profunda que o amor me causou, não posso esquecer ele só pode trazer dor e decepção, e que os sorrisos das pessoas são esteriores a mim, o meu sorriso nunca é real, é apenas uma máscara que eu nem mesmo sei que em que momento comecei a usar. O amor só existe nos livros e nas séries, só serve para que as pessoas, acreditando nele, não desistam de tudo o mais também como eu.

E então o que me resta é tornar-me esse pária, alguém que não crê no amor, e que já desistiu também de tudo mais. Alguém que olha para toda a experiência do ser com tédio. 

Isso porque a decepção com o amor foi tão grande, tão devastadora, que todas as outras coisas foram destruídas quando aquele castelo ruiu pela última vez. Amizades, outras alegrias, trabalho, lazer, tudo isso se foi num buraco negro, restando apenas uma realidade cinza, monótona, como um dia nublado em que não se tem vontade de fazer nada. E hoje é assim, ontem também o foi, e amanhã também será.

Hoje, por exemplo, é um dos dias mais bonitos que consigo me lembrar. O sol brilha mas não está tão quente, seria ótimo para ir a praia ou um rio, ou até pra ficar em casa, lendo na sacada ouvindo música, ou tomando uma cerveja... Mas, mesmo assim, eu simplesmente não consigo me animar. 

Olho pela janela e tudo o que sinto é uma imensa vontade de dormir me invadindo o peito, uma desesperança profunda. E isso não foi por conta de um amor que não deu certo, talvez nem por todos os que não deram certo, não é simples assim. Seja abandonado por quem mais ama, mais vezes do que consiga contar. Amigos, amantes, seja traído por todos que, sem nenhuma consideração, pisam e esmagam seu coração. Aonde quer que olhe só veja miséria, do tipo moral, absoluta: pessoas cuja maior realização da existência é encontrar-se com outras pessoas para falar como a vida é boa e celebrar as celebrações da vida.

Eu sequer consigo entender. Celebram o sexo mas duvido que o façam tanto assim. A comida não é assim tão boa, o vinho tampouco. Ficar bêbado é até bom, mas o vinho que eu tomo vale menos que uma taça do deles, então porque não preferir beber mais? Tá, eu sei que é qualidade, o que estou dizendo é que eu não enxergo essa coisa boa. Organizam eventos que demandam esforço e pessoal, para não darem atenção ao evento enquanto falam sobre todos os outros eventos que foram e não prestaram atenção. Esse ambiente de banalidade, no entanto, se estende indefinidamente ao meu redor. Todos acham que têm razão, eu não tenho nenhuma.

Tudo isso foi gerando então uma perspectiva extremamente pessimista em mim sobre tudo, todos e, especialmente, sobre mim mesmo.

Por isso, mesmo num dia lindo como hoje, domingo fresco de verão, eu prefiro dormir e não ver nada e nem ninguém, afinal, todos estão sorrindo em algum lugar, felizes ao que parece, mas eu, eu só consigo ver o quanto tudo isso é chato.

”Nunca me senti só. Durante um tempo fiquei numa casa, deprimido, com vontade de me suicidar, mas nunca pensei que uma pessoa podia entrar na casa e curar-me. Nem várias pessoas. A solidão não é coisa que me incomoda porque sempre tive esse terrível desejo de estar só. Sinto solidão quando estou numa festa ou num estádio cheio de gente. Cito uma frase de Ibsen: ‘Os homens mais fortes são os mais solitários’. Viu como pensa a maioria: ‘Pessoal, é noite de sexta, o que vamos fazer? Ficar aqui sentados?’. Eu respondo sim porque não tem nada lá fora. É estupidez. Gente estúpida misturada com gente estúpida. Que se estupidifiquem eles, entre eles. Nunca tive a ansiedade de cair na noite. Me escondia nos bares porque não queria me ocultar em fábricas. Nunca me senti só. Gosto de estar comigo mesmo. Sou a melhor forma de entretenimento que posso encontrar.” (Charles Bukowski, entrevista ao ator Sean Penn em 1987)

Amor equívoco

Eu saí receoso com o calor excessivo dessa manhã ensolarada e achei que, ao caminhar depressa, estava ficando sem ar por ter ficado tantos dias parado. Pensei em como iria transpirar no trajeto até o ponto de ônibus e como o verão estava se prolongado demasiado fazendo com que eu tenha de suportar o sol escaldante ainda por dois meses até que comece a refrescar. E achei mesmo que precisaria me esforçar mais para vencer o cansaço, já que respirava como se acabasse de correr uma pequena maratona. 

Senti meus pulmões arderem e, ao colocar a mão no peito, entendi que não estava assim por causa do esforço, não, senti que coração é que havia se inflamado, ao olhar o céu brilhante de Santa Catarina, a luz quente banhando meu rosto e corpo e, a sua imagem me banhando a alma. Meu coração se inflamou e eu suspirei de amor, uma ou duas pessoas o viram, não tem problema, que saibam que nessa manhã viram um homem suspirar de amor, numa clara manhã de verão, de amor em vivas ânsias inflamada.

Mas é claro que eu não posso te falar isso. Então eu engoli esse sentimento, respirei fundo mesmo contra a vontade de meus pulmões e tomei um ônibus.

X

Agitado demais para conseguir sentar e escrever com a paciência requerida, infelizmente me deixei levar pelo ambiente ao redor e hoje estou ansioso. Apelei pra uma dose baixa de Rivotril que conseguiu, ao menos, relaxar as minhas pernas que tremiam sem parar, mas ainda não conquistei a minha tão querida veia poética para olhar lá fora pela janela e, vendo a chuva que caiu aplacando um pouco a violenta onda de calor que passa pela cidade, e então falar um pouco sobre como, mesmo no meio dessa agitação toda, eu procurei você, e não o encontrei. 

Em ti, que és meu aposento
És minha casa e morada.
Aí busco, cada momento,
Em que do teu pensamento
Encontro a porta fechada.

Santa Teresa D'Ávila

X

Eu queria só entender, realmente, de que modo, como posso amar tanto você. Você pode me dizer? 

O calor diminuiu um pouco, está nublado, talvez o sol tenha se intimidado e se escondido atrás das nuvens. Embora ainda esteja abafado, está mais suportável que nos outros dias, e só o que não mudou foi mesmo o que eu sinto por você. 

Eu só não consigo entender, mesmo à distância, mesmo sabendo a verdade, mesmo assim, como posso amar tanto você?

Assim como a chuva vem e passa, como o sol caustica e depois se vai, como o frescor que às vezes dá lugar ao calor intenso, como as mudanças do tempo o meu coração vai palpitando, mas sempre é possível encontrar você nele, seja como aquela brisa por entre as açucenas olvidada ou ainda como calor que aquece o peito enquanto me enrubesce a face, você sempre está aqui comigo.

E muito mais do que eu queria, mais do que eu consigo suportar, porque isso só me torna cada vez mais brutalmente consciente do meu lugar, da minha verdade. E é uma incrível ironia, que sonhar ao alto céu contigo seja justamente o que mais me coloca os pés no chão. 

X

Te espero sempre
tu, homem de erros,
de um amor equívoco
mas abrasado

Mariana Ianelli

Do sopro que falta em mim

Não me recordo de ter vindo tão forte assim, em tão pouco tempo ter ficado tão abatido. Com as oscilações de temperatura variando num espectro de mais de dez graus em poucas horas era de se estranhar que as crises respiratórias não tivessem aparecido ainda. Agora, parece que ela resolveu obedecer aos avisos da prefeitura sobre os picos de maré e do volume de chuva, com uma frente fria se aproximando da Baía da Babitonga o meu corpo reagiu de um jeito retardado mas com a mesma força dessa massa de ar: incontrolável.

Assim como as pessoas não podem ter nenhum controle sobre o clima, como ficamos sujeitos aos seus desmantelos, a minha respiração atendeu ao chamado dessas leis naturais, tão fortes quanto quase imutáveis. O tempo, inclemente e cruel, meu corpo fraco e submisso. Já não conseguia nem mesmo falar direito em meio as crises de espirro que me machucaram a face dos tecidos que nela esfregava. Meu corpo dolorido do esforço, a garganta por perder a voz e o coração tentando encontrar algum refúgio na escuridão da noite fresca que, em pleno verão, me fez perceber que não é possível lutar contra um furacão que destrói tudo furioso mas é igualmente inútil lutar contra a força silenciosa da umidade que recobre tudo que toca. 

Em chamas ardia o meu peito, manchas roxas e vermelham surgiam no meu rosto, a água brotava de mim como numa fonte, revirava de um lado a outro, inquieto, recorria aos remédios desesperado, mas nenhum deles funcionava. Tomei três comprimidos de uma cartela, meio vidro de um xarope, tomei chá, mais alguns comprimidos, e nada surtiu efeito... Só depois de ir ao hospital, de uma injeção dolorida e de quatro horas de sono profundo, é que recuperei pouco a pouco a claridade, da visão e da respiração. Agora, já sinto um pouco o perfume misturado de hortelã pimenta e cânfora branca, que usei para ajudar a fluir melhor a respiração, mas o corpo dá sinais de não ter se recuperado ainda. 

Uma pequena dor incomoda meu dedo maior, enquanto meu abdômen também reclama do esforço contínuo de toda a noite. Em verdade só quero dormir, por quantas horas forem possíveis... E queria conseguir transformar em poesia esse incômodo. Acho que é mais fácil poetisar uma dor no coração do que uma no peito. É mais fácil falar de como a minha respiração muda ao pensar nele do que de uma crise de asma... Até na doença as da alma são mais belas, embora mais dolorosas que as do corpo e, embora também, se dando na alma eu as sinta no corpo.

Até que esse último parágrafo não ficou de todo ruim. Talvez ainda exista salvação para minha poesia. Para meu corpo e minha alma não.

Interessante notar como, em face do sofrimento corporal, tudo o mais perde o sentido. Enquanto estava deitado na cama, com todas as dores e os incômodos, eu não conseguia pensar em mais nada. Não havia contatos a serem feitos nem respondidos, não havia prazos, não havia horários, nada disso. Eu apenas me concentrava em todos os protestos do meu corpo. 

Mas, até ali, onde tudo doia, onde tudo estava desconfortável, ainda havia lugar para o meu amor. Irônico, mas talvez seja porque o amor é a única doença pior do que todas as outras. 

"A sociedade é como o ar: necessário para respirar, mas insuficiente para dele se viver." 
(George Santayana)

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Histórias e seus heróis

Último dia de férias. Luto absoluto, como se minha própria mãe tivesse morrido. E nem é pelo trabalho em si, que aliás acho difícil imaginar como eu conseguiria coisa melhor, sinceramente. Mas é pela continuidade. Esses dias de férias significam meio que uma pausa, uma não existência antes de voltar e, eu me lembro de ter desejado profundamente, com toda sinceridade de alma, que eu não chegasse com vida a esse ano. Conforme se aproximava a virada eu me lembro da tristeza profunda que me tomava de conta, do silêncio angustiado, dos males que saturavam a minha alma, e minha única prece era de morrer antes que se iniciasse um novo tempo, antes que esperassem mais de mim, antes que me pedissem por mais...

Sei que isso é apenas uma demonstração de fraqueza, de um espírito que já se deixou dobrar. Isso não é novidade. Carne, sangue, espada e alma, tudo isso já foi completamente esmagado, não sobrou mais nada. E não me importo que vejam essa fraqueza, que já não sou mais homem e sim um farrapo a redemoinhar ao vento. O que me incomoda é que as pessoas não enxergam isso. Elas riem de mim achando que isso é um drama qualquer ou que, por sorrir, isso são apenas palavras vazias, mas eu digo categoricamente: essas palavras são meu verdadeiro eu.

Isso é uma verdade profundamente arraigada no meu ser. E cada vez que alguém me diz como devo viver a minha vida, como devo comer ou parar de beber, tudo isso não passa de um grande incômodo. Isso porque essas pessoas não entendem que, na verdade, eu não tenho nenhum interesse em viver mesmo. A vida para mim é apenas uma enorme chateação, e a morte não fica atrás. Viver é um saco, morrer é um saco. E todos os conselhos das pessoas que me rodeiam é um saco. 

E claro que, quando busco em alguém algo que possa ser um acalento nessa perspectiva tão fria, bem... Digamos que já estou acostumado com o silêncio, e por isso eu preciso parar de falar aos outros sobre isso, preciso porque essa experiência humana profunda, essa aridez absoluta fruto do meu pecado, isso os outros não podem entenderm, não podem sequer tentar compreender.

Me recordo então brevemente daqueles grande nomes que se marcaram na história. Alexandre, Aquiles, Aristóteles, tantos santos... Nomes que corresponderam ao seu espírito e que, enfrentando as consequências, as mortes e as maledicências, ficaram. Os anos passam, os séculos passam e eu, incontáveis gerações depois, ainda leio sobre seus feitos, sobre sua coragem, sobre sua busca pela salvação, pela verdade eterna e sublime. Esses nomes ficarão não importa quanto passe. 

Não apenas o meu nome não será lembrado nem mesmo pela próxima geração, ainda em vida eu já sou apenas aquele pobre carregador de flechas que, ao lado de um grande guerreiro que nem sequer soube meu nome, e que acabou por ser atingido por seta inimiga, sendo pisado e coberto de terra e poeira, esquecido nas areias do deserto. 

Já estou, no entanto, acostumado com o silêncio das pessoas quando digo isso a elas. Que nessa vida existem aqueles heróis que viverão eternamente em nossas histórias, e existem aqueles que terão uma memória tão breve quanto uma brisa na praia. Eu sou apenas pequeno grão. Também estou acostumedo com seu silêncio. Você sempre me deixa assim, sozinho, sem resposta clara. 

Recomeço, infelizmente, sem forças, sem vontade, sem ânimo... Carne, sangue, espada e alma, tudo isso já foi completamente esmagado. Viver é um saco, morrer é um saco. E todos os conselhos das pessoas que me rodeiam é um saco. 

Eu não sou um herói como Aquiles, nascido de uma deusa e banhado nas águas sagradas, de pés velozes e com um destino a escolher: casar-se e ser feliz e lembrado até os filhos de seus filhos ou morrer pelejando na guerra e ser lembrado pelos séculos vindouros: eu sou um homem patético, tateando no escuro. Não tenho um exército para derrotar, não luto pela minha honra, eu apenas sou um moribundo condenado, entre o niilismo e a angústia metafísica. 

Aquiles exitou entre a vida tranquila e a glória eterna da guerra, entre o que lhe seria dado de bom grado e o que ele precisaria lutar para marcar-se nas areias do tempo. Ofereceram a Aquiles o futuro, a vida eterna ne mente dos homens de coragem. Hoje eu já pensei em me matar três vezes, e tomei uns seis remédios para dormir diferentes.

É tão inconcebível tentar compreender Deus? Por que Ele se esconde em promessas e milagres que não vemos? Como podemos ter fé se não temos fé em nós mesmos? O que acontecerá com aqueles que não querem ter fé ou não tem? Por que não posso tirá-lo de dentro de mim? Por que Ele vive em mim de uma forma humilhante apesar de amaldiçoá-lo e tentar tirá-lo do meu coração? Por que, apesar de Ele ser uma falsa promessa eu não consigo ficar livre? Você me ouviu? (O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Dia de Ira

Dia de Ira.

Grande. Fluindo pelos meus olhos.

Os últimos dias das minhas curtas férias já chegaram, pretendia aproveitar esses momentos para fazer algo que pudesse me animar de algum modo, que pudesse me ajudar a retornar mais otimista, maduro, ao menos que pudesse criar um lugar para onde eu teria vontade de voltar ao fim do dia. 

Mas o que tenho vivido é um inferno. Porque a minha família simplesmente dicidiu aceitar que todo tempo tenha alguém morando com a gente, e sempre tem, sempre tem, sempre tem! Nunca tenho espaço, liberdade, sempre algum incômodo. Que inferno! Vão viver os seus incômodos longe de mim!

Eu não sou uma pessoa sistemática, eu não tenho mil rituais para sobreviver. Se um homem não tem paz nem mesmo para contemplar a própria miséria enquanto bebe o vinho mais barato que ele achou, onde ele encontrará paz? Eu não tenho filhos, não namoro ninguém que tenha filhos. Mas ainda assim tenho que suportar choros, birras e incômodos nos momentos simples que eu ainda tenho?

E é só isso que eu queria. Eu queria não chegar em casa ouvindo música de bandido, eu queria não ter uma bagunça ao meu redor mesmo logo depois de deixar tudo em perfeita ordem sabendo que a desordem vem de uma pessoa que não moveu um dedo para ajudar. Eu não quero acordar de madrugada com cheiro de comida sendo frita e impregnando na casa toda, eu não quero ouvir ninguém transando de madrugada. Eu só quero poder ver a porcaria da minha série em paz, eu só quero assistitr em silêncio, porque amanhã minha rotina recomeça, e lá eu vou desejar voltar pra casa, e em casa eu desejo estar em qualquer lugar que não seja minha casa. Me vejo então de novo igual Jerusalém:

Escrava foi desterrada, 
em terra estranha hoje mora 
sem paz, sem lar, sem pousada. 
(Lamentos de Jeremias)

Não me importo que pensem que são melhores do que eu. O são, eu sou apenas um velho pobre e desgarrado, patético, então sua visão corresponde com a da realidade. Está tudo bem, não é como se ainda houvesse vida em mim para me importar. Eu não sou inteligente o bastante, não fui atrás de títulos o bastante, não sou bonito o bastante, nem interessado o bastante. Mas tudo bem, ainda que eu não seja bom o bastante, para ele ou qualquer outro, eu sou apenas o que sou, e eu sei que não é o bastante, mas é só o que posso ser.

Minha vontade seria estar em lugar nenhum. Tomo mais trinta gotas de Rivotril, um Zolpidem, um Ciclobenzaprina e uma taça de vinho. Sim, uma taça de vinho, que eu comprei com meu salário e que eu sei que pode me fazer ficar doente, e eu espero que seja logo pois, pelo que vejo, só haverá paz quando finalmente forem ouvidas as minhas preces:

"Deixai, agora, vosso servo ir em paz, 
conforme prometestes, ó Senhor."
(Lc 2, 29)

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Depois de uma noite acordado

Virei a noite revendo uma série de Taiwan de alguns anos atrás, We Best Love, sem realmente estar interessado mas, ao mesmo tempo, me deixando levar pela beleza dos protagonistas e a promessa de dormir hoje o dia todo. A verdade é que bem pouca coisa tem conseguido prender minha atenção atualmente e, felizmente, algumas séries ainda são o que mais se aproximam de conseguir fazer eu parar para pensar, já não no tom filosófico ou romântico de antes mas como que um alimento simples que logo deixa com fome de novo, mas ainda é um alimento, ainda é algo que, por mínimo que seja, me faz sorrir ao ver os rostos perfeitos, os sorrisos bonitos, os corpos fortes e aquelas situações cômicas cheias de tensão... 

Ainda gosto de acompanhar a vida alheia, sabendo que nada na minha terá essa emoção ou comoção. O que mais me acontece é receber as mensagens incovenientes de gente chata e um amor não correspondido por um homem distante e um certo quebranto pelo vizinho da esquina que mais se tornou um objeto de veneração platônica do que um sentimento real. Quando converso com ele percebo que não é isso, foi um encantamento pela aparência delicada dele que me atraiu mas que, passados os instantes iniciais das primeiras conversas, percebo que não há como ir muito além. 

E percebo ainda que continuo sozinho. Nas histórias que assisto apareceria um homem perfeito que veria em mim algo de encantador e se aproximaria, mas isso só acontece nas histórias mesmo. Os homens perfeitos estão atrás de outros mais perfeitos ainda e, como ninguém perfeito, todos se debatem debilmente em busca de coisas que não existem. 

Mas pelo menos eu vou dormir um pouco hoje, um dia a menos nesse mundo tão vazio. Menos um dia olhando pela janela com indulgência e, suspirando, pedindo que uma catástrofe destrua tudo de uma vez ou que, no mínimo, eu possa ter uma morte idiota que me livre dos idiotas. 

Eu só queria não ser... 

Não ser inferior, não ser tão carente, nem tão melancólico, nem tão sonhador, com os corpos perfeitos, com os sorrisos iluminados, com os cabelos tão bonitos, com o afeto demonstrado. Eu só queria poder olhar um homem bonito e passar adiante, sem me sentir com isso o pior dos homens. E o problema é que eu nem mesmo consigo olhar isso e tomar como sonho, ainda que impossível de se realizar, não, eu nem sequer considero isso, a possibilidade, só olho pra tudo isso com pessimismo brutal. 

É por isso que eu não me importei quando você me disse que me via como alguém pequeno, bem menor do que você. Acontece que nada que você pense de mim será tão ruim quanto o que eu penso de mim mesmo.

Me vejo como um velho moribundo, daqueles que, vivendo em perdição, olham para traz arrependidos por não terem feito nada da própria vida além de chorar os amores que passaram como lhe passaram os anos. Mesmo que nem todos os meus anos tenham se passado, os meus amores sim. 

E os remédios já fazem efeito mais uma vez e a visão já fica turva... Ontem tomei energético pra me manter acordado, hoje me dopei com tarja preta pra apagar. Sei que nada disso é saudável mas, na verdade, espero mesmo que isso possa dar cabo de mim rapidamente. Que seja lembrado como um viciado moribundo que morreu cedo por tomar remédios demais e que poderia ter sido grande escritor. Mas bem, quem é que liga para bons escritores? 

"Se pudesse desejar algo pra mim, não desejaria riqueza nem poder, mas a paixão da possibilidade; desejaria apenas um olho que eternamente jovem, ardesse de desejo de ver a possibilidade" (Kierkegaard)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

A criatura doente

Sei que lá fora o mundo pulsa vivamente. Ouço alguns pássaros, vejo a luz do sol entrar pela janela de manhã, vejo as fotos das pessoas nas praias ou visitando seus parentes, dos bares, restaurantes, das cervejas e dos drinks... Tudo isso deveria me dar ideias, deveria me fazer querer ir também, querer viver  assim ou algo, seja ir a cinema, seja caminhar à beira do mar sentindo a brisa fresca no meu rosto. Mas eu não consigo.

Eu me deito, e fecho os olhos para ignorar meu armário cheio de mofo que já deveria ter limpando há semanas, ignoro o cheiro de suor nos lençóis porque também não tenho coragem para lavar. Em alguns dias minha cabeça estará ferida porque não consigo lavar o cabelo, ou a pele oleosa e a barba grande, porque nem tenho conseguido cuidar de mim. Tenho bebido todos os dias e ficado chapado de tarja preta também, para que os dias passem mais rápido, mas aí as férias vão passar rápido também, e logo mais eu vou reclamar que é o cansaço que me faz ficar desanimado e indisposto, mas e agora? 

O que me impede de viver senão que vivo com o mesmo sem vontade com que vim ao mundo? Me sinto como que alguém doente que, estando com uma dor intensa e que não diminui não importa que faça ou o remédio que tome, só consegue pensar nessa mesma dor, só consegue concentrar-se nela como se, de tudo quanto existe, apenas ela realmente importasse. Isso porque uma dor, quando o é realmente, não pode ser ignorada e se justapõe a tudo, se torna o centro de tudo, ainda que na realidade não seja verdade, apenas a percepção do moribundo é que se encontra doente.

Assim me vejo com relação ao meu amor, aos meus sentimentos, mas não quanto ao sentimento a uma pessoa específica, mas ao sentimento de solidão, a essa dor silenciosa, quieta que vai se expadindo pouco a pouco e que, vez ou outra, me faz confundir tudo. Me encontro então na dor da falta de amor, na dor de amar sem ser amado e, o mundo inteiro comparado a isso, tudo o mais não vale nada.

É por isso que nem mesmo a beleza das ondas do mar ou o verde brilhante das folhas, a brisa fresca me encantam... É como se minha carne estivesse doente, e eu chego realmente a desejar estar doente, num exercício mórbido em que posso finalmente viver sem me preocupar em agradar ninguém porque estou morrendo, e então talvez me deixassem em paz para contemplar a miséria da existência em silêncio e, quem sabe, me desesperar pela salvação.

Essa doença, que às vezes vejo como manchas em mim, é esse amor descontrolado, esse desequilíbrio que, como um câncer vai destruindo tudo no organismo, tornando o que era vivo em funcional em carne podre. Pouco a pouco eu vou me desfazendo assim, 

Como um rio que, represando a sua água, começa a turvar-se, eu me vejo parado e sujo, e o que antes era vivo, que corria livremente, fresco, agora está parado e tornou-se impróprio para dele beber. A cristalina fonte secou, só o que restou foi água misturada ao barro. 

E então, como que caído nessa água também, não encontro forças de lutar, não consigo me levantar, apenas olho para cima, sinto o calor do sol na minha pele, fecho novamente os olhos e torço para me misturar a essa água, para sentir meu corpo se desfazer, para me entregar a algo maior, mas que não sinta ser eu, porque por algum motivo eu estou quebrado, eu estou doente, eu não consigo...

Como Kirin adoentado, criatura pura e celestial que, ao ver o pecado adoece por não conseguir fugir do cheiro de sangue que impregna todo o ar. E as manchas desse pecado já recobrem meu corpo, assim como já vejo diante de mim as ilusões que indicam o estado terminal de minha doença, já clamo aos céus rasgando os véus que me rodeiam sem ouvir em resposta nada além dos passos apressados do exército que invade meu castelo procurando me matar pois uma criatura pura doente, significa que já não é mais pura e perdeu sua serventia.

"O amor é a mais negra de todas as pragas..." (O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman)

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Intimidade

Obra de Joseph Loruso

Em público eles evitam se olhar muito, para que a intimidade daquele brilho não os denuncie. Por baixo da mesa, numa praça de alimentação lotada, eles encostam levemente os dedos, como que despercebidos, mas a verdade é que estão conectando a eletricidade que passa pelo corpo de cada um. 

No quarto fechado, porém gravados por uma câmera, eles revelam então desejos que ninguém naquela praça imaginariam. Um certo nível de erotismo que despertaria na maioria das pessoas um sentido de moralidade repentino. É que ali, sem ninguém por perto, eles dão vazão a toda aquela eletricidade que antes guardavam. 

Não vou me deter aqui num relato, isso não é um conto erótico. Mas, uma coisa que me pega bastante é que certas atitudes, quando duas pessoas ficam juntas, compartilham tal grau de intimidade, se ficam tão próximas, que não consigo compreender como o fazem sem serem próximas de fato, ao passo que muitas vezes pessoas realmente próximas não conseguem partilhar assim e acabam sofrendo, e sofrendo muito. 

Isso significa que uma coisa nada tem a ver com outra? 

Bom, assim como como uma análise da filosofia de Nietzsche não consegue revelar a existência de um nexo entre as diversas exposições do autor, como revelou o trabalho de Eugen Fink, secretário de Edmund Husserl, que encontrou cinco sistemas diferentes na filosofia do alemão. Se existem cinco é porque não existe nenhum, no sentido de que há uma linha que liga os pontos mais distintos dela, não no sentido de um desenvolvimento orgânico, coisa que quase ninguém consegue fazer, mas é que ele se diz e contradiz tantas e tantas vezes que se fica quase impossível saber o que ele está querendo dizer de verdade. 

Mas então, onde havia essa linha que ligava os mais distitntos pontos da filosofia de Nietzsche? Ora, na pessoa do próprio filósofo. Isso porque a filosofia não se pretende criar livros e nem mesmo sistemas filosóficos, mas ela cria filósofos, ela cria esses que buscam conhecer e compreender e que, só às vezes, conseguem organziar isso num sistema e registrar em um livro ou aula gravada (como nossa Mário Ferreira dos Santos).

Desse modo, esses elementos dispares do relacionamento com o outro, como a carência que causa as situações de sexo sem compromisso, de intimidade extrema e são, ao mesmo tempo, de absoluta superficialidade. Mas, se o sexo, compreendido com todos os circulos concêntricos que o abarcam e o contém, e as relações de intimidade estão, socialmente, em disparidade, no meu ser, no meu Kaoru Gabriel, elas se encontram, como uma em expressão da outra, e também ao contrário.

O sexo é a culminação do afeto, mas o afeto também se expressa em outras formas que também são poderosas, embora em menor escala em relação a relação propriamente dita. E então, na minha cabeça isso faz sentido, de algum modo, mesmo encontrando essa barreira: porque parece que as pessoas conseguem níveis de intimidade física cada vez mais absurdas ao passo que estão cada vez mais e mais distantes, vivendo em universos completamente excludentes. 

Talvez alguns poucos encontrem sua intimidade num toque leve de dedos num lugar cheio, e outros estão absolutamente distantes um do outro embora pratiquem o sexo mais intimo possível. Haverá homem feliz nesse mundo que consiga ambos? 

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Expressão Contemplativa

Foto: Igor Murilo, 2023

Tive de lutar contra alguns pensamentos intrusivos que insistiam em se tornar um amálgama com outras imagens que apenas compunham um panorama visual distinto. Aliás, panoramas visuais são uma excelente forma de relacionar ideias aparentemente distintas e desconexas entre si. num elo causal. Um esforço mental pode sem bastante enriquecedor em relacionar, por exemplo, a atmosfera de insegurança que dominava a Europa antes da Primeira Grande Guerra, com o formato romântico da Sinfonia N° 1 de Mahler, combinando elementos muito díspares a princípio, como um relacionamento fracassado do compositor, seu fascínio com grandes histórias e o ambiente da época.

Com efeito, Mahler tinha essa fascinação por grandes feitos, grandes proporções. Em suas obras encontramos personagens e referências a grandes passagens da história ou da literatura universal, como as referências a passagens do cristianismo nas sinfonias N° 2 "da Ressurreição", N° 4 e N° 8 "dos Mil" quando ele usa a primeira parte do hino cristão "Veni Creator Spiritus" e, no fim, os últimos trechos do Fausto de Goethe, além de muitas referências também nos seus ciclos de canções que incorporavam desde influências de canções populares até cromatismos da música chinesa, até então distante e desconhecida, vista até mesmo como estranha. 

Ele viveu então em grandes divísões. Durante o período mais feliz de sua vida escreveu a mais trágica das suas sinfonias (a de N°6, com toda razão chamada de "Trágica"). Mas, voltando a "Titã", já nessa primeira sinfonia ele deixava claro esse clima dramático extremo que, nascendo do relacionamento fracassado, o transcende imensamente e se encontra com o fracasso do amor ao próximo na guerra que já se anunciava. Por isso o clima de incerteza, dos momentos de lirismo que se contrapõe com uma marcha fúnebre criada a partir de uma música infantil, compondo um quadro bizarro onde vemos pequenos animais de um bosque conduzindo um caçador em seu funeral. O silêncio desse movimento é interrompido por um rompante de histeria, uma fúria abrupta que, após alguns instantes, como um furacão destruindo tudo por onde passa numa tempestade inclemente, dá lugar a um novo lirismo, de beleza impar, como o sol que se abre lentamente penetrando as nuvens pesadas, e termina num triunfo. Como não se emocionar com o brilho das trompas que os músicos tocam de pé com todo vigor antes do fim da obra?

Me recordo que meu pai, que me acompanhava num audição dessa peça pela Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro em Brasilia, acordou repentinamente durante uma passagem mais alta, e pude ver não só ele absorto na peça como emocionado, escondendo algumas lágrimas de mim e aplaudindo de pé o maestro por vários minutos. 

Mahler era uma alma que desejava a alegria em sua mais prístina pureza, e chegou a se converter ao catolicismo ao se deparar com a promessa da redenção, primeiramente pelo sacríficio, como vemos nos andamentos dramáticos da sua Sinfonia N° 2, mas depois pela redenção pelo amor, na longa Sinfonia "dos Mil". Consigo perceber, para além da tragédia de seus trabalhos, uma íntima sintonia com a doutrina cristã do fim dos tempos, a união com Deus.

Nele então se via alguém que conseguia combinar elementos distintos. Colocava a voz no mesmo plano dos instrumentos em muitos de seus trabalhos. Como não se impactar com os primeiros compassos do seu "Veni, veni creator Spiritus"? E, achando que o grande coro de vozes mistas e solistas serão o destaque acima da orquestra mas então, no intermezzo entre o hino e as falas finais do Fausto de Goethe vemos um andamento puramente orquestral, longo e de beleza sublime, divinal, que me faz crer que, Mahler não somente teve ali um vislumbre da redenção pelo amor como conseguiu congregar o que a Igreja mesmo diz em suas preces, pedindo a Deus que não olhe para seus pecados mas para a fé que anima seu povo eleito e congregado. 

Vozes em coros, solos, naipes das orquestras em formatos não antes vistos para combinar com as mensagens profundas do seu coração. Um martelo golpia impiedosamente o frenético último movimento de sua "Trágica", sinos nos remetem ao credo religisio, o xilofone nos faz ouvir a risada do diabo, temos ainda a presença de harpas, bandolins e celestas, criando a atmosfera delicada da música oriental combinada com o vigor ocidental: trágico ao estilo de Wagner. E não cedeu quando apontaram as discrepâncias de sua obra:

"O que vamos fazer é tocar para vocês a última parte da última peça da sua grande sinfonia, A Canção da Terra, parte da qual ouvimos antes, que é um dos finais mais bonitos que qualquer peça musical já teve. Agora, algumas pessoas ficaram surpresas quando eu disse que ia tocar isso hoje. Eles disseram: "O quê? Vais tocar aquela música longa, lenta e intelectual para os jovens? És louco - eles vão ficar inquietos e barulhentos. Eles não vão entender. É muito intelectual. E nem sequer termina com uma finalização estrondosa. Morre silenciosamente. Ninguém vai bater palmas.” Bem, eu conheço os meus jovens, e não tenho medo de tocar esta obra para vocês. […] finalmente a música extingue-se nesta palavra [ewig], sem parecer terminar. É quase como magia, este final maravilhoso. Realmente tem-se a sensação de que continua indefinidamente, para sempre, mesmo depois de parar. E se esta quietude mágica no final fá-lo sentir vontade de não bater palmas, simplesmente não bata. Eu entenderei."

Uma coisa que me encanta em Mahler é a forma como ele descreve as coisas, nunca de forma gratuita, cada nota, cada silêncio, tem um motivo e faz sentido de estar ali. Quando descreve uma paisagem, por exemplo na sua 3° Sinfonia, ele não faz uma simples descrição, ele reflete o olhar daquela natureza sob os olhos de uma criança, de um soldado, de um moribundo, de um pecador arrependido, a aparente permanência da paisagem se constrasta com as transformações que se passam na alma do sujeito. Potência e ato. O homem e seu devir. 

Um sujeito que olhe o pôr do sol se coloca diante da escuridão que se anuncia e que em breve se espraia infinitamente, é o desconhecido, aquela porção que assusta os homens desde o primeiro pensamento justamente porque não conseguimos controlar completamente a escuridão. Até afujentamos ela brevemente, com um fogueira ou lanterna mas, para além desse alcance, é o manto de Nix que recobre o orbe. Assim como andarilho, como aquele peregrino russo, meditando em seu coração a prece perpétua da Filocalia. Muito embora ele devesse andar naquelas paisagens largas e brancas de neve, também cabe aqui ele se sentrar no caminho, observar o sol despontar ao longe iluminando a grama de um verde esmeralda, a terra vermelha, torrão amado dos viajantes que caminham nas estradas do mundo rumo ao céu, e perceber uma coisa: permanência. 

O que há de mais permanenten do que a sucessão dos dias e noites? Repetem-se incasavelmente. Assim como a prece perpétua deve se repetir não para se impregnar no ser daquele que reza, mas para fazer parte do próprio.

A permanência que ele busca é exatamente a da natureza que o circunda e que ele precisa aprender a internalizar, é o universo exterior que o ensinará a prece perpétua. É o nascer e pôr do sol, é o correr das águas, essa permanência, impermanente porque acontece sempre mas acontece também diferente, como nos ensina o Pantha Rei de Heráclito. 

Olhando então o pôr do sol e as cores que se misturam numa miriade de tons, ou a beleza das esmeraldas folhas da grama no pasto daquele cavalo com uma seta na testa, essa permanente mudança me obriga a crer na crece perpétua, ao "orai sem cessar" do apóstolo São Paulo, me tornando não apenas mais próximo, mas partícipe do todo. 

Foto: Igor Murilo, 2023

domingo, 14 de janeiro de 2024

Noite de BL

Resolvi rever The Eighth Sense, graças às pessoas da comunidade de BL da internet que vivem colocando trechos dele na minha timeline e, agora, me surpreendo de não ter percebido a obra de arte que essa série é. 

Embora seja coreana ela não tem muito a ver com a estética dos doramas e, mesmo sendo intimista, ela tem uma fotografia um tanto mais próxima da japonesa, que usa bastante da luz natural para mostrar a atmosfera proposta e, como gravada na Coréia, ela tem uma luz fria, mas não aquela fria da artificialidade coreana (não é uma crítica) mas que dá um tom muito pessoal a essa obra. Então é como se a gente realmente estivesse mergulhando no mundo dos personagens. Mesmo no calor do verão catarinense eu pude sentir a brisa fria das cenas nas praias geladas do litoral coreano (ou pode ser a brisa gelada do litoral da Baía da Babitonga, onde moro, mas não vem ao caso).

Me senti bem ao dar a devida atenção a ela, podendo ver de novo aquele personagem tão angustiado do Lim Ji-sub, traumatizado, que encontra num calouro tímido um ambiente acolhedor onde ele pode ser ele mesmo, sem as máscaras que ele normalmente usa com todos os outros. 

Acho bela essa construção do outro como lugar de encontro de si mesmo. O protagonista encontrou na fragil relação com um desconhecido a liberdade de mostrar sua própria fraqueza, sua própria insegurança em nunca admitir seus traumas e nem demonstrar que a vida ideal que ele tem é, na realidade, uma farsa que se equilibra numa imagem frágil e decadente que, no entanto, poucos enxergam. 

Por trás de um homem confiante, sorridente, está um garoto ferido, truamatizado pela morte do irmão que, sendo quem o apoiava em seu sonho de não corresponder as expectativas da família (realidade brutal na Coréia de nossos dias), ao partir levou consigo essa coragem para enfrentar o outro. Ao que ele se esconde sendo um oficial perfeito, um aluno perfeito, um veterano perfeito. Por trás disso há um homem em pedaços, que necessita de remédios com frequência, que bebe para esconder as crises de ansiedade mas que, ao conhecer o outro, pode fugir e se conectar com um amor que, sendo desconhecido e, portanto, ignorado por todos, não carrega nenhum julgamento. 

Claro que o plot final traz justamente uma problemática onde esse relacionamento é posto à prova, e o personagem passa por meses de longa e profunda depressão, coisa mostrada com essa delicada fotografia e uma trilha sonora cativantes, sendo uma dessas obras que precisa ser assistida no silêncio da madrugada, como eu fiz, e sem interrupção, para que possamos realmente nos conectar com aquele mundo de dor, de trauma, mas também de superação por meio de um amor sensível, compreensível e, acima de tudo, belo em sua singeleza. 

Agora que o clarão da luz já se anuncia eu vou dormir, com o coração quente pelas cenas de intimidade, de uma simples caminhada lado a lado, de sorrisos tímidos, de olhares que escondem dor e amor, de um descobrimento belo, de como a intimidade pode ser motor da auto descoberta. Belo.

sábado, 13 de janeiro de 2024

Desânimo de Verão

“As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça." (Mt 8, 20)

Compartilhando mais um dia, ou noite, de absoluto tédio existencial. Não estava realmente prestando atenção aquela série que repetia de madrugada, nem nos vídeos que passavam no celular, tampouco nos estranhos que passaram na rua. Acho que só notei realmente a sua ausência e a brisa fresca que entrava pelas portas abertas da sacada, vez ou outra olhando as folhas de bananeira no terreno da frente balançando, nada parecido com o alerta de atenção aos vestos costeiros que havia recebido horas antes. 

Aliás, Já me habituei a ignorar esses avisos, quase todos os dias recebo um alerta de tempestade, pela proximidade com a Baía da Babitonga a chuva forte sempre cai no mar e não realmente aqui. Mas também ignoro outros tipos de sinais, avisos realmente perigosos aos quais eu deveria dar ouvidos.

Ignorei quando percebi que ia dormir pensando em você e acordava já pensando no que te dizer... Ignorei quando percebi que estava ficando cada vez mais próximo, que queria te contar cada pequenina conquista, que partilhava minhas dores ou que simplesmente comentava coisas pequenas do dia a dia. Ignorei quando percebi que te tratava como "meu amor" e que atualizava você de cada momento da minha rotina, como quando saía do trabalho e estava chegando em casa. Ignorei tudo que significava já uma manifestação da dependência emocional que, hoje, venho demonstrando, já estava dada ali, em germén. 

Tudo se manifesta lentamente, se espalhando de modo quase imperceptível, como raízes na terra do coração ou como um câncer, até domir e apodrecer todo o corpo, de dentro para fora. 

Pensei em escrever para você privadamente cada vez que me lembrasse de você. Mas aí uma outra voz me alertou que, sendo esse um gesto que namorados normalmente fariam, não seria de bom tom exagerar esse nível de exposição. Não precisamos de mais humilhações. Não farei isso. Não enquanto qualquer outra coisa, como a cópia pirata de um livro tiver mais importância do que o oceano de sentimento que lhe ofereci. Até mesmo no meio da noite, quando tudo que eu fazia era pensar em você, você se preocupava mais com o alimento da alma devota do que com meu sentimento, e isso diz muita coisa. 

Continuo nessa existência, não me atrevo a chamar de vida, patética e miserável. 

E enquanto isso o vento continua lá fora, junto ao calor escaldante. As folhas das árvores se curvam ante a imponência de Zéfiro. Observando essas folhas ao vento eu sinto como se muito de mim também se perdesse entre aquele rodopiar infinito, sem rumo, sem fim... 

O desânimo continua mesmo pela manhã seguinte, quando a brisa fresca deu lugar ao calor intenso e impiedoso, brutal, como a perspectiva da existência. E ainda sou obrigado a aguentar as pessoas, claro, falando alto enquanto eu queria assistir ou estudar, todos meio incomodados com o calor mas incapazes de tentar algo que ajuda a faciliar esse mesmo estado. Aquele viveiro malfito continua ocupando espaço na varanda, não dá pra ficar lá mesmo sendo o lugar mais fresco da casa. O volume de tudo, televisão, liquidificador, vozes, me estressa mais e mais e pelo abafamento nem consigo optar por ligar o difusor, estando quase engolindo os óleos de uma vez só. 

Qualquer um que leia isso pode se perguntar se esse é o único motivo da minha aparência quase mórbida. Quem quer que me olhe com o mínimo de atenção vai perceber que eu estou simplesmente aqui, susbsistindo, insistindo sem motivo.

Deveria arrumar meu armário e me livrar de metade das coisas ali, afinal se ficar juntando bagunça é provável que tudo acabe mofando e estrague sem uso, inclusive contribuindo para uma piora no meu já grave quadro alérgico. Mas onde está a disposição? 

Enquanto meu corpo transpira e eu fico grudento, vejo jogadas por aí cartelas de remédio que eu já não tomo mais. Maquiagens que eu esqueci que existiam, folhetos que não vou reler mas que também não joguei fora.

Me lembro que, algumas semanas atrás, um rapaz que sigo no instagram postou uma série falando sobre como tornamos o espaço ao nosso redor nosso, com a simples adição de coisas de nosso uso que vão moldando externamente, dando a cara daquilo que nos há internamente, na nossa personalidade. Pois bem, ao olhar ao redor eu não me vejo em lugar algum, senão que vejo um ambiente que reflete apenas um utilitarismo, afinal meu quarto não é meu quarto, é apenas o lugar para onde volto depois do trabalho, não para vê-lo e sim para dormir antes do dia seguinte. Por isso talvez essa estranheza nas férias e também o fato de que a maior parte dos meus episódios depressivos começam em casa mesmo. 

Esse lugar então me condena, o ar putrefato faz eu me sentir como se estivesse atravessando um dos rios do inferno, inebriado com a carne queimada dos pecadores, mas no caso é a minha própria carne que pouco a pouco vai sendo destruída e faz com o cheiro se difunda no ar.

Encaro então a vida, as férias, as festas de fim de ano, como dias de sucessivo tédio. Tentando me distrair com algumas compras, sendo que nem mesmo comprar nada me anima, afinal não tenho dinheiro sobrando e nem onde colocar mais nada, já que tudo nessa casa é feio e entupido de coisas. 

Mas então eu não deveria me animar, agitar a poeira e tentar mudar isso? Essa é a atitute esperada não é mesmo? Mas aí eu pergunto: para quê?

Me disseram para tentar uma vida mais saudável, academia, dieta... E aí torno a perguntar: para quê?

Com que dinheiro eu deveria ir ao nutricionista? Em que dia? Na segunda? Meu dia de folga? Para ficar cansado no único maldito dia que tenho para descansar? E aí quem faria essa comida? Eu preciso colcoar mais esse peso na minha mãe? Ou deveria então tirar do tempo que tenho para porcamente estudar depois de expediente ou acordar mais cedo para preparar a comida com ingredientes sem graça? 

E o mesmo pode se aplicar a tantas outras atitudes da vida. Em que momento faria exercícios? Deveria deixar de estudar, ou estudar menos ainda do que já faço, para cultivar um corpo que, desde já, está condenado a apodrecer? Penso que, ao menos, quando estudo, cultivo algo que se fixa na alma, no intelecto, e não no corpo, e que por isso pode permancer um pouco mais. E é por isso que me dedico a estudar pequenas coisas que não interessam a mais ninguém. 

Acontece que viver, como dizem que é, é chato, á cansativo e não traz nenhum resultado, afinal no fim de tudo só há a morte. Eu só queria então pular esse tudo, chato, tedioso e demorado... A vida hoje cansa. Trata-se de não ter um dia de paz. Diante disso, a morte parece uma doce promessa. Mas, como se trata de mim, até mesmo a morte me escapa por entre os dedos. Se morrer fosse algo ruim decerto que já teria acontecido comigo. 

Mas o que me aconteceu foi a solidão. Me encontro num deserto, se companhia, sem teogonia, sem fonte cristalina onde se mostrem os semblantes prateados que trago em minha alma esboçados. 

"E naqueles dias os homens buscarão a morte, e não a acharão; e desejarão morrer, e a morte fugirá deles." (Ap 9, 6)

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Incômodo e Paz



Deveria ficar feliz por estar finalmente de férias, mas parece que não é tão simples assim. E não poderia ser diferente não? Quando sorrio e digo que as coisas dão errado para mim nos mínimos detalhes, é disso que estou falando: não consigo nem mesmo um simples descanso. 

Me sento para tentar estudar com um pouco mais de foco nesses dias e... Começam a falar alto, barulho de criança chorando, celular tocando, cachorro do vizinho latindo, máquina de costura... Mas é claro, uma reclamação como essa é idiota, bem o sei, não precisam me avisar.

Eu poderia levantar e caminhar um pouco, aproveitar o dia fresco e ir até o trapiche, quem sabe tirar umas fotos naquelas árvores próximas do iate club ou simplesmente ficar sentado, olhando a maré preguiçosa do braço do mar. Poderia. Mas não quero. 

Assim como me obriguei a começar a ver uma das séries na minha lista, que agora já cresce com títulos começados e não acabados, por falta de paciência. Isso porque, no momento, toda e qualquer visão do homem me cansa. 

Não tento mais puxar assunto com o moço de túnica branca, já desisti, nem tampouco alimento alguma esperança quanto aos aplicativos de relacionamento, já me cansei do discurso de que todos estão querendo conhecer alguém afetivamente responsável mas, ao mesmo tempo, buscar putaria com outros 15 contatos simplesmente porque é mais fácil.

Claro que, numa cidade com tantos homens bonitos assim, é normal que eu fique sozinho. Até aquele garoto deve estar num desses aplicativos, e já deve ter tido as suas primeiras experiências. Não me assustaria se, num futuro próximo, todos os homens que não se relacionaram comigo por não gostarem de outros homens aparecessem justamente ao lado de outros homens, é o tipo de pessimismo que considero o mais realista possível.

Então a minha vontade é de poder dormir todos os dias, mas sei que se fizer isso nas férias não vou conseguir dormir quando, voltando ao trabalho, precisar realmente dormir não somente para escapar dos barulhos incômodos, mas para sobreviver. 

Por isso eu fecho os olhos brevemente, e peço numa prece imperceptível, que eu possa morrer em paz. 

Parece exagerado, eu sei, que de algo assim eu conclua com essa prece, mas é que, bom, olhando ao meu redor, avaliando as possibilidades, os futuros possíveis, eu realmente não consigo deixar de pensar que tudo isso seria apenas um grande incômodo. A vida é então essa sucessão de incômodos, é um peso insuportável que, numa sucessão incontável de mínimos problemas se torna uma carga pesada demais. 

E eu até entendo que a grande maioria das pessoas consiga levar numa boa, que encontrem sentido tendo como ponto alto de suas existências um churrasco no fim de semana ou uma orgia com desconhecidos, mas para mim, tudo é apenas um grande incômodo e uma sucessão de coisas que dão errado nos mínimos detalhes. É tudo muito chato, porca miséria!

E sim, eu deveria estar feliz por estar de férias, por poder ficar deitado nessa tarde fresca, sentindo o perfume de Ylang Ylang e Menta Piperita sendo difundindo no ar mas, se fecho os olhos, só consigo pensar no quanto estou sozinho. Talvez devesse me levantar para ver de novo aqueles episódios de Bleach, ou terminar o dorama que comecei semanas atrás ou ainda o que comecei hoje, mas não quero. Assim como não tenho com quem conversar, todos estão aproveitando suas férias e só se lembram de mim quando têm alguma dúvida sobre as próximas missas. 

Queria que me chamassem para caminhar, ou que ficassem comigo na sacada, ouvindo música e comendo amendoim, quem sabe de tempos em tempos trocando sorriso ou uma carícia leve nas costas da mão. Então, quando voltar das férias e me perguntarem como foi, eu vou sorrir e dizer que estou muito aliviado por descansar mas, na verdade, foi apenas vazio e solitário, e até as preces que elevei no silêncio, esperando ouvir alguma resposta como a brisa fresca que entra pela janela, só recebi em resposta mais silêncio.

E não é só Deus que não me responde, mas todos os seus homens também estão ocupados demais. Talvez ninguém note se eu morrer. Assim posso finalmente ficar em paz, ninguém vai se incomodar.

"Quero conhecimento, não fé ou presunção. Quero que Deus estenda as mãos para mim, que mostre seu rosto, que fale comigo. Mas Ele fica em silêncio. Eu O chamo no escuro, mas parece que ninguém me ouve." (O Sétimo Selo, de Ingmar Bergmann)