segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

A criatura doente

Sei que lá fora o mundo pulsa vivamente. Ouço alguns pássaros, vejo a luz do sol entrar pela janela de manhã, vejo as fotos das pessoas nas praias ou visitando seus parentes, dos bares, restaurantes, das cervejas e dos drinks... Tudo isso deveria me dar ideias, deveria me fazer querer ir também, querer viver  assim ou algo, seja ir a cinema, seja caminhar à beira do mar sentindo a brisa fresca no meu rosto. Mas eu não consigo.

Eu me deito, e fecho os olhos para ignorar meu armário cheio de mofo que já deveria ter limpando há semanas, ignoro o cheiro de suor nos lençóis porque também não tenho coragem para lavar. Em alguns dias minha cabeça estará ferida porque não consigo lavar o cabelo, ou a pele oleosa e a barba grande, porque nem tenho conseguido cuidar de mim. Tenho bebido todos os dias e ficado chapado de tarja preta também, para que os dias passem mais rápido, mas aí as férias vão passar rápido também, e logo mais eu vou reclamar que é o cansaço que me faz ficar desanimado e indisposto, mas e agora? 

O que me impede de viver senão que vivo com o mesmo sem vontade com que vim ao mundo? Me sinto como que alguém doente que, estando com uma dor intensa e que não diminui não importa que faça ou o remédio que tome, só consegue pensar nessa mesma dor, só consegue concentrar-se nela como se, de tudo quanto existe, apenas ela realmente importasse. Isso porque uma dor, quando o é realmente, não pode ser ignorada e se justapõe a tudo, se torna o centro de tudo, ainda que na realidade não seja verdade, apenas a percepção do moribundo é que se encontra doente.

Assim me vejo com relação ao meu amor, aos meus sentimentos, mas não quanto ao sentimento a uma pessoa específica, mas ao sentimento de solidão, a essa dor silenciosa, quieta que vai se expadindo pouco a pouco e que, vez ou outra, me faz confundir tudo. Me encontro então na dor da falta de amor, na dor de amar sem ser amado e, o mundo inteiro comparado a isso, tudo o mais não vale nada.

É por isso que nem mesmo a beleza das ondas do mar ou o verde brilhante das folhas, a brisa fresca me encantam... É como se minha carne estivesse doente, e eu chego realmente a desejar estar doente, num exercício mórbido em que posso finalmente viver sem me preocupar em agradar ninguém porque estou morrendo, e então talvez me deixassem em paz para contemplar a miséria da existência em silêncio e, quem sabe, me desesperar pela salvação.

Essa doença, que às vezes vejo como manchas em mim, é esse amor descontrolado, esse desequilíbrio que, como um câncer vai destruindo tudo no organismo, tornando o que era vivo em funcional em carne podre. Pouco a pouco eu vou me desfazendo assim, 

Como um rio que, represando a sua água, começa a turvar-se, eu me vejo parado e sujo, e o que antes era vivo, que corria livremente, fresco, agora está parado e tornou-se impróprio para dele beber. A cristalina fonte secou, só o que restou foi água misturada ao barro. 

E então, como que caído nessa água também, não encontro forças de lutar, não consigo me levantar, apenas olho para cima, sinto o calor do sol na minha pele, fecho novamente os olhos e torço para me misturar a essa água, para sentir meu corpo se desfazer, para me entregar a algo maior, mas que não sinta ser eu, porque por algum motivo eu estou quebrado, eu estou doente, eu não consigo...

Como Kirin adoentado, criatura pura e celestial que, ao ver o pecado adoece por não conseguir fugir do cheiro de sangue que impregna todo o ar. E as manchas desse pecado já recobrem meu corpo, assim como já vejo diante de mim as ilusões que indicam o estado terminal de minha doença, já clamo aos céus rasgando os véus que me rodeiam sem ouvir em resposta nada além dos passos apressados do exército que invade meu castelo procurando me matar pois uma criatura pura doente, significa que já não é mais pura e perdeu sua serventia.

"O amor é a mais negra de todas as pragas..." (O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman)

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