quinta-feira, 28 de setembro de 2023

O Tédio

"Aconteceu-me diversas vezes, acordando no coração da noite (a noite neste caso não demostra verdadeiramente ter coração)." (Pirandello)

Não estou exatamente arrependido e nem me sinto culpado por ter ido encontrar um estranho no meio da noite numa rua escura pra uma foda rápida e sem graça que poderia ter me colocado nas estatísticas de desaparecidos ou mortos. Não sobrou em mim muita coisa pra sentir isso e tampouco posso dizer que o vazio aumentou. Eu senti apenas tédio mas, como também estava entediado em casa, não fez exatamente muita diferença. Foi chato, baixo e, sem exagero, nojento.

Acho que a única coisa que eu esperava com esse encontro era que ele me pedisse para não ir, que dissesse que eu não preciso de outros homens porque tenho ele. Mas ele não disse nada.

Foi minha primeira vez aqui nessa cidade, depois de um ano. Meus encontros anteriores não tinham chegado a esse ponto e, bom, pra uma cidade com tantos homens bonitos eu esperava mais. Mas é claro que isso só mostra uma coisa: meu único destino é a mediocridade de uma kitnet úmida com a luz piscando e uma cama velha no meio. Eu não devia me submeter a isso. Fiz por carência? Ele não disse nada.

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O homem velho disse que tinha se sentido mal durante a noite e, sem comer nada, pedia dinheiro nos ônibus para tomar o café da manhã. Mas já eram quase 9h! Todos já estavam de pé, alimentados e ostentavam o mau humor matinal de sempre. 

Até aquele momento eu ia contrariado pro trabalho, pensando na grande empulhação que seria encontrar todo mundo de cara feia e ainda ter que me preocupar com uma burocracia chata e inútil de documentos assinados para ninguém sem nenhuma razão. E alimentava certo ódio no peito, desejando que não chegasse lá, ou que a chuva não deixasse as cinquenta crianças saírem de casa. E me vi então fechando o livro, um exemplar cinza esverdeado do Finado Mattia Pascal de Pirandello, e olhei para as rugas profundas daquele homem velho, alguns dentes faltando, assim como usando pouca roupa pro dia levemente mais frio.

Me envergonhei de reclamar dos documentos idiotas, vou tentar preencher o mais rápido possível e seguir em frente. Esses problemas não significariam nada se eu tivesse que, às 9h de manhã, andar de ônibus em ônibus pedindo por esmolas para me pagar um café, que o tomei generosamente em casa antes de sair e posso tornar a tomar ao chegar no trabalho. Era o choque que eu precisava para acordar hoje. 

Ao contrário de quase todos no ônibus que ignoravam aquele velho eu o dei umas poucas moedas, num pensamento egoísta de que, fosse eu ali, gostaria que alguém me ajudasse também, sabendo que não existe grande diferença entre a posição dele e a minha e que, como são as coisas, na semana que vem podemos estar em posições trocadas.

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É bonito ver como eles encontraram alguém em quem se apoiar... O jovem que tinha medo de trovões e que apanhava da mãe por isso, o gênio que teve as mãos machucadas para não chamar mais atenção que o irmão mais velho. Dois homens que passaram a vida sozinhos, dando seu melhor sem que ninguém percebesse. Se encontraram num acaso desconfortável e foram se tornando um o apoio de outro. Até o medo que sentiam dos seus sentimentos, novos, que gritavam para sair, logo se desfez porque encontraram, nos braços e abraços, o carinho que não tiveram e, no olhar apaixonado, a atenção que sempre desejaram. E então se entregaram, agora sorridentes, um ao outro.

Ele acordou feliz e sorridente, radiante na verdade. No outro dia, depois de um encontro asqueroso, eu acordei dolorido e ainda entediado. Nada de companheirismo, nada de olhares significativos e nem abraços cheios de amor e carinho apenas o tédio da existência. 

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Ele correu sem nem mesmo entender porquê precisava impedir aquela menina de dizer algo ao seu amigo, correu deixando todos confusos mas ele era quem estava mais confuso porque só o que ele conseguia pensar era que, de algum modo, ficariam mais distantes dali em diante, e não podia permitir que isso acontecesse, não podia perder o seu melhor amigo, mesmo sem entender porquê isso isso era tão importante..

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

O Destino do Homem

"(...) Queria apenas tentar viver aquilo que brotava espontaneamente de mim. Porque isso me era tão difícil?" (Herman Hesse)

Entre cobranças, incompreensões e intermináveis discursos durante os quais pululam em minha mente as palavras de Cícero "mea mihi conscientia pluris est quam hominum sermo"* justamente porque não consigo me alinhar de modo algum ao que os outros me dizem, me levando a inevitável conclusão de que, não podendo dizer se são eles ou eu a enlouquecer, confirmo minha ideia de que todos os homens vivem o inferno de nunca se entenderem. Conquanto Schopenhauer tenha razão na sua apresentação do dilema do ouriço o grande problema é que a maioria das pessoas apenas opta pela morte gélida, já não suportam em nada as dores que lhes causam os outros. 

Me sinto então perdido por entre as torrentes de palavras com as quais os homens confusamente expressam seus desejos e os usam para machucar uns aos outros numa guerra interminável e que, no entanto, apenas parece ser uma longa conversa. Não o é. 

Essas palavras me causam tédio, muito tédio, senão que ando pela cidade sonhando que um carro me acerte com violência ou que um meteoro subitamente desvie-se de seu curso e nos atinja com brutalidade, ou ainda que algum poder ancestral desperte em forma de um demônio gigante monstruoso lançando a humanidade em caos e cinza. Revolta jovem e tosca, bem o sei, mas a abraço com firmeza enquanto observo todos se agarrarem a outros objetivos toscos e vazios. 

O pessoal da paróquia se debate entre ideias erradas, buscando Deus de olhos vendados num quarto escuro, minha mãe pintaria a casa de branco e encheria de troços enquanto meu pai quer comprar um carro para facilitar suas traições. Cada um bonitinho fechadinho no seu mundo bobo, todos com medo de assumirem a realidade: estamos desesperados por ver que nada tem sentido e que caminhamos lentamente para a morte, tão vazia quanto a vida. Minha única reclamação, no entanto, é que a morte poderia ser um pouco mais ágil, conquanto ache que ela apenas tem um senso sádico apurado que se deleita com o sofrimento prolongado da existência. 

Me vejo então em meio a disputas, guerrilhas de interesses, entre pessoas que falam demais o tempo todo justamente por não terem nada a dizer, entre não saber mais o que é real e o que é invenção da minha cabeça, entre pessoas que adoram tudo mas não gostam de nada, entre não saber mais quanto vale o esforço e quanto eu continuo errando por tentar ajudar, cansado, chateado e sonolento, e eu apenas queria poder fazer a mesma coisa, viver a vida, sem muita expetativa e nem perspectiva... 

E então me vi numa daquelas noites onde a solidão falou mais alto, por todas as fibras do meu corpo, e eu decidi que iria até me arriscar ir a um lugar desconhecido para encontrar um suspeito, sem me importar com os riscos, apenas com a necessidade de ter alguém comigo, ainda que por um breve momento de sexo sem nenhum afeto envolvido. E então outra pessoa me chamou para assistir um filme, disse que seria um encontro melhor assim mas, mesmo que eu não tenha ido e tenha ficado com ele, ainda me senti sozinho, e isso me encheu de um ódio profundo, adormecendo depois do filme amaldiçoando o destino solitário do homem. 

 ~

*A minha consciência vale mais do que a palavra dos homens.

Obra: Portrait of Professor Ivanov, Ilya Repin. 1882.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Aforismos

"Não é preciso se preocupar em viver muito, só o suficiente, pois que se viva muito depende do destino, que se viva o suficiente, do espírito." (Sêneca)

Já há uns dias que venho enfrentando um episódio depressivo anormalmente forte, provavelmente o pior do último ano (se bem que eu sempre digo isso) mas com efeito, além daquele efeto sépia e câmera lenta que parece ter me rodeado, eu venho olhando para tudo ao meu redor com profundo tédio. Tudo muito chato.

Eu olho os meninos bonitos passando na rua, chatos. Olho para as pessoas que vejo diariamente, chatas. Se respondo minha família que seja, chatos. Até se fecho os olhos e me deixo levar pela música baixinha, bonita mesmo, eu a acho chata. 

E nisso vinha pensando, desde a madrugada, insone por conta de outra crise alérgica, que eu já vivi demais. E até enquanto estava no carro a caminho do trabalho e até a conversa com o motorista me enchia de um tédio tão profundo que eu mais de uma vez pensei que seria mais agradável se ele apenas jogasse o veículo na ponta ou se alguém batesse em nós com tal violência que os socorristas precisariam limpar as nossas vísceras das ferragens dos carros, nessa manhã brutalmente ensolarada. E o motorista me disse, na maior inocência do mundo, que hoje está fazendo um dia lindo, e eu prontamente respondi, imaginando como seria se chovesse fogo do céu destruindo tudo, quase aos prantos por achar esse dia incrivelmente chato. 

E então, depois da explosão vulcânica, onde os deuses da guerra habitaram meu peito fazendo dele seu campo de batalhas brutais e usando minhas vísceras como chicotes e cordas de enforcamento, me veio a calma da dopada candura. Não fosse o bom Rivotril teria que me esforçar bem mais para não cometer um crime...

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É engraçado ver como somos diferentes. Quando você precisa calar eu quero falar, e aí quando você está falante eu me aquieto... O que você gosta de manter para si, sério e misterioso, eu digo às claras. Nos momentos em que você sorri eu estou sério e eu mesmo sorrio em momentos que te deixam tenso. Eu revelo e você esconde, eu desisto e você persiste de outro modo, eu publico e você guarda entre nós, eu abraço e beijo enquanto você cora a face... 

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Estava péssimo, como aquela maldita cena se repetindo exaustivamente o fim de semana todo e, cada vez que lembrava, começava a tremer ou voltava a chorar de raiva, e cada lágrima mínima era o mais puro ódio destilado que brotava do meu peito, a mente imaginando as cenas mais pavorosas em que dilacerava as carnes do inimigo declarado, despertando não apenas dor mais o desespero mais profundo da alma que se veria num suplício quase eterno, pior que em qualquer inferno. 

Eram cenas pavorosas, envolvendo vermes e tenazes quentes que deixavam marcas e feridas abertas que apodreciam, doíam, sangravam e supuravam e, no entanto, ainda eram mais belas que o coração podre daquela que era ferida. E eu me comprazia na sua dor, sorrindo como se estivesse recebendo um afago terno no alto da cabeça.

Foi esse demônio que tomou o ônibus hoje cedo, com olhar não vazio, mas assassino, cortante como aço frio. 

Então, após um abraço inesperado eu me senti tocado, e acordei, enquanto sentia aquele demônio novamente ser aprisionado, adormecer lentamente e sentir um leve calor se espalhar pelo meu peito. Fitei a parede sem entender muito bem o que acontecia, e a voz dela então me despertou e me fez perceber que, na realidade, até aquele momento quem estava diante daquelas pessoas era apenas um assassino.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Beijo tímido

"Que abismo que há entre o espírito e o coração!" (Machado de Assis)

Precisei diminuir o ritmo. Acordei várias vezes depois de um sono inquieto devido à uma crise alérgica persistente e incômoda que me fez amanhecer o dia dolorido e desesperançado. Cheguei mais cedo no trabalho, tomei um café especialmente doce, pois isso é a coisa mas próxima de um abraço que eu tenho ultimamente, e fiquei alguns instantes de olhos fechado, mentalizando uma boa música, aquelas do primeiro EP do ASTRO e algumas faixas de rap coreano... Acho que o café é só um paliativo, mas tudo bem, pelo que vejo todos precisam de algum tipo de abraço atualmente, especialmente quando vem à tona o vazio, como me veio nos últimos dias. Vazio brutal, silencioso e repleto de pessoas caladas que passam sem olhar para os lados. Vazio e sufoco, a descida silenciosa ao limbo, o primeiro círculo do Inferno de Dante. Vazio, distante, como o pôr do sol, a luz findando e dando lugar ao assustador breu, mas eu já não tenho medo, nem tampouco desejo de enfrentar essa escuridão. Eu já não sinto mais nada.

E me vem a questão: tento sair desse torpor melancólico com alguma compra superficial e completamente arbitrária chamada de autocuidado ou insisto ir numa reunião absolutamente insuportável pela simples tentativa de convivência?

Tomei meia garrafa de vinho quando cheguei em casa, não comi nenhuma das dez barras de chocolate que comprei ao sair do trabalho porque simplesmente esqueci e ainda acabei adormecendo vendo vídeos idiotas na internet. Não tinha cabeça pra estudar e nem pensar em mais nada, algumas mensagens se multiplicando no meu celular e minha mente, bem, essa se perdeu em algum lugar naquelas músicas que tocaram durante a noite toda. 

Eu nada mais disse e nem me foi perguntado, com a mente completamente em branco eu apenas me levantei para mais um dia. 

Percebi que não estou muito atento a nada, na verdade meus dedos passam rapidamente pela tela do celular, um número infindável de homens bonitos e sem camisa, e eu apenas admiro por um breve segundo antes de ver o próximo e o próximo, o café já frio do meu lado e eu continuo passando as imagens sem realmente me deter em nenhuma delas. Os dias só estão passando, passando, passando... Mas, afinal, o que mais eu queria mesmo?

A única coisa conseguiu me chamar atenção foi apenas ficar revendo algumas cenas de Taikan Yoho. Aquelas imagens de um apartamento meio claustrofóbico, ao mesmo tempo aconchegante pela presença dos dois homens, vermelhos de afeto e luz do sol, o frio do Japão aquecido pelas palavras não ditas e pelos abraços tímidos daqueles dois. Me identifiquei com o olhar vazio e melancólico do protagonista que não consegue entender como o outro gosta dele. O vazio ao mesmo tempo é acompanhado desse aconchego, daqueles momentos de intimidade silenciosa, de uma cumplicidade simples, compreensão terna. A sombra e a luz que se encaixam, que se completam, o solitário no chão em estado catatônico, a cor que retorna à sua face depois de uma refeição acompanhado, a reação do corpo, o beijo tímido de lábios rubros.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Nosso limite

"Mas, que luz é essa que ali aparece naquela janela? A janela é o Oriente, e Julieta o sol. Sobe, belo astro, sobe e mata de inveja a pálida lua." (Shakespeare)

Qual é o nosso limite? Queria que estivesse aqui comigo, nessa manhã fresca e preguiçosa, com o canto dos pássaros e o vento entrando pela janela e agitando a cortina que, como um véu, vai revelando a fraca luz do dia. Eu rolaria pro lado e te abraçaria, e ficaria vendo você dormir, ou talvez te acordasse com o cheiro do café, mas com certeza iria querer ficar abraçado com você para sempre, fazendo desse instante, dessa manhã, um infinito particular. 

Mas, quando aceno a minha cabeça e me livro desse breve devaneio, eu olho para o espaço vazio da cama ao meu lado e vejo apenas isso, vazio. 

De todo modo eu ainda preciso lidar com esses ímpetos, do que eu devo ou não dizer. Já acabei por me meter em várias situações constrangedoras porque nem todos estão preparados para ouvir. Quer dizer que, por ter achado um cara bonito eu quero automaticamente dar pra ele? Na maior parte das vezes sim porque eu sou biscate, mas isso não vem ao caso, muitas vezes o elogio é simplesmente porque eu gosto de elogiar mesmo, principalmente se vejo o esforço e a mudança da pessoa. Mas é claro que eu não seria bem compreendido. Tudo bem, vida que segue. Continuo tendo a oferecer nada mais do que uma simpatia simples e tosca e, se alguém não consegue aceitar isso, não é um problema meu. 

Enfim, mudando de assunto, percebi com mais força nesse fim de semana que, já há algum tempo, os sintomas dos meus episódios têm se tornado cada vez mais fortes, o que indica que eu preciso começar a me cuidar de novo. Devo buscar um psiquiatra nos próximos dias, alegando outro problema porque não preciso da preocupação exagerada da minha mãe que já enfrenta suas dificuldades. Mas eu preciso voltar a me cuidar... Nas últimas semanas todo o tempo que fiquei em casa foi dormindo, dopado, e nos breves momentos despertos eu não tinha disposição para nada. Até hoje que pretendia cuidar de algumas coisas da minha aparência, barba, depilação, unhas mas acabei não conseguindo fazer tudo como pretendia e, como já disse em outras ocasiões, o descaso com o autocuidado é um sinal claro de que a depressão vem saindo do controle e penso que deixei ela chegar num estágio mais avançado do que deveria para buscar ajuda...

Bom, mas antes disso, eu vou dormir de novo... 

Tentei ler um pouco, sem sucesso. Felizmente consigo ler bastante nos outros dias. Tudo que sinto é um grande tédio existencial. Mas o que eu queria na verdade? Nem eu sei ao certo. Acho que queria morar sozinho, mas com o meu salário atual e descontrole financeiro eu não conseguiria nada. Queria reorganizar as coisas, como meu quarto ou a sala ou até meu escritório mas, olhando ao redor eu vejo que só eu me incomodo com isso e, não tendo forças para cuidar de nada disso sozinho eu acabo levando, e levando, e levando, e a cada dia me desanimando mais e mais. E de nada adianta ficar pensando nisso se eu não consigo fazer sozinho e se ninguém vai se mexer para fazer também, realmente é melhor eu simplesmente ir dormir.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Criação

Bom eu fui, e garanto que me esforcei um monte pra conseguir sair do sofá nesse dia meio cinza, meio assim sem graça, e caminhar um pouco, coisa que não fazia já há um bom tempo. Vi pessoas sorrindo nos restaurantes esperando pelo almoço, vi o mar meio preguiçoso, uns barcos levando os turistas ou pescadores aqui e ali, um casal perdido. O céu ficava pouco a pouco mais escuro e o vento mais forte. Mas não fiquei muito tempo. Embora o céu estivesse lindo, o mar daquele cinza brilhante que eu gosto, os meninos bonitos passando por mim de bicicleta, voltei logo pra casa mesmo assim porque achei tudo bem entediante. Minha alma está entediada e já não se inflama. E então deus criou o céu e as estrelas, encheu o mar de criaturas e de movimento para servir de símbolo do eterno aos homens, e ele viu que tudo isso era muito chato.

Eu tinha dito, com boa dose de convicção e de sucesso nos primeiros dias, que iria me fechar e ignorar todos esses sentimentos até que, uma vez agindo como se não fossem nada, acabassem não sendo nada mesmo. E deu bastante certo, mesmo. Mais de uma vez eu assumi uma postura quase estoica em relação ao outro, olhava para os homens bonitos com o mesmo interesse que olhava para uma paisagem bonita, desviando logo em seguida e sem me atentar a nada, com profunda aversão a tudo. E até mesmo agora, tudo o que sinto é apenas uma pequena centelha que ainda insiste em reacender, ameaçando timidamente se tornar um perigoso incêndio. 

Mas ao mesmo tempo ela não consegue crescer porque fustigada de ventos frios que já não permitem que ela cresça como antes, quando queimava de tal modo que já não podia resistir nada de pé, senão que precisava me refazer a cada ciclo, tarefa tão dolorida e complicada que eu não quero mais, eu já rejeito o fogo que me obriga a renascer das cinzas. Não sou como Fênix, todos os meus renascimentos me resultaram em cicatrizes e um medo terrível da dor. Não sou como aqueles que dizem ter ficado mais fortes, não, eu tenho agora medo, muito medo da dor. 

E é por isso que deixar de acreditar em tudo isso me dá apenas uma profunda desesperança quanto a tudo. Mas ainda é melhor viver sem brilho do que com toda aquela dor. Muito embora amar me faça sentir vivo é uma vida dolorida demais. 

E isso me vem dessa constatação de que sentimentos não são criados, embora sejam cultivados. Eu acreditava naquela antiga história de que os sentimentos podiam ser tão intensos e verdadeiros que poderiam tocar o outro. Não podem, ou talvez até possam se o outro estiver aberto a isso e não focado demais nos seus interesses para perceber isso. Não, o Amor como dito algo belo e poderoso é apenas um conceito abstrato demais que usamos quando algo dá certo e para criar ilusões tão destrutivas quanto a realidade que negamos enxergar. E esse amor foi minha própria criação mas, ao contrário de Deus que viu que tudo aquilo era muito bom, ao olhar o mundo que criei eu vejo que tudo que ele merece é ser destruído. 

Uma ultima digressão antes de encerrar: torno a pensar rapidamente no que deveria fazer, enquanto a fala de uma pessoa pulula a minha mente dizendo que deixar de se cuidar é um dos sinais de depressão, o que não é nenhuma novidade, mas eu olho para a pilha de roupas na minha cama, ou a minha barba que cresce sem controle ou até minhas unhas e, bom, só consigo pensar que é tudo muito chato, cansativo e que eu preciso dormir.

"Os meus ímpetos juvenis já se tinham abatido há tempos: desde muito o tédio já me tinha carunchado por dentro e desvigorado o pêsame." (Pirandello)

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Fastidio

Nada é mais fastidioso do que disputar com argumentos e explicações com alguém, empregar todo o esforço para convencê-la supondo lidar meramente com o seu entendimento, — para ao fim descobrir que ela não quer entender; portanto, lidávamos com a sua vontade, que se furtava à verdade e arbitrariamente lançava mão de mal-entendidos, chicanas, sofismas, entrincheirando a si mesma atrás do seu entendimento e sua pretensa falta de intelecção. Nada se conseguirá com tal indivíduo: pois argumentos e demonstrações empregados contra a vontade são como o impacto das imagens de um espelho côncavo projetadas contra um corpo sólido. Daí a expressão frequentemente repetida: Suo pro ratione voluntas. — A vida cotidiana fornece provas suficientes do que foi dito. Mas infelizmente elas também são encontradas no domínio das ciências. Em vão espera-se o reconhecimento das verdades mais importantes e das realizações mais raras daqueles que têm interesse em não deixá-las valer, seja porque contradizem aquilo que eles mesmos ensinam diariamente, seja porque não lhes é permitido utilizá-las e difundi-las, ou, se não for assim, porque a palavra de ordem dos medíocres sempre será: Si quelqu'un excelle parati naus, qu'il aille exceller ailleurs; que foi como Helvetius reproduziu maravilhosamente o provérbio dos efésios do Quinto Livro tusculano de Cícero (c. 36); ou, como no dito do abissínio Fit Arari: “O diamante está proscrito entre os quartzos”. Assim, quem espera uma justa apreciação das próprias realizações desse sempre numeroso bando, encontrar-se-á enganado, e talvez por instantes não possa absolutamente compreender o comportamento deles; até que por fim se dá conta de que, enquanto dirigia-se ao conhecimento, lidava com a vontade, portanto, encontrava-se por inteiro na situação acima descrita, sim, assemelhando-se àquele que apresenta seu caso diante do tribunal cujos membros foram todos corrompidos. Mas em situações particulares obterá a mais conclusiva prova de que era a vontade e não a intelecção deles o que se lhe opunha: a saber, quando um ou outro deles decide-se pelo plágio. Com o que então verá com assombro quão finos conhecedores são, com tato apurado para o mérito alheio, e quão habilmente descobrem o melhor; assemelhando-se aos pardais que jamais perdem as cerejas mais maduras.

(Arthur Schopenhauer – O Mundo como Vontade e como Representação Tomo II II 254-255)

Confissão

"Eu tentei resistir a essa doce intoxicação. Não importa o quão bêbado eu esteja, a sobriedade vem com a luz da manhã mas, embriagado de amor o meu coração de desfaz todas as noites." (I Feel You Linger In The Air)

Claro que eu não podia deixar de falar sobre essa cena que se tornou uma das mais belas que já tive o prazer de ver. Uma daquelas doces declarações, de peito aberto, cuja espontaneidade dão o tom da sinceridade mais profunda. É, na verdade, belíssimo ver como esses dois têm lentamente demonstrado entrar naquele jardim secreto de um novo amor. 

I Feel You Linger In The Air tem conseguido mostrar, com seu ritmo lento, a sutileza da descoberta e construção do sentimento. Khun Yai que, confuso com seus sonhos, encontra aquela garoto perdido saindo da água sem lembrar de onde viera e o pequeno Jom que, além do coração partido depois de dois anos de espera pelo amado, agora precisa se virar num mundo completamente diferente do seu. 

É belo ver como Yai se aproximou sutilmente, ao mesmo tempo respeitando e cuidando de Jom da melhor forma que podia, ainda tímido e sem conseguir enfrentar os pais de frente, ao mesmo tempo que Jom vai se abrindo sem perceber. Yai não consegue ficar longe do outro, sem que ele se desse conta o seu eixo gravitacional inteiro se modificou ao redor daquele garoto perdido, de sorriso doce e fala mansa que, no entanto, atrai problemas para si onde quer que passe.

E então, após mais um degrau da proximidade, com ambos morando na mesma casa e tendo um ao outro a sua última palavra ao adormecer, a confissão esperada, talvez ainda não completamente entendida pelo seu objeto mas com ele bem definido ali. A posição? Um bêbado sincero, com a afetação máxima num leve corar da face mas sem nenhum exagero: é a confissão de um homem simples do seu amor simples, porém sincero, profundo, como aquelas palavras ditas próximas ao coração, as mãos na leve carícia que nos últimos dias ele sonhara em silêncio. É na simplicidade que vejo a beleza da sinceridade.

Claro que, voltando para minha realidade. Aceito que, em verdade, essa ideia apresentada de que o amor expressado sinceramente é capaz de superar as barreiras e tocar os corações é apenas uma concepção ideal, sonhada e expressada justamente por não corresponder em nada com a realidade, se tratando tão somente o desejo profundo do homem mas em nada se encontrando no mundo aqui fora onde confissões são tomadas como expressões fracas e devolvidas de desprezo, apenas isso. Mas mesmo assim não perde sua beleza.

"Pensas tu, vendeiro, que essa tua meia garrafa me trouxe prazer? Tristeza, foi tristeza que procurei no seu fundo, tristeza e lágrimas, e as provei, e encontrei." (Doistoiésvski)

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Plano Geral

Tentando fazer uma leitura um pouco menos limitada e fechada em mim, sabendo que, só pelo fato de dizer isso, incorro na circularidade própria do conhecimento que, de modo helicoidal, vai se aprofundando cada vez que retorna a certo ponto. Minha tentativa é a de, claro que incentivado pelo meu mestre, de subir um pouco o degrau de consciência da razão e perceber meu lugar no plano geral das coisas. 

O homem pode se diferenciar dos demais seres porque, estando ele no mesmo lugar que os outros, tem uma consciência capaz de ir além. Uma chuva que seja não tem o mesmo significado para uma plantação, para uma pedra e para um homem que, vivendo num quadro complexo que o abarca e o abrange imensamente, pode dar sentido a estas coisas mesmas enquanto sente-se molhar ou que corre para dela esconder-se.

Essa grande questão, do sentido da vida, pode parecer uma grande bobagem mesmo para mim que, imerso num grande pessimismo, tantas e tantas vezes simplesmente desisti de contemplar a existência e passei apenas a encarar o mundo com essa descrença total, apática, como um bichinho que, fugindo da dor e buscando comer e dormir, espera pela morte mais breve possível. Eu reconheço que, no meu estado atual, essa talvez seja exatamente a minha posição: a de um bichinho, negando assim então até mesmo a ação profunda do Espirito Santo e, por isso mesmo, caindo no pior dos pecados e, encontrando aqui apenas desespero, mais ou menos no sentido que dizia Kierkegaard. 

Eu até mesmo queria evitar usar nomes e citações aqui justamente para não cair no erro mesmo de tentar vestir as minhas ideias com um argumento de autoridade filosófica pois, sendo a filosofia, antes de qualquer outra coisa, uma ação do espírito individual em relação ao conhecimento, o que digo é, antes e acima de qualquer coisa, a minha experiência. Essas palavras são, tão só e apenas isto, aquele caminho particular de cada filósofo que, diante de um acontecimento, como uma fogueira ao redor da qual se reúnem muitos amigos, permanece olhando para ela mesmo quando todos já foram dormir e cessaram as músicas e bebedeiras, buscando entender o que ela lhe tem a dizer quando todos apenas se limitaram a usá-la como fonte de luz e calor.

Entendo um pouco mais agora o que significa abrir-se a ação do Espírito, sendo que observando muitos dos grandes santos não encontramos pessoas de grandes e frequentes sorrisos, muito embora estes o sejam genuínos quando aparecem. Isso porque desde os grandes santos e intelectuais que se abriram a perceber a realidade ao seu redor fizeram precisamente isso, e justamente por verem todo o coeficiente de dor e destruição ao seu redor percebem o seu sentido, apesar da dor. O preço do sentido da vida é entender o que está acontecendo, por mais que doa. Mas também não pretendo, e nem poderia explicar isso aqui, até porque meu professor mesmo o fez tão imensamente melhor do que eu jamais seria capaz de fazê-lo nas palavras mesmas que lia nessa manhã, cansado e incomodado pelo sono da noite que passei em claro pela forte alergia e sensação de solitária convicção. Não me coloco entre o número dos profetas e grandes místicos mas, talvez a imitação deles, eu também esteja triste justamente por saber o que está se passando.

Bom, num sentido geral o que eu vejo nesse momento é justamente a minha adequação a realidade mesma que me encontro e não conformação da vontade à realidade. Não é nenhuma novidade e parece que eu estou redescobrindo a roda mas, se me permite a minha cota, se há uma coisa distribuída igualmente no mundo, ou pelo menos no Brasil, é a mediocridade. E aqui vejo e confesso a minha infantilidade em debater debilmente contra a verdade e aceitar que o outro pode, e tem, uma outra visão do seu universo e que eu não posso, assim como também não podem fazê-lo comigo, querer mudar não importa o que aconteça. Não estou me referindo aqui ao Poder Profético, isso é assunto para outro momento, onde o homem adquire tal autoconhecimento e posse de sua personalidade que passa a interferir ativamente no curso da história de modo indefinido, Moisés e Maomé que o digam. 

Não estou lá ainda, senão que só talvez comece a superar a necessidade mesma de aprovação do grupo imediato, que luto em outro plano contra as besteiras que eles me impõem e que, as mesmas ideias que há em mim também, se encontram em idos de serem superadas num plano maior que as abarque e as supere: é o ritmo normal das coisas, as quais eu me encontro atrasado em pelo menos uns dez anos mas que, olhando ao redor, ainda me parece ótimo já que os outros parecem atrasados em vários séculos. Eles entendem as obrigações sociais como o ápice do desenvolvimento do homem porque foi o máximo que eles conseguiram, e eu luto contra isso justamente porque antevendo o nível de mediocridade que isso significa rechaço essa opção com asco. É o curso natural da maturidade, e não faço aqui uma ode ao meu amadurecimento, que prefiro chamar de amargamento, como um garoto que, descobrindo o pênis como se fosse a maior maravilha da sua existência, não tira mais a mão do próprio pinto. 

E é por que, no momento, eu apenas percebo a força dessa constatação, dos diferentes planos em que, ele e eu, encaramos nossa própria existência. Ele, com a ansiedade futura de um futuro casado com uma esposa e rodeado de crianças e eu, com o pessimismo candente de quem não vê nisso senão um quadro tedioso que não serve a mim. 

Me vejo colocado num plano muito maior do que o percebido imediatamente, muito embora a percepção seja justamente o ponto de partida dessa reflexão. E, com comecei falando do meu lugar no plano geral das coisas. Bom, não significa que seja um lugar lá muito privilegiado também. Estar consciente da própria misérias, muito embora seja o mínimo necessário para sair dela, é também mais incômodo do que estar cego e preso sem nem saber de onde se estar sendo atingido. Não sendo, pois reconfortante, é ao menos uma razão para reclamar de um jeito mais chato.

sábado, 9 de setembro de 2023

Noite de Domingo e Confusão Posterior

"Meeresufer im Mondschein" de Caspar Friedrich

É noite de domingo, as pessoas finalmente sucumbiram a preguiça desse dia, ou estou chapado de um xarope pra alergia que tomei na esperança de me fazer dormir mas que só me deixou mole o dia todo na cama, a única coisa ruim foi ter de ir numa reunião interrompendo meu ritual de não fazer nada por uma hora e meia, voltando direto pra cama sem nem pensar direito no que foi dito e no que preciso fazer, não quero pensar em nada disso hoje. 

A cidade sempre fica meio silenciosa nesses dias, todos estão em suas casas, quietos, descansando da fadiga diária, muitos vão para a praia aproveitar o sol, eu passei o dia deitado no escuro e ainda concordei com uma pessoa que me disse que fizera um dia lindo, acho que estávamos falando de coisas diferentes. 

Se fecho os olhos sei que posso sentir as pessoas bebendo, tentando não pensar no amanhã. Por incrível que pareça eu não quero beber hoje, nem conversar com ninguém, nem assistir. Considerei tomar o vidro de xarope inteiro e mais alguns comprimidos, sei que foi uma bobagem irresponsável mas não acho que seja tão grave assim. A cidade toda está preguiçosa, me pergunto se vou sair daqui até amanhã. Acho que não. 

Também estou ignorando os claros sinais depressivos que ficam mais fortes a cada semana, sinto minhas forças indo embora lentamente e aqueles tentáculos gelados me rodeando, a espreita, procurando me devorar. Não é como se perceber isso me permitisse lutar, não, eu só fico aqui parado, enquanto sinto os sentidos entorpecerem lentamente, dia após dia. 

A cidade toda está preguiçosa, e eu tenho certeza que todos devem pensar que eu também estou. Mas a verdade é que todos estão doentes, só que eles parecem não ver isso, e eu só consigo olhar pros céus e clamar que a misericórdia pudesse acabar com todos nós numa chuva de fogo e cinzas. Um fim rápido e indolor, pois de dor acho que muitos de nós já viveram demais, agora já estamos com a pele calejada e dura, já não sentimos mais nada. 

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Estou sentado, de olhos fechados há vários minutos, tentando me concentrar em alguma coisa que me faça esquecer a vertigem dessas horas. É irônico que, mesmo depois de tanto tempo, eu ainda demore a identificar. Acho que fiquei num episódio de euforia por tantas semanas que tinha me esquecido como é normal ciclar rapidamente. E quando, ontem acordando no meio da noite, eu me senti tonto e sem foco, achei que fosse por causa do xarope que tinha tomado para me dar sono e não essas longas horas de confusão mental que viriam da mudança de episódio.

Vinha de pé no ônibus mas o resto dos detalhes da viagem me são um borrão apenas. Sei que tentava me equilibrar ao mesmo tempo que tudo girava, e não é só como se eu estivesse tonto, mas as palavras também giravam, as mensagens giravam e, só de pensar o que todos iriam me perguntar durante o dia, me sentia mais e mais tonto. 

Queria poder ficar deitado mais um dia, de olhos fechados no escuro. Odeio essa sensação de confusão. Nem é como quando somos bombardeados por mil informações e não conseguimos mais absorver nada, senão que ficamos confusos, não é assim. É mais como se as coisas começassem a derreter na minha frente. Por isso eu sempre digo que as coisas giram, é como se elas perdessem o eixo, ou eu perdesse o eixo, e então tudo passa a ficar diferente, as vozes distantes e eu custo entender, aí sim as informações embaralham, fico irritado e sentimental. Não consigo nem mesmo descrever o que acontece, o que só me irrita ainda mais porque as palavras, que normalmente são meu refúgio, me escapam e perdem todo o sentido. 

Eu fico inseguro, com medo de fazer ou dizer algo errado, e então fico com aparência transtornada justamente porque preciso pensar em cada passo. E é claro que as pessoas não facilitam também. São mil informações num minuto, mas como elas saberiam que minha mente se reduziu a gelatina? Não saberiam e se eu disser não vão entender, então acho que tudo que posso oferecer é um olhar bobo e vazio enquanto tento não enlouquecer.

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Eu fico te mandando essas besteiras, acho que é um tipo de impulso incoercível de despertar algo em você, o que faz de mim idiota em vários níveis diferentes. Me sinto como aquele assassino do Vampiro de Dusseldorf e você, uma daquelas pobres crianças. Com a diferença que, na realidade você não é uma criança, é um espectador do meu espetáculo grotesco.

"Ergui-me e tomei o rumo de minha pensão. A lua brilhava. Meus passos ecoavam pela rua vazia, parecendo os passos de um perseguidor. Olhei ao redor. Eu estava enganado. Somente a solidão me acompanhava." (Charles Bukowski)

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Perfume e Memória

Hymne A L'Amour. Sabia que essa é uma das minhas músicas favoritas da Edith Piaf? Já ouvi muito naquelas noites complicadas, de amor em vivas ânsias inflamada (não estou falando de tesão), e como um bom Hino ela realmente traz essa grandeza do tema que ela trata, como um grande salão de festas que, não importando a quantidade de pessoas que dançam ao redor aqueles dois se olham, se entendem e se procuram o tempo todo. Também me recorda uma antiga estação de trem, pode ser uma chegada, uma partida ou uma lembrança distante de ambas as coisas, de todo modo é uma profusão poderosa dessa ode ao amor, dessa declaração de eternidade, em que cada um, vozes, violinos, violas, tudo ressoa na mesma intensidade: a intensidade daqueles corações que se amam.

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Ostentando uma completa e absoluta falta de vontade de viver, de qualquer modo que seja. Na espera de algo que me faça entrar na frente de um carro em alta velocidade. Algumas pessoas podem inclusive chegar a dizer que essa espera já é em si um reflexo da vontade de viver, que eu na verdade estou ardendo dessa vontade mas desesperado demais para assumir. Digam o que quiserem. Ou talvez seja apenas uma parte de mim dizendo isso para mim mesmo. E então me surge até uma vontade de querer sentar e reestruturar tudo, hábitos, rotina, alimentação, mas sejamos sinceros, eu não vivo a vida de uma youtuber loira, magra e rica de seu conteúdo no OnlyFans, chego em casa tão cansado que nem consigo ficar acordado muito tempo, e ainda querem colocar a culpa de não ter disposição nos meus hábitos? 

Enfim, não pretendia tomar esse rumo mas, quem sabe, fazer algumas reflexões sobre o que tenho lido ou visto, mas estou cansado demais para conseguir organizar esse tipo de informação que, espero eu, esteja se depositando no fundo da consciência. Droga, até a inspiração tem me fugido pelos dedos. 

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A única coisa que me vem atualmente são duas pequenas cenas de duas obras diferentes. A primeira delas é protagonizada pelo Taro Lin, na série taiwanesa Kiseki: Dear To Me, onde ele entra em sua casa, depois de finalmente conseguir se entender um pouco com seu incômodo hóspede, e resolvendo lhe trazer a sobremesa que ele pedia, num gesto de reconciliação, afinal o beijo que fora motivo de briga também era o início de uma paixão. E ele então entra em casa com tudo escuro, com tudo silencioso, e lê num bilhete que o outro se foi, deixando-o ao que, sentado no chão e olhando para a porta ele imagina o outro fechando-a, o que o remete a partida de alguém em sua infância, já que ele esteve sozinho por muito tempo. A força de uma cena breve, que dura uns poucos minutos, com uma mesa vazia na entrada de uma casa escura e estranhamente fria agora. Aquele olhar, sempre sério e distante que ele tem com todos, é revelado então como reflexo da situação que ele vive. Por ter sido deixado só ele não se aproxima de mais ninguém, porque as pessoas sempre podem deixá-lo de novo. Mas aquele idiota era diferente, ele conseguiu se aproximar mesmo com toda rejeição. 

E agora ele entrava ali e se via sozinho, até a luz antes passava pelas portas de vidro se foi, o calor de antes se foi e ele ficou só com o próprio silêncio. 

Relacionada mas em outra obra de tom bem diverso foi a de Jun & Jun, onde o protagonista se declara após beijar o outro mas reclama que ele sabe que não deveria ter feito aquilo porque o amigo, e amado, iria embora em breve novamente, como foi anos atrás, separando-os e deixando apenas a lembrança do perfume na memória. 

As lembranças trazem consigo essa dualidade entre presença e ausência, a mesma percebida na dialética simbólica sobre a qual falei alguns dias atrás. O objeto lembrado se faz presente com saudade justamente por não estar presente fisicamente, como já bem disse S. João da Cruz "ferida de amor não se cura senão com a presença e a figura". Por estar ausente ele se faz presente na memória, que usa dos artifícios que melhor possam aproximar o amante da coisa amada. O perfume de Jun, o sorriso bobo do hóspede indesejado, a luz que parecia cheia de calor e que agora é fria e vazia, essas coisas vão criando então eco no coração dos amados que, debilmente, tateiam contra o afastamento, contra o abandono, em suma, contra toda a solidão que, a cada dia, me parece mais e mais ser a condição permanente do homem.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Funeral de Flores

Gosto de como é possível colocar as imagens vistas, seja as que eu leio ou que assisto, de forma esquemática assim, ainda que a compreensão, se é que se pode falar de algo tão consciente como compreensão já que talvez seja uma forma de fertilização profunda, uma matriz de intelecções mais no sentido Susanne Langer, algo que age ali por baixo do que é conscientemente percebido mas que abaixo desse véu acaba por formar o modo que percebemos acima dele, são aquelas imagens de luz e sombra que encontramos nos recessos da mente, aquelas imagens que, parecendo até mesmo estáticas, acabam por dar o movimento de todo o resto que vimos, sentimos e interpretamos. 

É como aquela imagem de Albáfica, o cavaleiro que, após sua última batalha, finalmente consegue enxergar a beleza das rosas que o cercaram a vida toda. Ali, de joelhos, ossos partidos e com sua armadura de ouro suja de lama e sangue ele vê as pétalas de rosa ao seu redor, morrendo feliz e reconhecendo que elas são belas. Aquelas pétalas são como o sangue que ele derramou para proteger aqueles que eram mais fracos e que ele jurara proteger, às custas de uma vida dedicada ao campo de batalha, longe de todos. Ele então sacrificou o coração quente e pulsante para proteger aqueles de quem ele nem mesmo podia se aproximar, protegendo-os lutando sozinho. As rosas que ele cultivava eram sua companhia amaldiçoada sendo, ao mesmo tempo, delas que ele tirava seu poder e por elas que ele não se aproximava de ninguém, negando até os afetos daquela jovem que, na chuva, subia as escadas do santuário para oferecer flores. 

Ele reconheceu a beleza das suas rosas, se identificando como uma delas também, uma rosa frágil e delicada mas que consegue manter seu esplendor graças aos seus espinhos. Também aqui, algo que eu só queria usar como ilustração já acaba se moldado como esquema quando eu penso um pouco mais no assunto. Colocando-se então as rosas nesse esquema dialético de analogias, onde semelhanças e diferenças que se antepõe vão justamente formado o substrato que me permitem entender algumas coisas. 

As rosas são esse elemento delicado que se protegem com espinhos violentos. São símbolo do cavaleiro que, de aparência bela e igualmente delicada, derrota sozinho poderosos inimigos. Elas são numerosas num jardim gigantesco cultivado por um único homem que, também protege um vilarejo inteiro onde as pessoas conhecem apenas o seu nome e o perfume de suas rosas. 

E é ainda belo até mesmo seu fim, quando a bela e delicada flor consegue uma força maior que a de seus inimigos e, morrendo, pode finalmente permitir que se aproximem dele, de seu corpo já sem vida que, em sua última ação, viu as pétalas de suas flores cobrirem as casas das pessoas que ele morrera protegendo. 

Um pequeno adendo pode ser feito a essa rosa que contém em si tambem aqueles elementos de força e delicadeza que foram tão bem condensados na tradição chinesa nos esquemas do e Yin e Yang. São a combinação do ativo e do passivo, do escudo e da lança, do visível e do invisível, esses conjuntos de pares antagonistas que, no entanto, se condensam nas coisas mesmas e que me ajudam a expandir a percepção.

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Símbolos de Intimidade


Já disse aqui, em outra oportunidade, que eu gosto de ver alguns trabalhos de fotografia que mostram cenas do cotidiano de casais, seja em momentos de intimidade explícita de forma artística ou de momentos simples, como um passeio no parque. Um amigo me perguntou o motivo de achar essas imagens bonitas, ao que refleti que a intimidade não se limita aos aspectos imediatos das demonstrações físicas, mas que podem, e geralmente são, tão profundos que essas demonstrações são apenas uma pequena parte transbordada desta. Mas, sendo tão difícil de se entender e enxergá-la com realidade podemos acabar então confundindo, desde os movimentos internos até as demonstrações externas que lhe são significadas. Dado isso é compreensível ao menos que as demonstrações apontem, embora não signifiquem totalmente, a intimidade secreta desejada e, por isso, admirada. 

Eu amo o longe e a miragem, tomando de novo as palavras do poeta no Cântico Negro, enquanto os outros admiram o que é fácil. Muito embora para eles essas demonstrações sejam fáceis eu as admiro justamente porque me são distantes. 

Aquelas cenas de ternura também me são profundamente caras, como as que recentemente assisti de novo em Wish You, um dos primeiros BLs coreanos a conseguirem fazer sucesso aqui no Brasil, com aquela simplicidade que Kang In-soo e Lee Sang conseguiram passar, se entendendo nos arranjos de uma música que dizia exatamente o que o coração de ambos queria dizer. Romantismos e idealizações à parte, também me recordo daquelas cenas de carinho entre os protagonistas de Tokyo In April Is... sobre as quais eu já falei algumas vezes, em que ambos encontraram, na privacidade de um pequeno apartamento com uma leve luz entrando pelas cortinas brancas, o carinho de um abraço que lhes permitia serem eles mesmos, sem interferências externas e nem mesmos dos seus medos e traumas. E me encanto até mesmo com essas demonstrações dos extremos que levam ao fundo do poço, e que também me renderam algumas boas reflexões, que foi a descoberta da intimidade em More Than Words, sendo a fotografia japonesa especialmente dedicada em mostrar esses momentos com sensibilidade ímpar. 

Mas então, deixando de lado essa digressão... Como explicar que eu preciso de silêncio, quando todos precisam que eu os ouça? Como dizer que preciso fechar os olhos, por breves momentos, e não pensar em muita coisa, quando a todo momento me aparecem novas questões. Como explicar que eu não consigo entender nada do que me dizem se eu não, antes, entender a mim mesmo? Como explicar que eu preciso não apenas de um abraço mas do seu abraço? Como dizer que não existem outros na minha mente, que na escuridão a minh'alma clama apenas por você? 

É idiota dizer isso, mas eu não tenho paz, não consigo respirar, não tenho tempo para prestar atenção em nada porque logo me aparece alguém em prantos ou desespero. Mas então, se eu tento sempre ajudar, facilitar, fazer o meu melhor, por qual razão é que sempre me aparecem mais e mais dificuldades... Se é mesmo verdade que atraímos o que fazemos, de nada tem adiantado ajudar e ser prestativo se, ao fim de tudo, eu só encontro o meu quarto vazio e mais mensagens com problemas para resolver. Se é mesmo verdade que o universo se importa em devolver o que damos a ele, pelo visto tudo que eu faço deve ser da mais grosseira brutalidade, já que meu único pagamento é a solitária noite após longo dia. 

Pois como sereis vós a entenderem que me é este amor que tanto careço se, nessa mesma noite escura eu só encontro a mim mesmo. Poderia me amar não é? Muitos o dizem, que esse amor próprio está na base e na premissa do amor ao próximo, o que bem pode ser verdade, mas então eu torno aquela minha pergunta fundamental: por que estamos todos, sempre e irremediavelmente, sozinhos? E se essa é nossa condição normal, por que ainda assim dói tanto?

Como explicar então que eu preciso do silêncio depois de longo tempo em meio a agitação do mundo justamente porque não encontro no mundo um peito florido para repousar em meio as açucenas? Os símbolos de intimidade me são uma constante lembrança da mais absoluta solidão. 

Agora
nesta hora inocente
eu e a que fui nos sentamos
no umbral do meu olhar

Alejandra Pizarnik