terça-feira, 16 de julho de 2019

Saga

A saga pela busca da compreensão do eu continua. A vida permanece existindo e com ela as vicissitudes de nossas individualidades. Os limites entre o eu e os outros, a razão que permite a alguém ser mantém-se ainda de pé. 

Os corações abertos, as palavras sinceras, os desejos profundos. Todas essas coisas são lanças quebradas que tentam em vão penetrar o âmago da nossa existência, impenetravelmente protegido pelos escudos de nossas almas individuais. São gritos abafados, que ecoam apenas no interior de nossos sonhos mais sombrios sem nunca serem ouvidos por ninguém. A causa da dor e de todo sofrimento. O fogo que queima no inferno mais profundo de nossos corações. A fonte de todo egoísmo, de todas as guerras que destroem o homem. A causa de toda solidão, de todo medo. 

Do medo do outro, do seu sucesso, do seu autoconhecimento. Medo da dor que o outro pode nos causar. Medo da constatação de que, por mais que vivamos uns ao lado do outro sempre estaremos sozinhos e assustados com essa imperfeição fundamental que aflige a alma humana desde seu primeiro pensamento. 

O homem da-se conta de sua solitária existência, de sua individualidade intocável, e o medo do vazio desconhecido e escuro de seu próprio coração o faz sentir desespero, e ele passa então a morrer por dentro, desejando desfazer o escudo ele acaba por desfazer a si mesmo, sem sequer arranhar o outro, e então, perdendo toda esperança mergulha no oceano caótico do desejo do fim. 

No fim de tudo o homem é apenas uma criança que, soltando a mão de sua mãe vê-se sozinha num mundo grande demais para percorrer, e então chora desesperadamente pelo retorno aquele contato que perdera. A única existência possível então é essa, de contato com o outro e, no entanto, é a existência que perdemos há muito tempo atrás, quando abandonamos o útero primitivo e cortamos o cordão umbilical que nos mantinha ligados à mesma existência. 

Se houvesse um meio de voltar a essa existência, de expandir o nosso ser até cobrir a totalidade da existência. Se houvesse um meio de conhecer o outro em sua totalidade, de não ser machucado pelas barreiras que nos dividem e que nos permitem ser quem somos. Se houvesse uma maneira de existir de uma forma diversa dessa tão dolorosa... Mas tudo o que há no mundo é a tristeza da incompreensão. 

Olhe ao seu redor, para a pessoa que você namora, olhe para seus pais, seus amigos, tudo o que você vê é uma versão resumida de suas verdades individuais, tudo o que vê é uma fração do que realmente são. Há ainda as pessoas que habitam sua própria mente. O outro que habita em você, assim como o seu eu que habita o outro, mas nada disso é você realmente, e nem o outro em sua totalidade. A soma da consciência de si mesmo pode ser você, assim como a soma da minha consciência sou eu mesmo, mas de que adianta saber quem sou, se o soubesse, se eu serei o único a saber? E não sabendo sequer quem sou não posso, tampouco, saber quem é outro.

Somos absolutamente estranhos. Somos estranhos a nós mesmos e somos estranhos aos outros. E assim, construímos um mundo inteiro ao nosso redor, cheio de paredes e coisas barulhentas, para afugentar o medo que sentimos desse silêncio absoluto que grita no íntimo de cada um de nós. Mas, no fim, tudo desmorona, quando percebemos que tudo o que fizemos não adiantou de nada, e que continuamos sozinhos, vazios e solitários. 

Esse é um retrato bem infiel, diga-se, do que sinto. Infelizmente a expressão escrita já faz parte de todo esse escopo externo do ser, ou seja, é o que sai de mim e que fica no mundo sem, no entanto, conseguir tocar o que de fato está em mim. É como me sinto, parcialmente, e isso explica porque o eu que se apresenta aos outros é tão diferente do eu que contempla a si mesmo no espelho interior. Sorrio pela manhã, dou longas aulas sobre pessoas de outras épocas e sobre paisagens naturais. Canto na missa e fico ao lado do padre durante as palavras da consagração, mas em casa, sozinho, eu me sinto em absoluta desconexão com esse mundo, deslocado de mim mesmo, como se não fosse capaz de ver ou tocar, mas sempre como um observador, que vê um outro eu ver ou tocar. 

Por fim, é apenas um manifesto, de alguém que continua nessa saga, em busca da compreensão do eu pois, se já não consigo ver o o outro como ele e apenas estou condenado a solidão, que ao menos consiga contemplar a mim verdadeiramente, sem a horrível sensação, que me tem sido constante, de olhar no espelho sem me reconhecer na imagem ali refletida. É um manifesto também sentir dor, propositalmente, na esperança de que isso minimize a sensação de deslocamento. A dor tem o poder de me trazer de volta, ao maximizar a sensibilidade do corpo eu consigo fugir da sensibilidade da mente e, ao me tornar consciente de minha própria existência física e focar no ardor dos cortes em minha pele, consigo esquecer do horror escuro e vazio do meu coração.

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