quarta-feira, 31 de julho de 2019

Sobre estar bem


"Tudo bem não estar bem às vezes."

Acabei de ouvir isso, e chorei, chorei compulsivamente como se essa fosse a maior verdade da existência humana. Chorei porque, de certa forma, a carga emocional que despertou em mim foi semelhante a de um raio que, cortando o céu atinge com força o chão, incendiando tudo ao seu redor. Meu coração ressequido foi incendiado, e então queimei em lágrimas porque esse sou eu.

Sou eu quem tem lutado para estar bem, a cada minuto do dia, tentando abafar as vozes da minha cabeça que constantemente sussurram e até mesmo gritam-me coisas horríveis. Sou eu quem tem lutado para estar bem mesmo estando péssimo. E sou eu quem acha que se tornou um peso para os outros, sou eu quem acha que se tornou dispensável, oscilando entre momentos de lucidez e insanidade quase absolutos três vezes ao dia. Sou eu quem tem lutado contra demônios e fantasmas, tudo isso para conseguir sair na rua sem pensar que cada pessoa tem motivos para me odiar e que cada amigo tem razões para tramar a minha morte. Sou eu quem tem sofrido os golpes pesados do destino como marteladas em minhas costelas, arrebentando com o mínimo que há de bom senso em mim, escoado pelos buracos das paranoias que tecem o véu de minha pequena mente distorcida. 

Venho tentando de tudo. Busquei me distrair com novas músicas, maratonas de filmes, me arrisquei nas bebidas, me entreguei a compulsão pelas compras gastando o que não tenho... Mas nada adiantou. Isso porque não é um sentimento ruim que há em mim. Eu estou doente e preciso lutar contra isso que consome minha mente e meu coração a cada dia, isso que me deixa na fronteira da loucura a todo momento. 

E estou lutando, e continuarei lutando, até onde aguentarem as minhas já esquálidas forças. Não sei onde isso me levará, mas tudo bem, tudo bem não estar bem às vezes! 

terça-feira, 30 de julho de 2019

Corredor Escuro

Medo. As minhas mãos tremem, quase não consigo ficar de pé. Escrever é quase impossível. É como se cada músculo do meu corpo se recusasse a qualquer ação, é como se minha única vontade fosse a de ficar absorto num sono calmo, onde não houvesse essa insegurança constante, esse pavor de ficar sozinho. 

Meus pais saíram, a casa está vazia e escura, nesse momento eu sinto como se fosse desaparecer. Aqui, sozinho, no silêncio dessa noite fria, sem que ninguém saiba que aos poucos eu estou sumindo. É como se meu corpo e minha mente se dissolvessem num tipo de fumaça, etérea, fugaz. Sinto como se não fosse mais tangível do que aquele vapor que sobe da chaleira, onde aqueço um chá na esperança de que isso esquente um pouco meu coração. 

Mesmo sozinho é como se sentisse olhos invisíveis as minhas costas. Como se todos me olhassem, com olhar de julgamento. Como se todos me olhassem como se me odiassem. Todos me odeiam, eu tenho certeza disso, e o olhar frio de desprezo que todos dão a mim me confirmam isso. Eu não quero ser odiado, eu quero que todos gostem de mim, mas eu não consigo, sou imperfeito demais para isso. Eu não quero mais ficar só, não quero mais ser essa criancinha machucada que está sempre chorando... 

Eu estou sempre chorando. Seja no banho, no silêncio antes de dormir ou durante meu sorriso mais amarelo eu estou chorando. Isso porque a todo momento eu me sinto só. Mas eu não quero mais chorar, eu quero ser forte, eu quero ser um homem forte mas, quando eu olho para esse correndo vazio e escuro eu sinto medo, não do escuro apenas, mas da solidão que ele simboliza. É como se olhasse para o escuro do meu coração e só encontrasse isso, um abismo de solidão e vazio. 

Parece que não sou mais do que uma grande depressão, como se a profundidade do meu ser fosse o mais absoluto vazio, repleto de nada. Isso é desesperador. Eu olho para esse abismo e, quando ele olha para mim, sinto medo, pavor. Por isso as minhas mãos tremem, por isso eu enlouqueço e tomo as piores decisões. Por isso eu me sobrecarrego com compromissos e depois me desespero sem querer ir a nenhum deles, por isso eu tomo remédios para dormir, por isso eu bebo na  tentativa de amenizar esse medo, mas tudo isso só aumento o meu horror, tudo isso só me deixa ainda mais consciente do corredor escuro que há em mim. 

segunda-feira, 29 de julho de 2019

A Lista

Faça uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás?
Quantos você ainda vê todo dia?
Quantos você já não encontra mais?

Faça uma lista dos sonhos que tinha
Quantos você desistiu de sonhar?
Quantos amores jurados pra sempre?
Quantos você conseguiu preservar?

Onde você ainda se reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora?
Hoje é do jeito que achou que seria?
Quantos amigos você jogou fora?

Quantos mistérios que você sondava
Quantos você conseguiu entender?
Quantos segredos que você guardava
Hoje são bobos ninguém quer saber?

Quantas mentiras você condenava?
Quantas você teve que cometer?
Quantos defeitos sanados com o tempo
Eram o melhor que havia em você?

Quantas canções que você não cantava
Hoje assobia pra sobreviver?
Quantas pessoas que você amava
Hoje acredita que amam você?

Oswaldo Montenegro 

domingo, 28 de julho de 2019

Indagações íntimas

Será que esse amor é real? Será que o amor é real? O que é o amor? O que é isso que todos falam, que todos sentem, que todos vivem? O que é isso que fui condenado a nunca conhecer? O que esse amor? Que amor é esse? O que é isso? 

O amor não existe para mim, não me foi revelado, não me foi dado esse dom.  Não sei o que é o amor, não sinto ser amado, não sinto poder amar verdadeiramente. Apenas sinto um ímpeto, um impulso do fundo do meu coração, mas não é amor, é apenas algo que me traz dor e sofrimento, apenas horror.

Será que existe realmente, isso que faz com que queiram lutar por mim? Será que existe realmente isso que faz com que eu seja importante pra alguém de verdade? Será se existe amor de verdade para mim? Será que há um conto de fadas, uma história de amor, uma história que seja algo mais do que minha existência patética em busca de um amor que preencha esse vazio imenso bem no âmago do meu coração? Será que existe alguém no mundo capaz de me amar verdadeiramente? Será que existe amor para mim neste mundo? Ou faço, de fato, parte daquela estirpe de condenados a mais absoluta solidão? Será que existe um amor pra sempre?

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Do Último Desejo


Um caráter levemente melancólico toma conta do ser
Um abismo no lugar da essência.
O esperar pela morte se torna a única sina.
(Nícolas Gonçalves)

Cansei. Cansei, de tudo, de todos. Não aguento mais sequer abrir os olhos ou encher de ar os meus pulmões. Não aguento mais constatar minha existência. Não a suporto mais. Quero o fim, eu desejo voltar ao nada, eu quero desesperança, eu quero morte, eu quero a inexistência, eu quero aquele estado inicial que perdemos muito tempo atrás, eu quero qualquer coisa que faça cessar essa absoluta solidão. Eu quero qualquer coisa que cesse os gritos raivosos do silêncio de minha alma perturbada. Não quero mais viver, não quero mais essa existência patética, pífia, dolorida, solitária, cheia de egoísmos, cheia de avarezas, onde a subserviência e a ganância falam mais alto do que o suposto amor que deveria existir em nossos coração. Em nossos corações não há amor. Não há nada. Há apenas vazio. Um buraco, oco. Há apenas essa maldita imperfeição fundamental que assusta o ser humano desde o primeiro pensamento, há apenas o desejo de esperar pelo fim, pelo cessar de todas as tempestades, pelo cessar de todas as relações fúteis, pelo cessar de tudo. Não há esperança, não há paz e amor, não entendimento. Há apenas poder, e aqueles que são fracos para conquistar e se impor sobre os outros. Há apenas o sabor amargo da desesperança, misturado ao sangue das vísceras daqueles que se derramam apaixonadamente e que recebem em troca um punhal cravado no peito, acompanhado das risadas da vitória. Há apenas a total, completa e absoluta desesperança. Há apenas o caos, no coração do homem. Do homem que olha ao redor e foge das feras do mundo mas que, ao olhar para dentro de si, vê que o demônio mais assustador é aquele que habita seu próprio coração, é sua própria verdade. Verdade de solidão. Do homem podre, mortal, do homem boçal.  Há apenas o desejo pelo final.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Sempre

Me recordo bem que, ainda na semana passada, eu fitava as vitrines das lojas com o mais absoluto desinteresse, absorto em minhas preocupações, lutando contra os demônios de minha ansiedade que tentavam escapar de suas correntes. Contrariando todas as estatísticas eu saí sem comprar nada, sentindo nada mais do que um enorme vazio que nada ali poderia preencher.

Hoje, por outro lado, não dei dois passos sequer dentro da primeira loja sem gastar mais da metade de meu salário em produtos que nunca vou usar, sentindo nada mais do que um enorme vazio que nada ali poderia me preencher.

O prazer é momentâneo, e o busco como se fosse a felicidade. A felicidade é, então, não mais do que uma ilusão fugaz, uma visão no vapor de água que desaparece rapidamente ao menor contato dos dedos. É uma miragem que eu nunca poderei tocar. 

Tomado, por um desânimo completo ou por uma euforia suicida eu me vejo nas antípodas de uma guerra. Parte de mim quer se trancar no quarto e dormir, dopado, até que tudo se resolva de algum modo, e outra parte quer lutar, sair, correr, encontrar algo ou algum lugar melhor, onde toda essa dor não exista. 

Mas que dor é esta? 

É a dor da individualidade, a dor que vem do que me separa do outro, a dor que vem da incapacidade de me fazer entender e de entender o outro. A dor que vem de estar numa multidão e ainda sentir-se sozinho. A dor de estar sentado ao lado de uma pessoa todas as noites mas sentir que são completamente estranhos e que nada sabem um do outro, que nunca conseguiram tocar mais do que a superfície. É estar com alguém mas ainda estar sozinho. E estou cansado disso. 

Cansei de forçar a minha presença nas festas e nas reuniões. Cansei de mandar mensagens perguntando o que as pessoas pensam, o que as machuca porque, no fim das contas, poucos se importam com o que me machuca. Cansei de estar rodeado de barulho, prefiro ficar sozinho. Mas tudo bem não é? 

Eu sempre estive sozinho mesmo. 

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Oceano

Minha vida tem sido uma eterna fuga. Fujo de meus demônios, de meus medos, fujo do mundo que me rodeia, da realidade que me abarca, da eternidade que me transcende. Sempre fugindo, me escondendo, de tudo e de todos, como uma criança fugindo da escola pela porta dos fundos, os joelhos trêmulos e o coração acelerado. 

Fugir é mais fácil. Lutar é para os fortes, para aqueles que conseguem enfrentar seus inimigos com as mãos ou a voz, e eu não consigo enfrentar nada além do meu próprio reflexo num espelho quebrado. É mais fácil deixar-me abraçar pelo sono lisérgico dos benzodiazepínicos do que permanecer vigilante e ser obrigado a contemplar as hordas de mortos-vivos que me rodeiam buscando devorar-me a carne e os ossos. É mais fácil fugir para aquele terreno intocável, onde ninguém pode colocar os pés, onde apenas posso lamber as minhas feridas como o cãozinho assustado que sou. 

O sono tem sido meu único refúgio confortável nesse mundo, lá ninguém pode me ferir como o fazem aqui. É o único refúgio dos covardes pois, não há abrigo para pessoas como eu nesse mundo. 

As máscaras são os portões que me separam de todos. O sorriso descontraído, o semblante calmo, as piadas esdrúxulas, tudo meticulosamente calculado para que ninguém perceba a tempestade que castiga as minhas encostas. Os ventos impetuosos agitam as águas e fazem todo homem tremer de medo. Assim é meu coração, numa inquietude perpétua e poderosa como a do mar. Eu não nasci do mar, mas sou daqui, aparentemente calmo em minha languidez titânica, mas poderosamente impetuoso em minha tempestiva fúria desordenada. A calma e a fúria, os aspectos conflitantes de minha personalidade. O interior e o exterior, a dicotomia que rege minha existência num mundo de individualidades que se chocam como as ondas na praia. 

Mas não é como se precisasse das máscaras. A minha própria existência é, por si, um muro que afasta todos do meu verdadeiro eu. Ninguém me vê senão da forma como me imagina, e cada um a sua maneira. Um louco que não compreende a razão da própria existência, um sátiro niilista, um cristão confuso. Todos estão errados e não enxergam mais do que uma pequena fração de mim. Não são capazes de ver o todo, isso é óbvio, mas sequer conseguem ver tudo o que permito que vejam. Estão cegos, por suas próprias máscaras.

Eu sou a soma da consciência de mim mesmo, e de todos os elementos essenciais e acidentais que me compõem. Eu sou o que sou, e nada mais do que isso. Seja lá quem quer que eu seja, eu sou, mas ninguém pode ver isso. 

Sigo então, como o mar e para o mar em minha fuga, calmo como a maré que lambe delicadamente as pernas dos transeuntes e destrutivo como o tsunami, que arrasa por onde quer que passe. Imponente e misterioso como o próprio Okeanos

sábado, 20 de julho de 2019

Depois

Finalmente o grande dia passou e uma enorme carga de responsabilidade foi retirada de minhas costas. O cansaço que sinto agora é extremo, cada fibra do meu corpo clama por descanso. Depois que a tensão crescente dos últimos dias foi retirada de mim passei a sentir com dez vezes mais intensidade o resultado da contração de meus músculos ansiosos. O cansaço, no entanto, traz consigo não um significado de dever cumprido, não apenas isso, mas também marca o fim de algo que ainda não sei definir o que é.

As últimas semanas foram marcadas por uma reflexão ímpar. Constantemente coloquei em cheque meu valor diante de meus trabalhos e minha importância diante daqueles que amo. Entrei num frenesi tentando encontrar meu lugar no mundo, tentando entender a razão da minha existência. Nenhuma resposta, claro. Isso me levou ao completo desespero, quantas vezes não em vi chorando no meio da rua ou machucando meu próprio corpo por não conseguir me encaixar, por estar sempre me sentido deslocado de tudo e de todos? 

É desesperador ver-se sozinho. 

É assustador ouvir a multidão ao seu redor e não conseguir enxergar ninguém capaz de compreender. É horrível, das sensações a pior. E esse fardo não, antes disso, acho que, de tudo que se foi, ele foi a única coisa que me restou. 

Um vazio absoluto.

Cheguei a escrever, num momento de absoluta escuridão, uma carta de despedida, no entanto, não cheguei a publicá-la pois, como ainda estou estou escrevendo, a covardia foi maior do que minha vontade de tirar minha própria vida. Mas eu não a apaguei, nem a carta e nem a possibilidade. 

Apenas sinto agora, os protestos silenciosos de meu corpo por um ócio que consiga me recuperar. Exigi demasiado de mim mesmo e vi que isso fez com que esquecesse completamente de minhas necessidades mais básicas... Acho que essa é a primeira refeição de verdade que faço em dias, talvez seja a primeira noite de sono realmente tranquilo e, finalmente, talvez seja amanhã o primeiro dia em que acorde sem desejar não ter acordado. 

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Nenhuma resposta

Manhã, o início de um novo dia. De um novo dia terrível.

Os últimos tempos, de um amadurecimento ímpar provocado pela vida profissional que me foi imposta, tem serviço de suporte para novas perspectivas. Infelizmente tratam de perspectivas negativas demais, se comparadas aquelas que os outros parecem ter.

A avaliação que consigo fazer é que essa nova vida me deu uma perspectiva diferente sobre minha relação com os outros. Infelizmente é uma visão bem negativa. Parece que as pessoas nunca podem entender-se realmente. Acho que, a cada dia, me sinto mais distante dos outros e o sentimento de vazio só aumenta. Nenhuma das minhas relações humanas parece ter sentido.

Tenho encarado a vida com absoluto desinteresse sobre tudo, como se nada pudesse me oferecer o mínimo de encantamento. Esse mundo perdeu a graça para mim e eu agora o observo com os olhos cansados, sem esperança e nem motivação para buscar algo melhor. Parece que nada pode me alegrar nessa terra, nenhuma felicidade se encontra aqui. Encontro confusão, raiva, desesperança, nada de realmente belo ou encantador parece existir para alimentar minha alma sedenta de realização.

Mas nenhuma realização parece possível. Só vejo caos, conflito e dor. Isso é a vida? Isso é tudo que tenho para encontrar? Depois de tantas perguntas, de tantos anseios tudo o que me resta é aguardar ter a boca coberta por um punhado de terra enquanto os vermes devoram a minha carne fria?

Onde está o sentido que me prometeram? Onde está essa coisa que todos buscam com tanto afinco, a ponto de lhes fazer levantar todos os dias antes do sol nascer e trabalhar para outras pessoas, como se essa busca lhes fosse dar o sentido da existência? Não consigo ver sequer isto que buscam, não consigo compreender o que eu mesmo busco, não consigo encontrar razão, não importa para onde quer que olhe. 

O pôr do sol. O fim da vida.

Nenhuma resposta.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Saga

A saga pela busca da compreensão do eu continua. A vida permanece existindo e com ela as vicissitudes de nossas individualidades. Os limites entre o eu e os outros, a razão que permite a alguém ser mantém-se ainda de pé. 

Os corações abertos, as palavras sinceras, os desejos profundos. Todas essas coisas são lanças quebradas que tentam em vão penetrar o âmago da nossa existência, impenetravelmente protegido pelos escudos de nossas almas individuais. São gritos abafados, que ecoam apenas no interior de nossos sonhos mais sombrios sem nunca serem ouvidos por ninguém. A causa da dor e de todo sofrimento. O fogo que queima no inferno mais profundo de nossos corações. A fonte de todo egoísmo, de todas as guerras que destroem o homem. A causa de toda solidão, de todo medo. 

Do medo do outro, do seu sucesso, do seu autoconhecimento. Medo da dor que o outro pode nos causar. Medo da constatação de que, por mais que vivamos uns ao lado do outro sempre estaremos sozinhos e assustados com essa imperfeição fundamental que aflige a alma humana desde seu primeiro pensamento. 

O homem da-se conta de sua solitária existência, de sua individualidade intocável, e o medo do vazio desconhecido e escuro de seu próprio coração o faz sentir desespero, e ele passa então a morrer por dentro, desejando desfazer o escudo ele acaba por desfazer a si mesmo, sem sequer arranhar o outro, e então, perdendo toda esperança mergulha no oceano caótico do desejo do fim. 

No fim de tudo o homem é apenas uma criança que, soltando a mão de sua mãe vê-se sozinha num mundo grande demais para percorrer, e então chora desesperadamente pelo retorno aquele contato que perdera. A única existência possível então é essa, de contato com o outro e, no entanto, é a existência que perdemos há muito tempo atrás, quando abandonamos o útero primitivo e cortamos o cordão umbilical que nos mantinha ligados à mesma existência. 

Se houvesse um meio de voltar a essa existência, de expandir o nosso ser até cobrir a totalidade da existência. Se houvesse um meio de conhecer o outro em sua totalidade, de não ser machucado pelas barreiras que nos dividem e que nos permitem ser quem somos. Se houvesse uma maneira de existir de uma forma diversa dessa tão dolorosa... Mas tudo o que há no mundo é a tristeza da incompreensão. 

Olhe ao seu redor, para a pessoa que você namora, olhe para seus pais, seus amigos, tudo o que você vê é uma versão resumida de suas verdades individuais, tudo o que vê é uma fração do que realmente são. Há ainda as pessoas que habitam sua própria mente. O outro que habita em você, assim como o seu eu que habita o outro, mas nada disso é você realmente, e nem o outro em sua totalidade. A soma da consciência de si mesmo pode ser você, assim como a soma da minha consciência sou eu mesmo, mas de que adianta saber quem sou, se o soubesse, se eu serei o único a saber? E não sabendo sequer quem sou não posso, tampouco, saber quem é outro.

Somos absolutamente estranhos. Somos estranhos a nós mesmos e somos estranhos aos outros. E assim, construímos um mundo inteiro ao nosso redor, cheio de paredes e coisas barulhentas, para afugentar o medo que sentimos desse silêncio absoluto que grita no íntimo de cada um de nós. Mas, no fim, tudo desmorona, quando percebemos que tudo o que fizemos não adiantou de nada, e que continuamos sozinhos, vazios e solitários. 

Esse é um retrato bem infiel, diga-se, do que sinto. Infelizmente a expressão escrita já faz parte de todo esse escopo externo do ser, ou seja, é o que sai de mim e que fica no mundo sem, no entanto, conseguir tocar o que de fato está em mim. É como me sinto, parcialmente, e isso explica porque o eu que se apresenta aos outros é tão diferente do eu que contempla a si mesmo no espelho interior. Sorrio pela manhã, dou longas aulas sobre pessoas de outras épocas e sobre paisagens naturais. Canto na missa e fico ao lado do padre durante as palavras da consagração, mas em casa, sozinho, eu me sinto em absoluta desconexão com esse mundo, deslocado de mim mesmo, como se não fosse capaz de ver ou tocar, mas sempre como um observador, que vê um outro eu ver ou tocar. 

Por fim, é apenas um manifesto, de alguém que continua nessa saga, em busca da compreensão do eu pois, se já não consigo ver o o outro como ele e apenas estou condenado a solidão, que ao menos consiga contemplar a mim verdadeiramente, sem a horrível sensação, que me tem sido constante, de olhar no espelho sem me reconhecer na imagem ali refletida. É um manifesto também sentir dor, propositalmente, na esperança de que isso minimize a sensação de deslocamento. A dor tem o poder de me trazer de volta, ao maximizar a sensibilidade do corpo eu consigo fugir da sensibilidade da mente e, ao me tornar consciente de minha própria existência física e focar no ardor dos cortes em minha pele, consigo esquecer do horror escuro e vazio do meu coração.

As coisas como efetivamente se passaram

"Tudo o que estou fazendo na minha vida foi concebido em vista de responder o seguinte problema: supondo-se que eu quisesse adquirir um conhecimento da História, da Cultura, da Filosofia, da Religião, que respondesse àquela famosa exigência do Leopold von Ranke - “eu quero conhecer as coisas como efetivamente se passaram” - pouco importando se eu vou poder usar isso numa profissão acadêmica ou se, ao contrário, isso só vai me transformar num sujeito esquisito, que ninguém compreende.

Se você tem a coragem para isso, você pode chegar ao conhecimento da Realidade, você pode chegar ao conhecimento objetivo. Porém, note bem, quanto mais coisas você conhece, isso significa que você conhece coisas que os outros não conhecem. De cara. Saber mais é saber o que os outros não sabem.

Então, quanto mais você sabe, menos você será compreendido por aqueles que não sabem. Se você quer pagar este preço, se você acha que o conhecimento vale isso - eu acho que vale, dediquei a minha vida a isso e não estou nem um pouco arrependido, mas eu tive que aprender ao longo do tempo a não esperar ser compreendido pelos ignorantes, eles não têm como compreender - então essa é a primeira coisa.

Segundo: se você quer isto para você ser efetivamente um estudioso sério e não necessariamente para ser tido como tal pelos ignorantes que posam de estudiosos, então você vai ter que seguir uma série de práticas e de protocolos de aprendizagem que lhe permitirão chegar onde você quer. Foi isso que eu fiz a minha vida inteira e é o que eu gostaria de ensinar aos outros a fazer.

Então, quando eu coloco um problema na cabeça eu quero a resposta efetiva, (eu sempre penso) essa frase do Ranke não me sai da cabeça: "eu quero conhecer as coisas como efetivamente se passaram". E eu acredito que a inteligência humana é efetivamente capaz de fazer isso.

Porém, "as coisas como efetivamente se passaram" não são necessariamente as coisas como as pessoas gostam de imaginar como elas se passaram. E quando você descobre coisas do passado, você modifica a visão que você tem dos personagens do presente, você os olha dentro de uma outra perspectiva.

Quer dizer: a sua escala de comparação cresce formidavelmente, porque aquilo que para os outros pode ser uma novidade e tal, você já tem elementos de comparação anterior, já não é tão "novidade" assim. Muitas coisas nas quais a maior parte das pessoas depositam grandes esperanças, você já vai saber - de antemão - que não vão dar certo, porque você já tem a experiência histórica acumulada.

E, também, pode acontecer o pior de tudo: que quando você tiver compreendido uma série de processos, tiver adquirido uma cultura filosófica e histórica monumental, as pessoas não queiram saber qual é a sua opinião. Elas preferirão se ater aos seus preconceitos, às suas ideiazinhas. Isso de fato acontece. Aí você vai ficar numa situação um pouco esquisita.

Eu me lembro uma vez eu vi uma senhora na rua, ela tinha caído no chão e estava se debatendo e tendo uma crise histérica, acho até uma crise epilética. E fui lá ajudá-la a se levantar e tal. Daí ela começou a me esmurrar gritando assim: “eu odeio homem, eu odeio homem”. E o que eu posso fazer, minha senhora? Então, quer saber? A senhora não quer que eu a ajude, eu não a ajudo.

Muitas vezes perante os políticos, os homens públicos, os formadores de opinião, líderes empresariais, militares etc., você vai ficar nesta situação e falar: "olha, eu sei a solução para o seu problema, agora se você não quer, o problema é seu, eu só quis ajudar." Você vai ficar na posição do consultor indesejado.

Isso também pode acontecer, mas ainda assim eu acho que a busca do conhecimento é a melhor finalidade da vida, não tem coisa melhor. É melhor você estar entendendo, porque você não vai sofrer como um bichinho. Sofre com a dignidade de um ser humano, sabendo o que está acontecendo”.

Olavo de Carvalho 
Trecho da Introdução ao Curso de Filosofia.

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Sem lágrimas

Eu não consigo mais chorar. Eu sinto a dor mas as lágrimas não vem. E isso tem sido tudo o que venho sentindo nos últimos dias. 

Dor.

Uma dor incansável, que nunca cessa, nunca diminui. Uma dor que reverbera por todo meu corpo, desde a ponta de meus dedos até o tutano de meus ossos. Uma dor que se acende a cada sorriso, a cada segredo, a cada olhar frio. Uma dor que me consome em cada existência que se confronta com a minha. Uma dor que me faz repetir as mesmas palavras sempre, uma dor que me faz desejar desesperadamente pelo fim da minha existência. Uma dor que me mantém preso no ciclo vicioso de minhas queixas, num mundo feito dos recessos de meus pensamentos. Uma dor que me obriga lutar constantemente, a cada minuto do dia, para manter o resto de sanidade que ainda me sobrou. 

"A morte pode ser a única liberdade absoluta."
(Kaworu Nagisa)

O desespero me leva ao cúmulo da covardia. Essa covardia me faz desejar a morte. A dor me aprisiona e me faz clamar lenta e silenciosamente no íntimo do meu ser pelo fim. 

Essa covardia  me faz regredir, me esconder, me encolher tanto dentro de mim mesmo que me torno não mais do que uma concha. Ela me leva ao recanto mais escuro e sombrio da mente humana, onde há apenas uma mescla nojenta de medo e ódio, cintilando em cinquenta tons distintos de raiva, inveja, melancolia, horror e negação. 

Mas não adianta mais sentir. Não adianta mais falar. Não consigo mais chorar, mesmo sentindo tanta dor com tanta intensidade. Só me resta então fechar-me dentro de mim, lutar contra o demônio que constantemente pede pela minha própria vida, sibilando em meus ouvidos que a liberdade que desejo está na morte, anunciando, como um arauto, o fim que deve vir pelas minhas próprias mãos. 

sábado, 13 de julho de 2019

Retorno

Campo de Terror Absoluto

É o fim.
O ponto em que cessa minha existência e tem início a do outro.

A barreira final.
O limite consciencial entre eu e o outro. 

Aquilo que me separa de todos, que nos separa. 
Aquilo que nos torna individualidades concretas. 
Aquilo que faz com que eu seja eu e o outro, apenas o outro.

A definição da minha verdade, que contrasta com a verdade do outro.
O inferno são os outros.

Eu já entendi. Não somos todos condenados ao desentendimento absoluto, não, eu sou o único condenado a estranheza total com o próximo. Costumava pensar que todos fazíamos parte do mesmo rebanho de loucos, vivendo totalmente distantes uns dos outros, quando na verdade apenas eu me encontro num mundo diferente. 

Incapaz de ver o que todos os outros enxergam. 
Incapaz de entender o que dizem, o que fazem, o que entendem. 

O inferno são os outros.

Despersonalização.

Tento deixar de ser eu mesmo para me encaixar de alguma forma nas estruturas sensoriais do outro. Tento penetrar o limite de sua consciência, tocar seu coração. Mas esse é um escudo que não pode ser quebrado. A minha lança se partiu e já são serve mais para penetrar o lado do meu irmão. Minhas mãos apenas arranham o seu escudo, minha voz sequer pode ser ouvida. Ou melhor, é ouvida mas não compreendida. 

Mas isso não é possível de se fazer.

Eu sou aquele condenado pela existência a desejar o retorno. 

O que as pessoas perderam. 

As mentes que desapareceram, afobando-se para preencher o vazio da mente.

A complementação. 

A Instrumentalidade que fará todas as coisas se tornarem inexistência.

O retorno ao nada, o retorno a inexistência. Mas não, isto está errado, não é o retorno a inexistência. É o retorno aquele estado inicial, aquele útero primitivo que perdemos tempos atrás. É o retorno ao estado onde não há barreiras, onde findou o terror absoluto. 

Todas as almas e mentes se tornarão uma, atingindo o eterno equilíbrio. O objetivo final não é nada mais que isso!

Esse é o meu sonho. Utópico demais para sequer ser dito em voz alta. Mas é a única forma que enxergo para ser feliz. 

- Ninguém me entende!

- Qual é, você é idiota? É claro que ninguém te entende, ninguém nunca consegue te entender. O único que pode tomar conta de você e entendê-lo é você! Você mesmo! Portanto você deve se cuidar.

- Mas eu ainda não entendo a mim mesmo. Eu nem mesmo sei o que que faz de mim eu mesmo. Como é que eu posso amar a mim mesmo?

~


Obs.: o texto em negrito foi retirado de Neon Genesis Evangelion, de Hideaki Anno.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

O Abraço da Morte

Gustav Mahler, Sinfonia N° 6 "Trágica" em Am
Finale: Allegro Moderato

Repentinamente transportado para um tempo distante, prestes a ser destruído, um mundo governado pelo caos, que agora perde lentamente todas as suas estruturas para então ser lançado no esquecimento. A tuba poderosa convoca todos a se apresentarem diante do trono do julgamento. Não há mais pelo que lutar, não há mais chances de vitória, a morte finalmente encontra-se pastoreando todas as hordas de gente vindas de todas as partes, é a Rainha soberana de tudo. 

Aquela multidão imensurável que se coloca de pé ante o altar da escuridão é a grande lixeira da miséria humana, ali é onde se revela toda maldade, toda ganância, toda intolerância, toda mentira. O céu, pintado de tons de vermelho, ocre e laranja refletem o desespero dos homens que serão julgados por aquela mulher alta que se encontra no centro com um sorriso no rosto. 

Uma criança anda perdida, olhando para todos os lados em busca de algo ou alguém. Aqueles em quem ela esbarra apenas a olham com indiferença, sem se importar com os machucados abertos que lhe cobrem o corpo inteiro e nem com as grossas lágrimas que caem em seu rosto. É uma criança perdida, apagada pelo sangue e pela fuligem que cobre sua pequena face. O cabelo preto, despenteado revela a loucura a que ela está prestes a ser lançada. 

A solidão é a porta de entrada para a loucura. A indiferença dos homens é o alimento do qual ela retira os nutrientes para fixar-se na pequena mente distorcida das frágeis crianças. Sem encontrar o que procura, o amor, ela se deixam levar então pela outra única coisa que a faz sentir-se viva: a dor. Suas feridas são um atestado de sua existência, o sangue, o fogo que arde em sua pele aberta pelas pedras grita ao mundo que ela existe. A criança esquece-se que buscava o amor, desacreditada dele, e se lança num mar de profunda desesperança. 

Alguns até voltam seu olhar a ela, para zombar, rir, menosprezar. Alguns até mesmo chegam a lhe estender a mão, ao que ela responde erguendo-lhe o braço sem entender o que é aquele gesto. Num mundo de ódio a gentileza é criminosa. Uma vez de pé ela recebe um violento golpe, sendo lançada para longe, ouvindo as risadas metálicas dos demônios que a atraíram para rirem-se de sua desgraça. Gargalham, enquanto suas feridas se abrem novamente. A dor o faz sentir vivo mais uma vez. Não importa se é ao custo de ser exposto ao ridículo. A humilhação é o preço de sentir-se homem pela primeira vez? 

Ele reúne então suas últimas forças, num corpo debilitado pela fome e maltratado pela própria existência, e corre, em direção aquela que lidera toda essa gente ao seu redor. Se todos os homens são capazes de maldade, o que poderia fazer aquela que os põe de joelhos e os faz tremer de pavor? É a suprema vivacidade, ser golpeado violentamente pela morte. 

É isso! Essa é a vida, cair e levantar para deleite daqueles que nos destroem. Ele cai uma última vez, absorto na dor lancinante da última martelada. Sua visão se turva, e ele apenas escuta as risadas daqueles a sua volta que se divertem com sua morte. Já não sente mais os seus membros e respirar tornou-se difícil. A dor o consome e ele se rejubila de alegria por estar vivo e por sentir-se mais vivo do que nunca, apenas para lentamente sucumbir a morte, que vai ao seu encontro envolvendo-o em seus braços gélidos. Para quem passou a vida amaldiçoando a própria existência o fim se tornou um prêmio merecido por tanta dor, tanta luta, tanta indiferença. Com um pequeno sorriso no rosto, o primeiro de sua existência patética, ele abraça a morte com a certeza de que esta foi a primeira vez que sentiu-se verdadeiramente vivo.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Os golpes do destino

Perdido.
Apático.

Sem cor,
sem vida.

Sabe, nos últimos dias apenas tenho seguido minha rotina como de costume. Já não tento mais compreender muita coisa, apenas continuo aqui, caminhando, caminhando, seguindo, não sei até onde...

Até as palavras ásperas que lançam contra mim perderam seu poder. Já não doem mais. Como se as flechas em chamas ou as adagas envenenadas que disparam contra mim já não fizessem mais efeito. Não podem matar aquilo que já está morto. Não sinto mais nada, absorto em meu torpor. Perdi completamente qualquer vontade de viver que ainda pudesse haver em mim. As lágrimas são um reflexo tardio de todo choro que segurei, acredito, pois já não seguro mais. Meu corpo frágil treme e vacila em qualquer situação. É uma visão patética e desprezível. Se fosse um animal certamente já teria sido sacrificado. Mas as pessoas insistem em me ver como homem e por isso ainda me mantém vivo. Não as entendo, é justamente por causa de cada uma delas que perdi a vontade de viver.

Levantar da cama é uma tarefa difícil todos os dias. É um esforço enorme que não entendo porque tenho de fazê-lo. Trabalhar? Existem tantos outros tão medíocres quanto eu por aí, que diferença faz se qualquer um deles ocupar meu lugar? O sono parece ser a única hora em que o mundo é agradável.  Mas até isso tiraram de mim. Tenho me alimentado por simples necessidade de fazê-lo, há muito não consigo sentir o sabor dos alimentos.

Tenho sorrido um pouco quando me vejo no espelho. É engraçado ver outra pessoa reproduzindo as feições que faço. A pessoa que me olha no espelho não sou mais eu. É um homem de aparência feroz, de rugas profundas, barba longa e desgrenhada, cabelo bagunçado. Parece que ele não dorme há dias e seus olhos estão fundos, sem nenhuma cor.

Quem será ele?

O toque das pessoas perdeu seu significado. Mãos frias demais, corações distantes demais... Acho que a única coisa que ainda parece ter efeito em meus sentidos são os cortes finos em meu braço, enquanto sinto-me sangrar parece que sinto-me vivo, ainda que logo passe e fiquem apenas as cicatrizes, marcas frias do sangue que ali escorreu.

Cicatrizes.
Marcas.

As pessoas são como essa pequena lâmina, que corta a minha carne deixando sua marca e logo se vão, deixando comigo apenas a dor e, depois de um tempo, uma linha fina para me recordar de que um dia estiveram aqui.

Talvez seja isso a vida. Um contínuo de dores e marcas, de pessoas que vem e vão. De encontros sem sentido, aço frio e relacionamentos frustrados.

É, não me parece  que seja mais do que isso. 

sábado, 6 de julho de 2019

Do que tem medo?

Deve sobreviver aquele que tem vontade pra fazer com que isso aconteça! Ele desejou a morte. 
Ele ignorou sua vontade de sobreviver e escolheu morrer por uma falsa esperança. Sobreviver não é um erro!

Já não tenho mais essa vontade. Ela morreu e sinto que também eu devo morrer, desaparecer. Aliás, sinto como se já estivesse morto há tempos. Sinto como se já devesse ter sido enterrado há muito tempo. O que vive é apenas meu corpo e os poucos recessos de minha mente. Minha alma se esvaiu, perdeu-se na imensidão do caos. Meu corpo então deseja essa morte, o fim da existência. O retorno aquele útero primitivo onde não havia dor, nem confusão, apenas a perenidade. Não tenho mais essa vontade, se esvaiu no vento como pó e se perdeu na imensidão de toda desordem. Talvez seja esse o ponto mais baixo da existência, o de renegar o próprio ser. Mas eu continuo sobrevivendo, e pensando que sim, isso é um erro.

No meu caso é. É um erro pois eu não sou mais do que um grande erro. É um erro pois não há razão e nem benevolência em persistir numa existência de dor, sofrimento e confusão. Vivo mergulhado no completo caos, desesperado ao me deparar com cada uma das barreiras que se colocam em eu e os outros. Esse Campo de Terror Absoluto que me separa de cada ser num universo tão diferente e longínquo que nunca conseguirei de fato tocar o coração de ninguém. 

- Do que tem medo?

- De mim mesmo.

- Do que tem medo?

- De me olhar no espelho.

- Do que tem medo?

- Daquele que é perfeito diante de mim.

- Do que tem medo? 

- Da barreira que há entre nós.

- Do que tem medo?

- Da distância que nos separa.

- Do que tem medo?

- De não ser bom o bastante.

- Do que tem medo?

- De falhar. De cair. 

- Do que tem medo?

- De ser eu mesmo e esse ser não ser bom o bastante. Nem para mim e nem para os outros.

Tenho medo de nunca conseguir me destacar, de nunca chegar a conquistar nada, de viver mergulhado tão profundamente na mediocridade que meu fim seja a marginalidade completa, velho e esquecido num casebre sem as mínimas condições de sobrevivência, repleto apenas de pensamentos pessimistas e bebidas. Tão absorto em toda essa mixórdia de pavores que o próprio demiurgo se compadeça de mim e apague esse meu ser de tão desprezível existência. Esse medo me faz lutar com todas as forças, me lançar de cabeça nas dores e nos problemas mais horripilantes, de suportar humilhações e desaforos, apenas pra não se afastarem de mim, apenas para que me amem, apenas para que continuem ao meu lado... Eu não quero ficar sozinho, não quero ser esquecido, não quero ficar sozinho.

- É claro, tem alguma coisa errada nisso? Eu estou fazendo a coisa certa, e quando eu faço isso os outros apreciam, os outros gostam de mim.

- Você ta mentindo! Você é idiota? Você sabe muito bem que faz isso por você mesmo! Você só ta inventando desculpas como sempre faz!

- Eu faço isso?

- Fingindo que ta se sacrificando pelo bem dos outros é só outra desculpa. Bancar o mártir te faz se sentir especial. 

- Eu não sei se isso é verdade...

- Está se sentindo solitário e isolado, só isso!

- Estou?

- Claro que está! Você vive de compaixão e consegue isso com seu EVA Shinji!

- Isso pode ser verdade...

- Você adora que os outros dependam de você e isso satisfaz sua pequena mente distorcida!

- Ergh, pode ser... Ah.

- Se quiser a verdadeira felicidade, vai ter que encontrar ela sozinho! E não ficar esperando que alguém a dê pra você!

- Mas não é isso que você tem feito?

Eu desejo ser bom, ser suficientemente bom. Desejo ser o bastante para mim e para os outros. Por isso eu faço o que os outros querem que eu faça. Por isso eu dou o meu melhor em tudo que me proponho a fazer. Tento ser atencioso, educado, generoso... Mas tudo isso parece em vão quando vejo que, por mais que eu me esforce, nunca é o suficiente. Os outros sempre querem mais, mesmo quando não há mais nada em mim. E então me abandonam, viram o olhar, me deixam falando sozinho... E eu fico só, novamente e mais uma vez sozinho.

Sentindo então que não sou suficiente, necessário, perco o único laço que me liga aos demais. Perco aquilo que me definia como eu mesmo. E começo a, lentamente, desaparecer... Minhas extremidades adormecem, e aos poucos não sinto meus dedos. A letargia anuvia minha mente enquanto a sensação de anestesia começa a percorrer meu sangue, meus ossos até o tutano... Estou desaparecendo, estou sumindo. 

Para estabelecer minha identidade, tenho que me comunicar com as mentes de muitas pessoas. Tenho que examinar isso que está no meu núcleo.

Eu, no entanto, não consigo fazer isto. Existe uma barreira entre eu e as outras pessoas que não pode ser quebrada. Veja se pode. Existe uma barreira entre eu e uma pessoa. Uma barreira de 1,94 m Essa pessoa não se abre comigo de jeito nenhum... Eu posso estar tentando com um empenho de 400%, mas todo esse empenho é fruto da minha iniciativa de me aproximar dele, por mais que ele meso se mantenha distante de mim, sem ultrapassar essa linha. Até o final ele vem mantendo essa distância. Tenho enfrentado dificuldades em perceber que essa linha era o "limite" do seu coração. Só que, do jeito que as coisas estão, eu sou o único a sofrer danos psicológicos (por causa do grande volume de emoções que compartilho abrindo meu coração na tentativa de abri o dele) e percebo que não posso mais continuar assim. 

Quanto mais eu tento remover essa barreira, mas alta ela se ergue. Quanto maior a pressão exercida, maior é a resistência. Preciso ceder e ver o que acontece. Preciso criar um lugar para ele em meu coração e passar a apoiá-lo... Por isso, em meu coração, devo reconhecê-lo como indivíduo independente. Eu e ele somos separados por uma linha imaginária, diferenciando que sou eu de quem ele é. Uma linha que nos distancia como o Sol está distante da Terra.

- Isso é o que você teme? Que você possa se tornar nada? Está com medo de que possa desaparecer da mente dos outros em outra existência. 

- Eu tenho medo, porque isso? 

- Porque seu atual eu jamais teria existido!

Está com medo não é?

- Porque você vai deixar de existir, você vai deixar de existir...

Está com medo não é?

- Não, não estou.  Eu sou feliz.  

- Porque eu quero morrer.  Eu quero desesperança. 
Eu quero voltar ao nada. Mas eu não posso.  Ele não vai me deixar voltar a inexistência. Ainda não. Eu ainda existo porque ele precisa de mim. Mas quando tudo acabar, quando eu não tiver mais utilidade, ele vai me abandonar. Eu rezei pelo dia em que ele ma abandonaria. Mas agora... Agora eu tenho medo

E de novo retomo o ponto de que cheguei no lugar mais baixo da existência, o de renegar o próprio ser e dessa forma, desejar o nada, desejar voltar aquele tempo em que não existia, em que não havia dor e sofrimento, em que não havia esse Campo de Terror Absoluto que me separa de todos os outros provocando a mais absoluta falta de entendimento a qual fomos condenados desde a Torre de Babel. Essa minha imperfeição fundamental, esse vazio no âmago do meu ser que tento complementar com o coração do outro que me é inacessível. Esse desespero de estar há milênios de distância de alguém que senta ao meu lado. 

De novo retorno ao desejo pelo fim, ao apego pela morte, afinal de contas todos morreremos um dia, qual a razão em prolongar uma existência assim, tão patética e tão profundissimamente inconformada consigo mesmo? 

Por isso que quero voltar ao nada, quero que todas as coisas sumam, que o universo desmorone, quero que tudo retorne ao nada. Eu quero morrer, pois já deveria estar morto, minha vida é uma afronta a existência de todos os outros. Eu quero a inexistência, a desesperança. Eu quero o fim. 

E o aperfeiçoamento do homem via Instrumentalidade tem início. 



~



OBS.: O texto em itálico foi retirado de Neon Genesis Evangelion, de Hideaki Anno, as demais partes são as minhas reflexões usando-o como ponto de partido para um pensamento mais elaborado.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Na contramão

Depois de alguns dias bem quentes e seco finalmente parece que o ar da minha cidade vai receber algum indulgência com algumas parcas nuvens de chuva sobre nossas cabeças. Me surpreendi quando abri a cortina e vi que uma garoa enchia o ar com aquele cheiro de terra úmida. Já estava há um bom tempo me revirando na cama, incomodado em partes com o calor e com minha mente correndo há mais ou menos 200 km/h na contramão, e resolvi me levantar e tomar um banho, e qual não foi minha alegria em ver que um pouco de umidade veio me visitar. 

Numa folga merecida, e inesperada, eu consegui dormir sem compromisso com os horários. Com uma tranquilidade rara desde que comecei em meu atual emprego foi de uma enorme gratificação poder assistir até tarde, como sempre fiz, e acordar sem muita preocupação. Isso é bom, eu precisava desse momento sem muitas obrigações pra tentar reorganizar a minha vida ou, pelo menos, a minha cabeça. 

Parece que fui deixando as coisas se acumularem dentro de mim. Ignorando os anseios de meu coração fui apenas aglutinando novas impressões e novos desejos. Só percebi quando me vi saturado de um pessimismo que refletia o sufocante estado de coisas em que deixei meu castelo interior. E então transbordei, em lágrimas e em sangue, e agora olhando as linhas finas e claras das cicatrizes nos meus braços eu concluo: consegui sobreviver a mais dos meus piores dias! Ainda que sobre o preço das gotas de meu sangue ou das minhas grossas e pesadas lágrimas eu continuo vivo e, se ainda continuo aqui, talvez haja algo a se fazer. 

É estranho como essa não positividade mas aparente neutralidade em receber da vida o que quer que ela tenha reservado para mim se contrasta com minha obcecada opinião negativa sobre tudo e todos. Talvez seja um efeito daquela pequena nuvenzinha de chuva que agora eu observo daqui da minha janela. Provavelmente ela não vá conseguir aliviar o acelerado processo de desertificação do nosso inverno, mas ao menos nos conceda uma pontinha de esperança pela estação da chuva que um dia há de voltar para lavar tudo isso de novo. 

Sem voz

Onde foi parar a minha voz? Onde está aquilo que deveria fluir de dentro de meu coração para os corações daqueles que me escutam? Minha voz não tem mais voz. Eu não consigo mais cantar, nem para o sol e nem para os outros. Não consigo mais. 

Deitei e acordei sem conseguir falar. Levei os meus músculos a exaustão e, mesmo assim, não foi suficiente. Não fui bom o suficiente porque eu não sou bom o suficiente. 

Bom. Suficiente. Palavras que ecoam em minha mente e cujo significado eu desconheço. E, por não conhecer eu busco ser, mas por não conseguir, tornou-se uma busca dolorida demais. Olhar para trás e ver que, mesmo apesar de todos os esforços, o caminho que percorri ainda é muito curto. Parece que sequer saí do lugar. É frustrante, e essa constatação me faz sentir o peso da inutilidade, da incapacidade de cumprir meus próprios objetivos. 

Mesmo sem voz eu buscava continuar tentando, buscando uma maneira de conseguir vencer, de conseguir melhorar, mas nada do que eu fazia era suficiente, mas isso é porque eu mesmo não sou suficientemente bom para isso. E para qualquer outra coisa. 

Daí encontro então motivos para contestar minha própria existência. Meu ser não encontra no ser razões para ser senão que há apenas motivos de não ser, de abandonar essa existência pífia e patética em função ao menos de fazer cessar a dor de existir e em todo tempo sentir que não deveria sê-lo. O que eu deveria ser? 

Deveria fugir para a Terra do Nunca, tentar ver o que está por trás das aparências, tentar buscar no mundo alguma razão para viver, para ter ao menos um sonho azul, como disse Tim Maia. Mas eu não consigo mais, lidar com tanta desilusão. Não consigo mais abrir os olhos e ver o quão distante estou de qualquer possibilidade de uma existência menos patética. 

Talvez meu único destino, a minha única grande realização seja a de alimentar os vermes das ruínas que um dia hão de devorar o meu corpo inútil, encontrando em mim a força para continuarem existindo, enquanto eu cesso de existir. 

quinta-feira, 4 de julho de 2019

A fera que gritou EU no coração do mundo

O que está acontecendo comigo? O que é esse ímpeto de dor e langor que existe em mim e que me faz sentir tantas coisas que sequer consigo dizer o nome?

Como descrever o que sinto? Não sei o que dizer, apenas sinto um crescendo dentro de mim, sufocando, me apertando. Meus olhos querem chorar, e eu não quero chorar pois sei que, uma vez que comecem a rolar as lágrimas pelo meu rosto eu não vou mais conseguir parar. 

É uma sensação estranha. É um desejo profundo, pesadamente mascarado para não causar vergonha nem mesmo a mim. É um desejo que escondo de todos quanto me rodeiam, mas que agora se faz impossível de reprimir. É um desejo de ser aprovado, reconhecido, amado, querido. É um desejo de sentir-me partícipe, um desejo de me sentir membro de algo, de fazer parte efetivamente de algo. 

Tenho me sentido assim nos últimos dias por me sentir particularmente distante de uma pessoa em particular. E isso é patético! É patético que me sinta tão incapaz de fazer qualquer coisa por simplesmente ser incompatível com alguém. É patético questionar minha própria existência por não conseguir quebrar uma barreira conscientemente levantada por alguém para que não me aproximasse. É patético ser tão suscetível, tão fraco e vulnerável assim. É patético desejar com tanto ardor tocar o coração de alguém que não quer ser tocado. É loucura. 

É um desejo que se justapõe a tudo o que faço, a tudo o que tenho e a todos que conheço. É um desejo que surge da sensação constante, fria e incômoda de que não pertenço a nenhum lugar, de que nunca consigo estar completamente envolvido com alguma coisa. É um desejo que surge do fato de me sentir isolado de tudo e de todos, sem nunca conseguir compreender e nem ser compreendido. Esse desejo me leva ainda aos píncaros dessa mesma sensação quando começo a questionar até mesmo minha existência, quando me olho no espelho e não reconheço o que vejo ali refletido. 

O espelho frequentemente aparece em minhas visões pois é um símbolo do reconhecimento do ser. Aquele que se olha no espelho reconhece a si mesmo na imagem ali refletida. Isso às vezes não acontece comigo, senão que olho sem conseguir reconhecer quem é aquele com aparência animalesca que ali aparece refletido. Sou eu mesmo? 

O que está acontecendo comigo? O que é esse ímpeto de dor e langor que existe em mim e que me faz sentir tantas coisas que sequer consigo dizer o nome?

Já não sei mais quem sou, não me reconheço mais tão bem delimitado como antes. Não me identifico com nada que conheça, senão que acredito ser algo entre humano e animal. Baixo demais para ser homem e sensível demais para ser completamente fera. O que eu sou então? 

Só queria ser aquele que, mesmo sendo fera, gritou EU no coração do mundo.

Sobre o noivado

Chesterton escrevendo para sua amiga sobre seu noivado: 

"Querida Mildred,

Quando me levantei esta manhã, lavei cuidadosamente minhas botas com água e engraxei meu rosto. Então, vestindo o casaco com graciosa facilidade com os botões virados para as costas, eu desci para o café da manhã e alegremente coloquei café nas sardinhas e levei meu chapéu ao fogo para fritar. Estas atividades irão dar-lhe uma ideia de como eu estou. A minha família, vendo-me sair de casa através da chaminé e colocar a grelha da lareira debaixo do braço, pensaram que alguma coisa preocupava meu espírito. E era verdade.

Minha querida amiga, estou apaixonado." 

G. K. Chesterton

terça-feira, 2 de julho de 2019

Maldição

Vou sair logo mais à noite e preciso me arrumar, mas tudo o que eu consigo é ficar aqui, sentado, olhando para frente, sem fazer aquilo que eu preciso realmente. Não consigo, me olho no espelho e vejo que não há solução. Sequer reconheço esse animal que repete os movimentos que faço em meu reflexo.

Esse sou eu?

Esse sou eu,

feio,
animalesco,
maltratado,
descuidado.

Esse sou eu, ou a parte externa de mim e que, no entanto, é ainda mais atraente do que meu interior. Não consigo me arrumar, e por que deveria? Não há sentido nisso, não há razão para tentar mudar e negar o inegável, não há motivos para disfarçar o que é tão evidente. 

Mas, por quanto tempo ainda vou ficar aqui sem me levantar° Não quero mais ir. Não quero mais ver ninguém. Não quero obrigar os outros a me olharem. Não quero obrigar ninguém a ver essa coisa horrenda. Só quero ficar aqui, sozinho, no escuro, onde nem mesmo eu tenho de olhar para minha cara de animal.

Deveria arrumar minhas unhas, fazer a barba, pentear o cabelo ou, no mínimo, tomar um banho. Mas não quero. Não consigo. Não encontro forças em nenhum lugar para me fazer sair daqui e tentar amenizar o fedor que sai de mim, e não me refiro apenas ao meu corpo, mas aquilo que faz todos fugirem e se afastarem de mim. Fico apenas olhando, fixamente, o espelho, na esperança de que aquela imagem se modifique de algum jeito.

E nada.

Levantei.

Tomei banho.

Tentei fazer uma maquiagem pra cobrir o meu rosto o máximo possível.

Uma,
duas,
três vezes.

Horrível, simplesmente horrível!

Não dá pra sair assim.
Tudo lavado novamente.
Começo de novo.

E nada!

Eu ainda sou eu, não adianta tentar esconder, só fica ainda pior.

É frustrante, e eu choro de raiva.

Raiva de ser eu. De novo sentado olhando o espelho e amaldiçoando tudo o que vejo ali, amaldiçoando essa imagem feia  e patética que me encara e que me despreza.

Horas mais tarde eu volto pra frente do espelho, e ainda não reconheço esse homem que me encara com olhar de julgamento. Ele parece um animal, deveria me afastar dele, mas eu não consigo. Deveria fugir dele, mas não é possível. Não queria ser assim e, no entanto, não consigo ser de outra maneira.

É uma prisão,
uma maldição,
ser eu mesmo.

Indo embora

Todas as vezes que eu o vejo indo embora de madrugada, quase sempre sem virar o rosto, eu sinto o quanto sou desnecessário, o quanto minha presença nada significa para ele, ou para quem quer que seja.

Toda noite é a mesma coisa. 

Os sorrisos, 
as brincadeiras, 
a comida. 

Mas quando chego em casa é sempre a mesma sensação: 

Vazio. 
Solidão. 
Nada. 

O ciclo sempre se repete. 
Eles vem e vão. 

O barulho começa, abafa os gritos do meu coração e, quando todos se vão, eu sou lançado ao abismo dos meus próprios medos, do medo de ficar sozinho. Mas mesmo quando estão todos ao meu redor, me sinto sozinho como se estivesse abandonado num deserto, ouvindo apenas e tão somente o meu próprio pensamento. 

E eu vou vagando por esse deserto. Os pés cansados, já deixando gotas de sangue pela areia quente. O sol fervendo acima de mim, o céu sem nuvens. Miragens ao longe. Já não aguento mais andar e não chegar a lugar nenhum e, no entanto, não posso ficar aqui pois sinto que aqui não é o meu lugar. Sinto como se não houvesse lugar para mim nesse mundo, que serei para sempre um desajustado, sempre inconformado com o lugar onde estou. Sempre caminhando, em busca de companhia. 

Todas as vezes que eu o vejo indo embora de madrugada, quase sempre sem virar o rosto, eu sinto o quanto sou desnecessário, o quanto minha presença nada significa para ele, ou para quem quer que seja.

Não significo nada. Eu não sou nada, nem ninguém. Minha presença é tão importante quanto os grãos de areia que deslizam sob meus pés. Nenhum deles faria falta. E, no entanto, não consigo partir mas o vejo partindo, vejo todos partindo, vejo todos me substituindo, vejo todos sorrindo sem mim, e então me dou conta, de que sou um erro, apenas um erro. 

E essa imagem, dele indo embora, e me deixando na porta de casa todas as noites, sozinho, enquanto se aventura sabe-se lá por onde, ficou marcada. É um sinal do que vivo diariamente. É um sinal do meu destino que é sempre estar rodeado de pessoas e depois ser abandonado por todas e cada uma delas.