quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Funeral de Flores

Gosto de como é possível colocar as imagens vistas, seja as que eu leio ou que assisto, de forma esquemática assim, ainda que a compreensão, se é que se pode falar de algo tão consciente como compreensão já que talvez seja uma forma de fertilização profunda, uma matriz de intelecções mais no sentido Susanne Langer, algo que age ali por baixo do que é conscientemente percebido mas que abaixo desse véu acaba por formar o modo que percebemos acima dele, são aquelas imagens de luz e sombra que encontramos nos recessos da mente, aquelas imagens que, parecendo até mesmo estáticas, acabam por dar o movimento de todo o resto que vimos, sentimos e interpretamos. 

É como aquela imagem de Albáfica, o cavaleiro que, após sua última batalha, finalmente consegue enxergar a beleza das rosas que o cercaram a vida toda. Ali, de joelhos, ossos partidos e com sua armadura de ouro suja de lama e sangue ele vê as pétalas de rosa ao seu redor, morrendo feliz e reconhecendo que elas são belas. Aquelas pétalas são como o sangue que ele derramou para proteger aqueles que eram mais fracos e que ele jurara proteger, às custas de uma vida dedicada ao campo de batalha, longe de todos. Ele então sacrificou o coração quente e pulsante para proteger aqueles de quem ele nem mesmo podia se aproximar, protegendo-os lutando sozinho. As rosas que ele cultivava eram sua companhia amaldiçoada sendo, ao mesmo tempo, delas que ele tirava seu poder e por elas que ele não se aproximava de ninguém, negando até os afetos daquela jovem que, na chuva, subia as escadas do santuário para oferecer flores. 

Ele reconheceu a beleza das suas rosas, se identificando como uma delas também, uma rosa frágil e delicada mas que consegue manter seu esplendor graças aos seus espinhos. Também aqui, algo que eu só queria usar como ilustração já acaba se moldado como esquema quando eu penso um pouco mais no assunto. Colocando-se então as rosas nesse esquema dialético de analogias, onde semelhanças e diferenças que se antepõe vão justamente formado o substrato que me permitem entender algumas coisas. 

As rosas são esse elemento delicado que se protegem com espinhos violentos. São símbolo do cavaleiro que, de aparência bela e igualmente delicada, derrota sozinho poderosos inimigos. Elas são numerosas num jardim gigantesco cultivado por um único homem que, também protege um vilarejo inteiro onde as pessoas conhecem apenas o seu nome e o perfume de suas rosas. 

E é ainda belo até mesmo seu fim, quando a bela e delicada flor consegue uma força maior que a de seus inimigos e, morrendo, pode finalmente permitir que se aproximem dele, de seu corpo já sem vida que, em sua última ação, viu as pétalas de suas flores cobrirem as casas das pessoas que ele morrera protegendo. 

Um pequeno adendo pode ser feito a essa rosa que contém em si tambem aqueles elementos de força e delicadeza que foram tão bem condensados na tradição chinesa nos esquemas do e Yin e Yang. São a combinação do ativo e do passivo, do escudo e da lança, do visível e do invisível, esses conjuntos de pares antagonistas que, no entanto, se condensam nas coisas mesmas e que me ajudam a expandir a percepção.

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