quinta-feira, 11 de julho de 2019

O Abraço da Morte

Gustav Mahler, Sinfonia N° 6 "Trágica" em Am
Finale: Allegro Moderato

Repentinamente transportado para um tempo distante, prestes a ser destruído, um mundo governado pelo caos, que agora perde lentamente todas as suas estruturas para então ser lançado no esquecimento. A tuba poderosa convoca todos a se apresentarem diante do trono do julgamento. Não há mais pelo que lutar, não há mais chances de vitória, a morte finalmente encontra-se pastoreando todas as hordas de gente vindas de todas as partes, é a Rainha soberana de tudo. 

Aquela multidão imensurável que se coloca de pé ante o altar da escuridão é a grande lixeira da miséria humana, ali é onde se revela toda maldade, toda ganância, toda intolerância, toda mentira. O céu, pintado de tons de vermelho, ocre e laranja refletem o desespero dos homens que serão julgados por aquela mulher alta que se encontra no centro com um sorriso no rosto. 

Uma criança anda perdida, olhando para todos os lados em busca de algo ou alguém. Aqueles em quem ela esbarra apenas a olham com indiferença, sem se importar com os machucados abertos que lhe cobrem o corpo inteiro e nem com as grossas lágrimas que caem em seu rosto. É uma criança perdida, apagada pelo sangue e pela fuligem que cobre sua pequena face. O cabelo preto, despenteado revela a loucura a que ela está prestes a ser lançada. 

A solidão é a porta de entrada para a loucura. A indiferença dos homens é o alimento do qual ela retira os nutrientes para fixar-se na pequena mente distorcida das frágeis crianças. Sem encontrar o que procura, o amor, ela se deixam levar então pela outra única coisa que a faz sentir-se viva: a dor. Suas feridas são um atestado de sua existência, o sangue, o fogo que arde em sua pele aberta pelas pedras grita ao mundo que ela existe. A criança esquece-se que buscava o amor, desacreditada dele, e se lança num mar de profunda desesperança. 

Alguns até voltam seu olhar a ela, para zombar, rir, menosprezar. Alguns até mesmo chegam a lhe estender a mão, ao que ela responde erguendo-lhe o braço sem entender o que é aquele gesto. Num mundo de ódio a gentileza é criminosa. Uma vez de pé ela recebe um violento golpe, sendo lançada para longe, ouvindo as risadas metálicas dos demônios que a atraíram para rirem-se de sua desgraça. Gargalham, enquanto suas feridas se abrem novamente. A dor o faz sentir vivo mais uma vez. Não importa se é ao custo de ser exposto ao ridículo. A humilhação é o preço de sentir-se homem pela primeira vez? 

Ele reúne então suas últimas forças, num corpo debilitado pela fome e maltratado pela própria existência, e corre, em direção aquela que lidera toda essa gente ao seu redor. Se todos os homens são capazes de maldade, o que poderia fazer aquela que os põe de joelhos e os faz tremer de pavor? É a suprema vivacidade, ser golpeado violentamente pela morte. 

É isso! Essa é a vida, cair e levantar para deleite daqueles que nos destroem. Ele cai uma última vez, absorto na dor lancinante da última martelada. Sua visão se turva, e ele apenas escuta as risadas daqueles a sua volta que se divertem com sua morte. Já não sente mais os seus membros e respirar tornou-se difícil. A dor o consome e ele se rejubila de alegria por estar vivo e por sentir-se mais vivo do que nunca, apenas para lentamente sucumbir a morte, que vai ao seu encontro envolvendo-o em seus braços gélidos. Para quem passou a vida amaldiçoando a própria existência o fim se tornou um prêmio merecido por tanta dor, tanta luta, tanta indiferença. Com um pequeno sorriso no rosto, o primeiro de sua existência patética, ele abraça a morte com a certeza de que esta foi a primeira vez que sentiu-se verdadeiramente vivo.

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