domingo, 31 de março de 2019

Agridoce

Meu coraçãozinho não sabe como se sentir, está confuso. Não sabe se deve alegrar-se ou continuar sério, sem distrair-se. Não sabe como preceder. Não sabe o que sentir. 

Por um lado quero fecho os olhos e abrir um doce sorriso, pois meu coração se encontra abraçado por um sentimento quentinho. Por outro lado o medo, e uma parcela de bom senso, me diz que é melhor continuar frio e distante, me protegendo de tudo o que pode me invadir e machucar. 

Não sei como me sentir. Devia estar feliz? Devo continuar fugindo de todo e qualquer sentimento que ameaça nascer novamente? O machado dourado ou o martelo prateado? Devo dar uma chance ao amor, e assim dar uma chance a possibilidade de voltar a sentir dor, ou devo me fechar e conviver com a frialdade de um coração solitário, que constantemente anseia pelo calor do outro?

Contemplo figuras altivas, apolíneas, que despertam em mim o interesse, que as vezes me fazem sentir um algo diferente aqui dentro. Mas momentos depois elas fazem com me sinta novamente inferior demais para tentar qualquer coisa. Vou do alto abaixo em poucos instantes, como se aos poucos voltasse aquela montanha russa emocional que tanto me custou escapar tempos atrás. 

Me sinto, por um lado, contente, como já o disse, e por outro, apreensivo. Agridoce. Ambíguo. É assim que me sinto. Equilibrando em meu peito dois sentimentos conflitantes, opostos, numa dicotomia que não poderia se dar senão que num homem em conflito constante. 

sábado, 30 de março de 2019

Borderline

Resoluções.

Sinto-me o pior do homens, o mais indigno da companhia de todos, indigno da pena dos animais. Me sinto ainda pior do que os vermes que rastejam nas ruínas, devorando a carne daqueles que ali apodrecem. 

O que é isto? O que é esta fronteira que sempre me deixa no limite entre o ser aceito e amado e o ser desprezado e odiado? O que é isto que transforma todo olhar em minha direção ou até o olhar que me é negado em razão para perceber o incômodo que minha presença causa aos outros? 

É como se o fato de me verem, ouvirem minha voz, fosse para eles algo ruim. Sinto como se fosse alguém muito, muito ruim. Alguém que não deveria se dar ao atrevimento de obrigar os outros a suportarem minha espinhosa presença. 

Quantas vezes não pensei ser melhor morrer do que forçar os outros a olhar para uma criatura tão disforme, de opiniões tão diversas, de aspecto tão abominável. 

Quero me esconder, me refugir no fundo do meu quarto e dali nunca mais sair. Ali ninguém nunca mais vai se incomodar e se sentir desconfortável perto de mim. 

E tudo isso porque sou como sou. 
Tudo isso porque sou. 
Tudo isso porque sou o que não deveria ser. 

Isso me deixa instável, inseguro. Com constante medo de ser abandonado, esquecido. Com constante medo de ser humilhado. 

O segredo para enlouquecer alguém é deixá-lo em constante risco de humilhação, e eu faço isso comigo, me permito ficar sempre a beira do abismo, correndo o risco de cair no esquecimento, de ser lançado na lixeira da miséria humana, onde é meu lugar. 

Estranha, a imagem que tenho de mim. Me vejo de maneira diametralmente oposta a que dizem ter de mim, e creio que a visão que dizem ter de mim não corresponde aquela que de fato tem de mim. 

Sei que para eles sou um monstro, que carregam por pena, talvez uma forma de expurgar seus próprios pecados com alguma obra de caridade. Como quem cuida de um idoso incapaz ou de um leproso. Essa é a ojeriza que enxergo em seus olhos quando olham para mim. 

quarta-feira, 27 de março de 2019

A Morte como transitoriedade

- Por que está tão triste? Você tem apenas 6 anos e apesar disso você senta ai todo dia para se lamentar, o que é que te preocupa?

- Hoje eu vi muitos corpos mortos flutuando no rio Ganges e na beira do rio eu vi peregrinos vindos da Índia inteira para tomarem banho. Tive a impressão de que celebravam a morte no lugar da vida. Por que é tão pobre esse país onde nasci? Parece que só nascemos para sofrer e se lamentar, as pessoas vivem no meio de desgraça.

- Isto te deixa triste?

- É claro, quem é que quer ter uma vida cheia de tristezas?

- Você está enganado. Onde há tristeza, há alegria e o contrário também é verdade. Lindas flores nascem, mas eventualmente morrem. Tudo nesse mundo está em eterna mudança, sempre em movimento, nunca é igual, tudo muda, e a vida do homem também é assim.

- Mas se no nosso fim a morte é inevitável, então talvez seja a tristeza que domine nossas vidas, mesmo quando superamos o sofrimento, mesmo que busquemos o amor e a felicidade. No fim a morte irá transformar tudo em nada. Eu não entendo para que os homens nascem nesse mundo, se é impossível desafiar algo tão completo e eterno como a morte.

- Parece que você se esqueceu.

- Esqueci?

- A morte não é o fim de tudo, a morte não é mais do que outra transformação.

Masami Kurumada
Saint Seiya - Hades, a Saga do Santuário

Experiências

"O Destino, como os sábios, também faz suas experiências. Permite vidas a titulo de experiência, na tentativa de aclimar na terra seres que não são da terra." 
(Monteiro Lobato)

Vivo sem viver de verdade. Penso, sou, existo, mas não passo disso. As vezes contemplo lampejos de vida, pequenas alegrias que me são permitidas para que continue vivendo. Sinto-me uma amostra de laboratório, correndo atrás dos pedacinhos de queijo que me são dados enquanto busco a saída de um labirinto. Mas não consigo achar a saída, e tão logo se cansem disso serei descartado.

Inebrio-me com o pouco que me é dado, me vicio no soma que me é oferecido, aquele momento de paz em que me deito sem preocupação por algumas poucas horas, até que me obriguem novamente a me encaixar com aquelas coisas que jamais me encaixaria. 

E sigo sendo maltratado pelas bordoadas de um mundo que sabe ser frio, seco e duro. Eu, continuo sendo frágil e delicado, enxergando poesia em cada pétala de flor e em cada gota de chuva que toca a terra. Sigo cantando e declamando poesia, e sendo enxotado como animal, daqui e ali, por aqueles que não consigo tocar. 

Continuo fazendo minhas ilusões de cada dia, e continuo quebrando a cara na mesma frequência. Não eram nem oito da manhã e já havia me desfeito de tantas ilusões, ao passo que sem querer criava algumas tantas outras. 

Uma palavra dura que me feriu. Uma risada que me ofendeu. Uma piscada que me fez perder o passo e esquecer a fala. Entre ilusões e desilusões eu vou, a cada dia, buscando a saída desse labirinto. 

terça-feira, 26 de março de 2019

A quimera e os anjos

Depois de uma longa tarde, sonolenta, chuvosa e relativamente silenciosa eu me vi absolutamente intimidado, pela massa pesada de um mundo superior que caia sobre mim, a refletir sobre algumas coisas que inquietam meu ser. 

Deitado numa cama vazia eu me vi prestes a ser devorado por um gigante atemporal, uma quimera que sibilava para mim "decifra-me e eu te devoro mesmo assim, pois sou maior do que você!" E assim, levado por uma onda impetuosa da qual não pude fugir fui abraçado pelas palavras que me fluem com mais vigor e rapidez do que posso registrá-las. Ainda que meu constante hábito de me deter em descrever como se deu meu processo criativo antes mesmo de conseguir completar a obra que dele deverá nascer seja de certa forma contraproducente, mas fazendo também parte do mesmo processo, ainda que o resultado final seja um tanto quanto excessivamente autorreferencial. 

Pensava comigo, o quanto a ignorância continua andando pelo mundo cada vez mais fortalecida pelos seus sequazes, fazendo cada dia mais vítimas e a cada palavra atraindo para si mais e mais adeptos cegos pela sua doce melodia incendiária.

Particularmente nos últimos dias tenho estado mais sensível a determinados comportamentos e, especialmente, a determinadas obras que, contrariando diametralmente minhas posições, acabam por me ofender quando são tomadas por aqueles que me cercam de algum modo.

Acontece que tem sido doloroso ver as pessoas mais caras a mim sendo engolidas pelos tentáculos gigantescos do kraken que se escondeu no mar sob o canto doce das sereias. Tem sido particularmente ofensivo ver que nenhuma explicação, por mais teológica, filosófica, litúrgica, catequética que seja, consiga algum resultado diferente do balbuciar animalesco de chipanzés que batem no peito querendo banana. É triste ver o quanto a cegueira faz o cego se apegar a escuridão de um mundo que, embora evidentemente maligno, se mostra deliciosamente pentecostal.

Minha linguagem, no entanto, não serve mais para persuadir. Careceria da retórica de um Aristóteles, no mínimo, para demover aqueles de seus erros, coisa muito além de minhas parcas capacidades. As palavras, já tomadas de um significado viciado pela crescente protestantização do catolicismo e pela secularização do mesmo protestantismo torna meu discurso completamente inútil, ao passo que minhas palavras não evocam mais os significados originais, mas se perderam em meio aos acordes doentios provocados pelo crepitar da sarça que só queima e que nos conduziu a ante-sala do inferno, onde ouvimos essa música enquanto aguardamos sermos chamados, de meu amor, pelo próprio demônio travestido de gato da balada. 

As experiências reais, profundas e transformadoras, foram substituídas pelo simbolismo imediato, que logo se esvai por entre os dedos como fumaça, como a fumaça maligna que aliás adentrou nossos corações a partir do momento que deixamo-nos levar pela vibe inebriante, doentia e hipnótica, de quem compôs uma música depois de fumar um cigarro de maconha com o terço na mão. 

No mais tenho me recusado a dar maiores explicações. Não há no mundo teólogo suficientemente capaz de enfiar consciência abaixo ensinamento superior. Não há perfume que supere o odor da latrina. 

Enquanto isso, permaneço em silêncio, enquanto na minha mente borbulham críticas ácidas como essas que aqui teci. Ácido também é o gosto do veneno que me sobe subitamente do estômago cada vez que vejo um grupo de jovens sujeitos a autossugestão a ao transe, de mãos erguidas, adorando seu próprio ego neo pentecostal, com as cruzes dos terços pendendo de seus braços, fazendo o próprio Cristo sentir enjoo de seu sacrifício ter terminado sendo musicado com tão baixa qualidade. Muito embora a fé de que no fim o Imaculado Coração triunfará seja um alento para essa alma inquieta é difícil de ouvir a voz calma de Nossa Senhora sob tão estridentes gritos de extravasamento vocal.  A situação é, no mínimo, desesperadora e nos faz desejar o Apocalipse com um ardor tremendo, pois, creio e espero com furor, que a música dos anjos diante do trono do cordeiro seja melhor do que essa que aqui produzimos. 

segunda-feira, 25 de março de 2019

Última

Sergei Rachmaninoff, Concerto para Piano N° 2, Op. 18 em Cm

I. Moderato

Amanhece, lenta e delicadamente o sol vai iluminando a bruma densa que cobre os outeiros de uma bela paisagem. Uma mansão luxuosa se ergue imponente em meio a relva esmeraldina, e numa janela do último andar alguém observa atenta e silenciosamente esse espetáculo da natureza. 

A madrugada fria e sombria, soturna escondida na névoa cálida dá lugar ao brilho alaranjado do nascer do astro. O brilho reflete no cristal fino de um copo de Whisky, já pela metade. Com uma mão no bolso ele assiste a sua vida passando diante de seus olhos naquela manhã. As pedras de gelo no copo derretem lentamente, e ele viaja, não para terras distantes, mas para um tempo distante, e este sim ainda mais belo do que estes que agora ele contempla.

O inverno já havia passado, a chuva já se fora, as flores floresciam na terra. Pelos outeiros já se iam os passos apressados do amado, saltitando nas colinas como um gamo. Sorrindo e refletindo em seu sorriso o brilho daquele mesmo sol. Antes aquela imensidão verde tinha um brilho diferente. Como pode, apenas uma pequena figura, não mais presente ali, mudar completamente o brilho do lugar? Agora aquela grama esmeralda, ainda que continue sendo de deslumbrante beleza se assemelha ao ouropel que, brilhando como ouro, não é ouro de maneira alguma. 

Aquela bruma ao se dissipar parece levar consigo os restos do tempo que passou. Olhando o sol que agora se mostra imponente no meio da manhã a realidade vem a tona com um estalo dolorido. 

II. Adagio sostenuto

Ele não quer sair. Não sente forças para trabalhar. Fechando as cortinas pesadas de seu quarto ele impede que a aquela luz lhe traga mais lembranças. Jogando pesadamente sobre a cama o seu copo agora cai ao chão, formando uma poça que faz difundir o cheiro pesado do álcool no linóleo. A imagem de um homem que, embora grande e de aparência feroz, chora delicadamente pela partida de seu amor. Molhando os lençóis alvos com suas lágrimas grossas e seu toque beirando o desespero. 

A névoa parece ter entrado com ele, se impregnando em suas roupas como fazia antes o perfume daquele que ele amava. O cheiro almiscarado incensa o ar, entorpece os sentidos e, de alguma forma, abafa os gemidos daquele que chora.

Seus soluços, a respiração entrecortada, tudo se perde em meio aquela atmosfera obsessivamente apaixonada. É como se a névoa, antes branca e pura, tivesse tornado-se vermelha e venenosa como aquele jardim de rosas diabólicas reais que circunda o santuário de Atenas. 

De repente um susto! A respiração se vai, o coração pára por um breve instante. Tudo se silencia, para novamente retornar a realidade lentamente, recobrando a consciência de que se encontra perdido naquela situação. Preso pelos tentáculos gelados de uma lembrança que lhe fere a alma como aço. Ele se levanta, atordoado, e olha confuso para a porta.

III. Allegro scherzando

Põe-se de pé, vai até a porta, olha para o campo de seu enorme quintal, e fita a pequena estrada por onde passou a carruagem que partira. Correndo então por aquelas pedras ele busca por aquilo que perdera, aquilo que deixara um buraco em seu peito, aquilo que lhe assustava desde o primeiro pensamento daquela manhã. 

Não dissera a ele para não partir. Não quisera se opor ao seu sonho. Mas assim que a carruagem sumiu no horizonte, antes mesmo do dia amanhecer, ele se arrependera de deixa-lo ir. 

E ele continua a correr. Seus pulmões protestam como se estivessem em chamas, sua garganta ferozmente destruída por uma tenaz incandescente. Seus músculos parecem rasgar-se conforme seu esforço aumenta, conforme ele cobre espaços e mais espaços daquela longa estrada, que parece interminável. 

Ao seu redor a paisagem mudara. Não há mais verde, mas apenas o cinza frio de um campo morto. O ar, seco e árido, indica que há meses aquilo deixara de ser o belo campo esmeralda de antes. Seus pés estão ensanguentados, suas roupas se rasgaram nos arbustos, as pedras pontudas ferem-lhe as extremidades. 

A sua frente surge então a figura de seu amado. Alvo, apolíneo, marmóreo, idílico. Ele apressa os passos, ignorando seu corpo que grita ferozmente contra aquilo, e então correndo cambaleante em sem fôlego em direção aquele silfo que diante dele abre os braços ele estende a mão, que faz aquela figura evaporar entre seus dedos, enquanto ele cai, já inerte ao chão, fazendo escorrer naquela terra seca uma última lágrima de pesar. 

domingo, 24 de março de 2019

Vendaval

Cansado. Fisicamente cansado, devo acrescentar. Meu corpo pede pra ficar quieto na cama por mais algumas horas, ou dias. Meu coração, por outro lado, deseja sair pelo mundo em busca de alguma coisa. Conservo em mim aquela inquietação, um pulsar do meu peito que clama por algo que preencha seu vazio, meu vazio. 

Onde encontrarei minhas respostas? Onde encontrarei a parte que falta em mim? Novamente o caos me possui, a insegurança em não saber o que me reserva o amanhã me abraça... Não sei nem o que procuro, sinto me uma pétala de flor vagando sem destino no meio de um vendaval que se levantou. 

quarta-feira, 20 de março de 2019

Do caos

No meio do caos é difícil entender o que deseja o meu coração. 

Sinto como se estivesse no olho de uma tempestade, no epicentro de um terremoto de proporções apocalípticas. Em meio a esta hecatombe não consigo ouvir senão os gritos desesperados daqueles que me cercam, e que clamam por suas vidas. 

Embora não o escute, sinto meu coração gritar. Ele deixa sua garganta em carne viva, gritando a plenos pulmões aquilo que anseia desesperadamente. E eu, no entanto, nem assim consigo ouvi-lo. 

Não entendo o que ele tão loucamente tenta me dizer. Não consigo compreender o que é que ele deseja. Onde está aquilo que ele tanto busca para preenchê-lo? 

Há em mim um anseio, uma vontade. Um algo que busco mas que não sei dizer o que é. Algo que possa tapar o buraco vazio que há bem no âmago do meu ser, algo que possa fazer sumir isso que me apavora desde meu primeiro pensamento. Não consigo sequer exclamar o que desejo. Não sai mais do que o balbuciar de uma criança que, não sabendo falar, chora com medo de sua existência ser afetada.

Meu ardente coração quer dar-se sem cessar, ele precisa demonstrar sua ternura. Oh, quem haverá de compreender o que há em meu coração, e que coração conseguirá corresponder e me dar essa resposta? 

No meio do caos que me rodeia é difícil entender o que se passa em meu coração. 

segunda-feira, 18 de março de 2019

Uma serpente que sussurra

Cansado. 

O mundo suga de mim mais do que eu consigo lhe dar. Sinto como se aos poucos as minhas forças fossem se esvaindo, como se fosse lenta e silenciosamente me derramando até que não sobre mais do que um recipiente vazio e rachado. 

A fadiga tem me cobrado uma taxa que não sou capaz de pagar, é alta demais. Meu único desejo durante todo o dia tem sido deitar na cama e nela encontrar minha complacência, mas quando me deito, mesmo que durma, ainda continuo cansado demais para continuar. Não posso, no entanto, parar. Não posso diminuir. O mundo exige que continue dando o máximo de mim. 

Como resultado me vem a aflição, aquela sensação ruim na boca que me faz querer desistir. Aquela voz que sibila para mim que não serei capaz... Ela sussurra em meus ouvidos: 

você é fraco, 
você é pequeno, indesejado
você é um incômodo para sua família
um incômodo para seus amigos
até aqueles que te amam, te odeiam
seria melhor se você desaparecesse
seria melhor se sumisse
se encerra-se em um mundo longe de todos, 
um mundo sem ninguém

Tenho ficado cada dia mais paranoico. Cada dia crendo mais que sou indesejado, que sou um incômodo, mesmo que eu saiba que racionalmente não haja motivo para me sentir assim. Ainda assim há em mim essa sombra, que nunca me abandona. Sempre a vejo ali, escondida em sua casinha, esperando a hora certa de espalhar ao meu redor os tentáculos gelados que me hão de sufocar...

domingo, 17 de março de 2019

Do desprezo

Minha mente mergulha num estranho oceano de confusas impressões. Não sei o que sentir, apenas sei que sinto algo, mas sem conseguir precisar do que se trata. 

Alguma parte de mim se sente traída, decepcionada, mas há algo em mim que apenas averiguou aquilo que já estava dado antes de tudo: não há decepção onde há pessoas, onde há imperfeição. Algo em mim apenas constatou o que antes era apenas um palpite: algumas pessoas não prestam e outras não estão nem aí para você. É uma matemática básica: das muitíssimas pessoas do mundo, poucas são as que despertam em mim um carinho e consideração genuínos, e poucas também são as que sentem-se assim despertas por mim. 

Ponto pacífico é que às vezes eu até esqueci daquela primeira impressão, aquela que me dizia que esta ou aquela pessoa não se importava comigo, mas apenas tinha algum interesse. Pode ser que nem mesmo a pessoa tenha consciência dessa realidade, mas assim o fez. 

Deveria me sentir traído? Decepcionado? Mas em mim há apenas a vontade de sentir pena de uma existência tão baixa, tão patética que não provoca empatia nem mesmo ao mais baixo dos animais. Não sei quem foi que disse que a crueldade é um dos prazeres mais antigos da humanidade, mas penso que tenha bastante razão, afinal, para atingir os próprios objetivos nós muitas vezes somos incapazes de pensar em como o outro se sentiria com isso. 

Mas de qualquer forma, não sei como deveria me sentir. Talvez não deva sentir nada. Prefiro assim. Acho que já me preocupei demais com quem não merecia, e isso só me trouxe dor. Talvez tudo o que eles mereçam sejam o meu desprezo, nada mais. 

Para preencher o vazio

Essas palavras saem de mim em absoluta contradição com a minha latente necessidade de dormir. Aproveito essa noite de clima ameno pra escrever na madrugada pois amanhã eu excepcionalmente não preciso levantar cedo. 

Parte de mim sente falta de dizer alguma coisa, minha necessidade habitual de expurgar os muitíssimos pensamentos que pululam minha mente. Outra parte deseja apenas fundir-se permanentemente aos lençóis de minha cama, num sono perene. Devo dizer que esta segunda tem sobrepujado a primeira, prova disso é a quantidade de vezes que tenho conseguido me aliviar nessas páginas que me são tão caras. As quimeras parcas que vez ou outra coloco aqui contém então uma potência sugestiva gigantesca, ao passo que as escrevo de maneira sintética o que deveria dizer em muitas palavras mais. 

Finalmente me sento por alguns instantes, na companhia de meu caríssimo silêncio. Finalmente sinto meu corpo clamar pelo descanso que, nos últimos dias, tem sido insuficiente para acalmar meu corpo ainda não habituado ao trabalho cotidiano. 

Me concentro alguns instantes na dor que sinto em meus lábios. Depois de meses de ansiedade realizei a micropigmentação labial que tanto sonhava. Devo dizer que me sinto realizado, ainda que tenha sido uma das piores dores de que me recordo sentir, e olha que não foram poucas. Mas, com ou sem dor, aos poucos me aproximo da paz de espírito que é sentir-se bem comigo mesmo.

Claro que não posso me furtar a refletir se o faço para preencher o vazio que há no âmago de meu ser com a atenção dos outros para, com base neles, formar a minha imagem do Eu. Algo em mim ainda sente inveja daqueles rapazes altos e brancos dos grupos coreanos, amaldiçoando silenciosamente o tom de pele arroxeado de meus lábios e a compleição marrom de minha indireta descendência indiana. Algo em mim ainda crê que quanto mais parecido com aqueles homens, mais me sentirei bem comigo mesmo, realizando quem sabe o tão desejado sonho de achar alguém que me aceite, ainda que um pouquinho melhorado.

De qualquer forma sinto-me realizado, e mais ainda por poder me sentar aqui a noite e escrever-lhe essas brevíssimas palavras, ó meu pequeno diário, e assim livrar-me do peso que é ter comigo essas palavras que, ao mesmo tempo me prendem e me libertam, ferindo-me de uma letra escarlate, rasgando-me a alma como a agulha há pouco rasgou a pele de meus lábios. 

terça-feira, 12 de março de 2019

Sem métrica


E é isso, quando eu começo a sorrir sozinho, quando começo a acreditar que a única razão da minha alegria é o céu azul que se estende sobre minha cabeça me vem você! E eu vejo que o motivo do meu riso ainda não é o céu azul, mas é o mesmo motivo que me faz chorar. Que dicotomia é essa? Que é isso que me faz sorrir e chorar de medo ao mesmo tempo? Só por você que sinto algo assim... Só por esse céu especificamente que eu consigo me sentir amparado e afetado... Só por você... Quando me vem a solidão, e eu desejo alguém, é você que desejo. Quando sorrio de algo e quero fazer alguém sorrir também, é você que eu procuro. É só por você. E essa constatação me faz tremer de medo, porque é algo que eu acreditava já estar morrendo dentro de mim, e odeio perceber que na verdade você ainda continua vivo dentro de mim... Saia de mim, eu te peço... Me deixe sorrir com o céu pelo simples fato de ser o céu e não por ver sua imagem estampada nele, como se fosse meu grande ideal de perfeição. Porque você não é. Você me fez sofrer. Me fez sentir dor. Me fez sentir a pior pessoa do mundo, a menos importante. Um lixo. Não quero você no meu céu. Eu quero ser meu céu. Eu quero ver os fogos explodirem em belas cores, me fazerem chorar pela sua beleza e não pela ausência que você causa em mim. Eu não quero chorar por você. Por favor, vá embora. Não venha aqui, não, não venha aqui. Não me toque, por favor não me toque. Não desperte em mim os meus instintos. Não faça isso. Vá embora. Vire as costas para mim como sempre fez. Não me dê esperanças, não acenda a fagulha que já quase se apagou. Não me olhe nos olhos. Não me deixe morrer afogado em suas águas esmeraldinas. Não me deixe me perder em seus olhos. Não venha aqui. Não use o poder do seu toque em mim. Não me procure mais. Não faça isso, por favor. Não solte essas faíscas. Não fale meu nome. Não seja doce. Não seja bom. Não me faça sonhar com as estrelas que brilham sobre nossas cabeças. Não me faça correr em seu encontro. Não me faça tropeçar de emoção em ver você. Não aperte minha cabeça sobre seu peito. Não me deixe ouvir seu coração. Não me faça viver tudo aquilo de novo. Não me faça querer morrer de novo. Não me faça sorrir. Não me faça chorar. POR FAVOR, SE NÃO PUDER ME AMAR, VÁ EMBORA!

sábado, 9 de março de 2019

Prólogo do Céu

- Eu não entendo, que tipo de mundo os deuses querem criar? 
Qual é a imagem que os deuses querem ver? 

Um deus, 
um deus, 
o que é um deus? 

O QUE É UM DEUS? 

- Você pergunta 'o que é um deus'? 

Um deus é algo que os mortais não podem entender. Nem ao menos tentar compreender... 

Que absurdo! 
Um mortal insignificante atacando um deus? 

Os deuses vivem eternamente, e você nos desafia? 
Ser imortal é a coisa mais bela e poderosa do mundo...

Desapareça, humano!

- Os deuses são tão poderosos assim? 
Os humanos são pequenos comparados aos deuses. 
Os humanos fazem o melhor que podem para sobreviver. 
Você não tem o direito de ser um deus, quando não protege aqueles que batalham tanto para sobreviver. 

Perdoar e zelar pelos humanos, não é para isso que servem os deuses? 
Como você pode se chamar de deus sem sentir amor pela humanidade? 

SE SER DEUS É ISSO, ENTÃO EU NÃO PRECISO DE VOCÊS!

- Não é permitido aos humanos renegar os deuses. 

- Mesmo que a humanidade seja tola e destinada a ser destruída pelos deuses, eu quero dar um golpe! 

Eu vou acertá-lo e isso vai provar que um humano já esteve aqui!

- Morra, humano!

Quando o coração humano supera os seres divinos, 
o que os deuses vão perdoar, e o que eles vão castigar?

(Os Cavaleiro do Zodíaco - Prólogo do Céu)

sexta-feira, 8 de março de 2019

Futuro bestial

"A visão do homem agora cansa - o que é hoje o niilismo, se não isto?... Estamos cansados do homem..." 
(Friedrich Nietzsche)

Momentos em que vivo, um dia de cada vez, sem prestar muita atenção no futuro, sem fazer grandes planos, sem grandes expectativas. E me refiro ao mundo todo! Não espero muita coisa das pessoas que me cercam, de meu trabalho, de meus pais e muito menos de mim. Aliás, espero ainda menos de mim.

Não me vejo tendo um grande futuro, não me vejo sendo um grande homem bem sucedido, seja lá o que quer que eu faça de agora para frente... Não me vejo senão que sobrevivendo um dia após o outro. Talvez como um viciado em álcool ou benzodiazepínicos, mas de qualquer forma um inveterado desacreditador da humanidade. Não vislumbro um futuro diferente da destruição completa do homem, destruição essa que se não for feita de maneira objetiva, com paus e pedras, será de maneira metafísica, destruindo para sempre o espírito do homem, reduzindo-o a bestialidade.

Isso é algo que a cada dia se marca mais profundamente no meu peito. O homem é tão horrendo que poucas de suas obras não beiram a completa e horrenda disformidade da mentira. A beleza tornou-se rara em nossos dias. Desde a manhã o homem toma seu café, acende seu cigarro e consome as cinzas de uma sociedade podre, em noticiários que não fazem mais do que estampar em cores e letras garrafais a lixeira da miséria humana.

A simples aglutinação de tragédias gera em nós um constante gosto amargo na boca, e aos poucos a vida se torna amarga. Podemos ainda buscar o refúgio na cegueira onde essa luz não chega, e não culpo quem o faz. Aliás, se assim pudesse, eu mesmo o faria. Mas, como não posso me furtar a ver aquilo que há por onde passo diariamente, tendo a inevitavelmente contemplar o abismo da maldade de nossos corações, e como bem disse também Nietzsche: quando se olha para um abismo por muito tempo, o abismo olha para você! 

Luzes e pessoas

Caminhando numa rua movimentando, no meio da noite. As pessoas desse lugar nunca dormem? Amanhece, anoitece, dias e noites passam e passam, e as pessoas continuam nas ruas, num vai e vem, num frenesi que nunca acaba. Para onde vão? De onde elas vem?

Algumas passam por mim com um sorriso aberto e cor de rosa no rosto. Parecem apaixonadas. Por sorte encontraram o amor no meio dessa multidão inquieta? 

Outras passam com um semblante preocupado, correndo para resolver os problemas de seus negócios, de suas vidas. As vezes a preocupação se transforma em incômodo, e a expressão delas é de um desalento total. Parecem já ter desistido da vida, e agora vivem sufocados em meio a essa selva de concreto de prédios e mais prédios que se erguem por sobre nossas cabeças. O céu é apenas um pequeno buraco na grossa nuvem de poluição que se levanta acima de nós. Eles sentem-se por ela envenenados, e ela aos poucos os mata.

Os jovens passam rindo e sorrindo, brincando despreocupadamente sob o efeito do álcool em suas veias. Parecem nunca parar de beber, e sempre andam sem rumo, de bar em bar, em busca de alguma bebida que possa fazê-los sentir-se satisfeitos consigo mesmo. Abafam os gemidos de seus corações com as risadas altas e as músicas que entoam sem afinação por aí...

Por fim, há ainda a maior parte dessas pessoas, que não sei quem são e nem para onde vão, tampouco sei de onde vieram. Algumas as vezes até chegam a esbarrar em mim, mas a pressa é tanta que já não podem mais desculpar-se. 

Algumas passam por mim com um sorriso aberto e cor de rosa no rosto. Parecem apaixonadas. Por sorte encontraram o amor no meio dessa multidão inquieta? Eu sou mais um entre os vagantes, andando sem rumo por essas ruas apinhadas de gente. Talvez uma delas seja o amor de minha vida. Eu ergo o olhar para os letreiros iluminados da grande avenida. As luzes brilham tanto, há algo de inspirador nelas também. Como se a vida agitada dissesse que nunca devemos parar de buscar algo, e é isso que todos ali estão fazendo, buscando suas felicidades. Só não sei se estão no lugar certo, pois mais parecem (parecemos) formigas tontas por aí. 

Fico ali, meio perdido, olhando ao meu redor as pessoas que nunca param senão para o sinal de trânsito que diz a elas quando atravessar a rua para não serem levados pela massa de carros que passam como manadas intermináveis de animais. 

E essa cidade nunca para. As pessoas desse lugar nunca dormem. Amanhece, anoitece, dias e noites passam e passam, e as pessoas continuam nas ruas, num vai e vem, num frenesi que nunca acaba. Para onde vão? De onde elas vem?

segunda-feira, 4 de março de 2019

Manhã de carnaval

Manhã, tão bonita manhã de carnaval... Na verdade já estamos no final da tarde, mas ainda me encontro de pijama, com os olhos desacostumados com a luz, como se ainda fosse manhã. Os compassos esparsos do Dexter Gordon me fazem permanecer sonolento. O dia foi basicamente uma grande soneca, da cama para o sofá e do sofá para a cama. 

Na vida uma nova canção, e meu coração agora bate num compasso diferente também. Enquanto para alguns o carnaval é época de ilibada diversão para mim é tempo de profunda reflexão. Volto meu olhar para o meu passado, e com uma sensação de decisão repudio muito do que ali vivi, proclamando em alto e bom tom que não repetirei os mesmos erros de antes. Consternado eu me viro para o meu eu de um ano atrás, irrecuperavelmente apaixonado numa situação autodestrutiva que me levou ao limite da saúde mental. Não posso sequer me lembrar disso sem sentir o gosto de sangue em minha boca, me lembrando o quão perto da morte estive. 

A canção que agora ecoa em meu coração é incerta. É um misto de suspense, algo misterioso, como o os desdobramentos do futuro. Também é algo jocoso, algo libertador, que me faz até mesmo ignorar o não saber do amanhã, aproveitando bem o hoje. Gosto da sensação e, embora meu corpo ainda apresente algumas linhas finas das cicatrizes que um dia estiveram abertas e escarlates, aos poucos sinto-me recobrar a vida que me foi tirada de mim, aquela que entreguei de bom ao meu próprio algoz, que se riu de mim enquanto eu cavava minha própria cova.

Mas a música mudou. E agora acompanhado pelas cordas do violão eu canto não mais a tristeza de agora, mas sim uma tristeza que se foi, cujas marcas eu apenas recordo, mas que já não doem mais tanto quanto antes. A chuva não traz mais a melancolia inveterada, mas sim um aconchegante descanso. Tudo mudou, agora é azul em meu coração. E então canta o meu coração, tão feliz nessa manhã de um novo e desconhecido amor...

domingo, 3 de março de 2019

Da não decepção

Apenas uma vitória que me deixou eufórico nesta madrugada de carnaval: pela primeira vez em anos consegui dirigir sozinho, coisa que já estava confiante de que nunca mais faria. Meu medo da direção sempre me paralisou e me fez vítima da necessidade e da dependência, algo que sempre me frustrou, sempre me fez sentir inferior aos outros, principalmente aos meus amigos que são tão bons na direção.

Ter conseguido fazer, um percurso pequeno que seja, sozinho, foi uma conquista e tanto! Não me achava capaz, achei que ia começar a chorar, como sempre, mas eu consegui. Mesmo aos trancos e barrancos, mesmo com medo, mesmo esquecendo de dar a seta ou como passar as marchas no momento certo, mesmo assim eu consegui. Sem chorar, sem ficar paralisado, sem desistir. 

Posso não ter sido tão incrível quanto meus amigos, mas eu consegui, de algum jeito, graças a eles que a sua maneira confiaram que eu era capaz de fazê-lo. E eu fui. Não os decepcionei. 

A sonata do diabo

Basta que feche os olhos por um instante ou, menos ainda que isso, que me desligue momentaneamente da realidade para ouvir... Os suspiros maliciosos de um pequeno demônio que murmura para mim coisas maldosas. E com a minha própria voz ele me convence de tudo aquilo contra o qual eu luto diariamente. 

Ele me convence de minha pequenez, de minha patética existência, de minha completa incapacidade. Ele sussurra coisas que não gostaria de ver, e chama minha atenção para os espinhos das rosas que me cercam. Ele é o demônio que se compraz em me fazer triste, em olhar deprimido ao meu redor e me sentir inferior a todos os outros. Ele se alegra em me fazer crer que sou um estorvo, que minha presença não só é enfadonha e dispensável como é até mesmo desejosa que desapareça!

Como não há em meus ouvis voz que se contraponha a essa, ela aos poucos se decanta em meu coração, tornando turvas as águas que antes fluíam calmas e cristalinas. E ali ele continua, a destilar em mim o seu veneno, me fazendo ouvir as notas sinuosas de sua sonata diabólica. Por fim, quando se instala em mim o pavor pela existência, eu acordo do pesadelo que foi por ele manipulado, mas sem me lembrar de que tudo não passou de um sonho, ficando apenas em mim o gosto amargo de seu veneno.

sábado, 2 de março de 2019

Aroma

"Há uma inocência na admiração: é a daquele a quem ainda não passou pela cabeça que também ele poderia um dia ser admirado." 
(Nietzsche)

Admiramos aquilo que nos encanta os sentidos, levando a alma aquela sensação de elevação espiritual. Tal sensação, por assemelhar-se em gênero, número e grau com aquela experiência real que tivemos no sobrecéu de nossa existência anterior a existência material, nos faz elevar-nos o coração, aos píncaros da idílica arte. 

Admiramos aquilo que, ao observamos e confrontarmos com nossa imensa pequenez, nos faz desejar aquilo que nos propende ao que é belo, justo e verdadeiro. Admiramos aquilo que gostaríamos de ser. A flor que não se abriu por conta da chuva que a machucou as pétalas se ressente ao ver as rosas que imperam gloriosamente suas pétalas escarlates sob a luz do grande sol. 

Alguns observam aqueles que no mundo se destacam dos demais, aqueles que de algum modo foram abençoados pelos deuses das artes, da beleza e do amor, e por eles sentem a inspiração que os faz ir além das limitações, e assim rompem com as barreiras que os prendem na mediocridade. Tornam-se grandes. Por outro lado não conseguem fazer o mesmo aqueles que, governados pelo seu temperamento melancólico, fecham-se em sua cápsula de autopiedade e ali ruminam constantemente sua incapacidade, que na verdade é uma ignorância sobre a potencialidade do ser humano. 

Admiro pessoas que expressam seu talento, que soltam sua voz a plenos pulmões, que não se envergonham de sair as ruas caminhando e cantando a canção que brota no íntimo de seus corações. Vejo nessas pessoas uma aura, e essa aura me encanta, desperta em mim a admiração pela beleza que deles emana. No entanto essa beleza me paralisa, como uma pressão espiritual maior do que a que meu corpo pode aguentar. 

Da admiração vem o desejo, e do desejo vem a inveja. E quando ela torna-se inveja, a inveja não é mais do que veneno, o mesmo que machuca a carne a paralisa o corpo, o mesmo que torna a admiração em escravidão. Não me ocorre, nesses momentos, que também posso ser admirado, ainda que tenha alguns motivos para sê-lo. Não me ocorre que, nesses momentos, sou um pouco mais do que o homem pateticamente medíocre que sou. Não me ocorre que, se me esforçar para seguir os passos daqueles que admiro, serei eu também admirado pelo meu esforço. 

Da admiração me surge essa armadilha, disfarçada pela figura de uma inocente flor, que esconde em si o perigoso aroma da morte. 

sexta-feira, 1 de março de 2019

Da construção do personagem

Autossabotagem, aquilo que eu faço quando as coisas estão indo bem, e então crio em mim mesmo uma situação que me traga desconforto suficiente para sofrer. Situações de dores que poderiam ser evitadas e que eu busco para dentro de mim, situações que sem minha intervenção iriam apenas passar sem que desse importância, situações em que eu me torno meu próprio algoz.

Frequentemente eu faço de meu coração o meu cilício, e busco no outro a razão para minha dor. Frequentemente me vejo buscando situações em que inevitavelmente sentirei dor. Frequentemente me vejo reabrindo feridas antigas apenas pelo estranho e doentio prazer de sentir dor. 

É como se sem a dor eu fosse um homem incompleto, como se sem ela eu deixasse de existir, e aos poucos a minha existência fosse se apagando do plano do ser. Como se minhas extremidades fossem desaparecendo... E para evitar desaparecer eu busco a dor, capaz de me trazer de volta, pois somente aqueles que existem são capazes de sentir dor. 

Talvez esse sentimento de desaparecimento seja o meu Eu pisando no plano da existência real, e o meu medo faz com que eu queira sentir dor para assim retornar a segurança do meu mundinho, onde me escondo para fugir da dor. É uma faca de dois gumes: me machuco para então fugir da dor, e quando finalmente me encontro longe dela, me machuco novamente, iniciando de novo esse ciclo infernal, como o ourobouros

Por isso tantas paixões, tantos amores não correspondidos, tantas lágrimas derramadas em vão, tantos passados que nunca ficam no passado... Tudo é meu ser buscando sofrer na esperança de que isso seja o verdadeiro significado de viver. E assim vou construindo meu personagem, do moribundo que expressa ao mundo a amargura de sua existência pueril. A figura do decadente me traz familiaridade, talvez pela compaixão que os outros expressam para comigo. Talvez seja eu alguém que vive da compaixão dos outros e da autopiedade que flui pelos meus poros numa existência pueril e patética. 

Mas esse é o personagem que eu quero construir? É esse o papel que eu quero interpretar?