sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Beijo tímido

"Que abismo que há entre o espírito e o coração!" (Machado de Assis)

Precisei diminuir o ritmo. Acordei várias vezes depois de um sono inquieto devido à uma crise alérgica persistente e incômoda que me fez amanhecer o dia dolorido e desesperançado. Cheguei mais cedo no trabalho, tomei um café especialmente doce, pois isso é a coisa mas próxima de um abraço que eu tenho ultimamente, e fiquei alguns instantes de olhos fechado, mentalizando uma boa música, aquelas do primeiro EP do ASTRO e algumas faixas de rap coreano... Acho que o café é só um paliativo, mas tudo bem, pelo que vejo todos precisam de algum tipo de abraço atualmente, especialmente quando vem à tona o vazio, como me veio nos últimos dias. Vazio brutal, silencioso e repleto de pessoas caladas que passam sem olhar para os lados. Vazio e sufoco, a descida silenciosa ao limbo, o primeiro círculo do Inferno de Dante. Vazio, distante, como o pôr do sol, a luz findando e dando lugar ao assustador breu, mas eu já não tenho medo, nem tampouco desejo de enfrentar essa escuridão. Eu já não sinto mais nada.

E me vem a questão: tento sair desse torpor melancólico com alguma compra superficial e completamente arbitrária chamada de autocuidado ou insisto ir numa reunião absolutamente insuportável pela simples tentativa de convivência?

Tomei meia garrafa de vinho quando cheguei em casa, não comi nenhuma das dez barras de chocolate que comprei ao sair do trabalho porque simplesmente esqueci e ainda acabei adormecendo vendo vídeos idiotas na internet. Não tinha cabeça pra estudar e nem pensar em mais nada, algumas mensagens se multiplicando no meu celular e minha mente, bem, essa se perdeu em algum lugar naquelas músicas que tocaram durante a noite toda. 

Eu nada mais disse e nem me foi perguntado, com a mente completamente em branco eu apenas me levantei para mais um dia. 

Percebi que não estou muito atento a nada, na verdade meus dedos passam rapidamente pela tela do celular, um número infindável de homens bonitos e sem camisa, e eu apenas admiro por um breve segundo antes de ver o próximo e o próximo, o café já frio do meu lado e eu continuo passando as imagens sem realmente me deter em nenhuma delas. Os dias só estão passando, passando, passando... Mas, afinal, o que mais eu queria mesmo?

A única coisa conseguiu me chamar atenção foi apenas ficar revendo algumas cenas de Taikan Yoho. Aquelas imagens de um apartamento meio claustrofóbico, ao mesmo tempo aconchegante pela presença dos dois homens, vermelhos de afeto e luz do sol, o frio do Japão aquecido pelas palavras não ditas e pelos abraços tímidos daqueles dois. Me identifiquei com o olhar vazio e melancólico do protagonista que não consegue entender como o outro gosta dele. O vazio ao mesmo tempo é acompanhado desse aconchego, daqueles momentos de intimidade silenciosa, de uma cumplicidade simples, compreensão terna. A sombra e a luz que se encaixam, que se completam, o solitário no chão em estado catatônico, a cor que retorna à sua face depois de uma refeição acompanhado, a reação do corpo, o beijo tímido de lábios rubros.

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