terça-feira, 2 de julho de 2019

Maldição

Vou sair logo mais à noite e preciso me arrumar, mas tudo o que eu consigo é ficar aqui, sentado, olhando para frente, sem fazer aquilo que eu preciso realmente. Não consigo, me olho no espelho e vejo que não há solução. Sequer reconheço esse animal que repete os movimentos que faço em meu reflexo.

Esse sou eu?

Esse sou eu,

feio,
animalesco,
maltratado,
descuidado.

Esse sou eu, ou a parte externa de mim e que, no entanto, é ainda mais atraente do que meu interior. Não consigo me arrumar, e por que deveria? Não há sentido nisso, não há razão para tentar mudar e negar o inegável, não há motivos para disfarçar o que é tão evidente. 

Mas, por quanto tempo ainda vou ficar aqui sem me levantar° Não quero mais ir. Não quero mais ver ninguém. Não quero obrigar os outros a me olharem. Não quero obrigar ninguém a ver essa coisa horrenda. Só quero ficar aqui, sozinho, no escuro, onde nem mesmo eu tenho de olhar para minha cara de animal.

Deveria arrumar minhas unhas, fazer a barba, pentear o cabelo ou, no mínimo, tomar um banho. Mas não quero. Não consigo. Não encontro forças em nenhum lugar para me fazer sair daqui e tentar amenizar o fedor que sai de mim, e não me refiro apenas ao meu corpo, mas aquilo que faz todos fugirem e se afastarem de mim. Fico apenas olhando, fixamente, o espelho, na esperança de que aquela imagem se modifique de algum jeito.

E nada.

Levantei.

Tomei banho.

Tentei fazer uma maquiagem pra cobrir o meu rosto o máximo possível.

Uma,
duas,
três vezes.

Horrível, simplesmente horrível!

Não dá pra sair assim.
Tudo lavado novamente.
Começo de novo.

E nada!

Eu ainda sou eu, não adianta tentar esconder, só fica ainda pior.

É frustrante, e eu choro de raiva.

Raiva de ser eu. De novo sentado olhando o espelho e amaldiçoando tudo o que vejo ali, amaldiçoando essa imagem feia  e patética que me encara e que me despreza.

Horas mais tarde eu volto pra frente do espelho, e ainda não reconheço esse homem que me encara com olhar de julgamento. Ele parece um animal, deveria me afastar dele, mas eu não consigo. Deveria fugir dele, mas não é possível. Não queria ser assim e, no entanto, não consigo ser de outra maneira.

É uma prisão,
uma maldição,
ser eu mesmo.

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