quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Criação

Bom eu fui, e garanto que me esforcei um monte pra conseguir sair do sofá nesse dia meio cinza, meio assim sem graça, e caminhar um pouco, coisa que não fazia já há um bom tempo. Vi pessoas sorrindo nos restaurantes esperando pelo almoço, vi o mar meio preguiçoso, uns barcos levando os turistas ou pescadores aqui e ali, um casal perdido. O céu ficava pouco a pouco mais escuro e o vento mais forte. Mas não fiquei muito tempo. Embora o céu estivesse lindo, o mar daquele cinza brilhante que eu gosto, os meninos bonitos passando por mim de bicicleta, voltei logo pra casa mesmo assim porque achei tudo bem entediante. Minha alma está entediada e já não se inflama. E então deus criou o céu e as estrelas, encheu o mar de criaturas e de movimento para servir de símbolo do eterno aos homens, e ele viu que tudo isso era muito chato.

Eu tinha dito, com boa dose de convicção e de sucesso nos primeiros dias, que iria me fechar e ignorar todos esses sentimentos até que, uma vez agindo como se não fossem nada, acabassem não sendo nada mesmo. E deu bastante certo, mesmo. Mais de uma vez eu assumi uma postura quase estoica em relação ao outro, olhava para os homens bonitos com o mesmo interesse que olhava para uma paisagem bonita, desviando logo em seguida e sem me atentar a nada, com profunda aversão a tudo. E até mesmo agora, tudo o que sinto é apenas uma pequena centelha que ainda insiste em reacender, ameaçando timidamente se tornar um perigoso incêndio. 

Mas ao mesmo tempo ela não consegue crescer porque fustigada de ventos frios que já não permitem que ela cresça como antes, quando queimava de tal modo que já não podia resistir nada de pé, senão que precisava me refazer a cada ciclo, tarefa tão dolorida e complicada que eu não quero mais, eu já rejeito o fogo que me obriga a renascer das cinzas. Não sou como Fênix, todos os meus renascimentos me resultaram em cicatrizes e um medo terrível da dor. Não sou como aqueles que dizem ter ficado mais fortes, não, eu tenho agora medo, muito medo da dor. 

E é por isso que deixar de acreditar em tudo isso me dá apenas uma profunda desesperança quanto a tudo. Mas ainda é melhor viver sem brilho do que com toda aquela dor. Muito embora amar me faça sentir vivo é uma vida dolorida demais. 

E isso me vem dessa constatação de que sentimentos não são criados, embora sejam cultivados. Eu acreditava naquela antiga história de que os sentimentos podiam ser tão intensos e verdadeiros que poderiam tocar o outro. Não podem, ou talvez até possam se o outro estiver aberto a isso e não focado demais nos seus interesses para perceber isso. Não, o Amor como dito algo belo e poderoso é apenas um conceito abstrato demais que usamos quando algo dá certo e para criar ilusões tão destrutivas quanto a realidade que negamos enxergar. E esse amor foi minha própria criação mas, ao contrário de Deus que viu que tudo aquilo era muito bom, ao olhar o mundo que criei eu vejo que tudo que ele merece é ser destruído. 

Uma ultima digressão antes de encerrar: torno a pensar rapidamente no que deveria fazer, enquanto a fala de uma pessoa pulula a minha mente dizendo que deixar de se cuidar é um dos sinais de depressão, o que não é nenhuma novidade, mas eu olho para a pilha de roupas na minha cama, ou a minha barba que cresce sem controle ou até minhas unhas e, bom, só consigo pensar que é tudo muito chato, cansativo e que eu preciso dormir.

"Os meus ímpetos juvenis já se tinham abatido há tempos: desde muito o tédio já me tinha carunchado por dentro e desvigorado o pêsame." (Pirandello)

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