terça-feira, 26 de março de 2019

A quimera e os anjos

Depois de uma longa tarde, sonolenta, chuvosa e relativamente silenciosa eu me vi absolutamente intimidado, pela massa pesada de um mundo superior que caia sobre mim, a refletir sobre algumas coisas que inquietam meu ser. 

Deitado numa cama vazia eu me vi prestes a ser devorado por um gigante atemporal, uma quimera que sibilava para mim "decifra-me e eu te devoro mesmo assim, pois sou maior do que você!" E assim, levado por uma onda impetuosa da qual não pude fugir fui abraçado pelas palavras que me fluem com mais vigor e rapidez do que posso registrá-las. Ainda que meu constante hábito de me deter em descrever como se deu meu processo criativo antes mesmo de conseguir completar a obra que dele deverá nascer seja de certa forma contraproducente, mas fazendo também parte do mesmo processo, ainda que o resultado final seja um tanto quanto excessivamente autorreferencial. 

Pensava comigo, o quanto a ignorância continua andando pelo mundo cada vez mais fortalecida pelos seus sequazes, fazendo cada dia mais vítimas e a cada palavra atraindo para si mais e mais adeptos cegos pela sua doce melodia incendiária.

Particularmente nos últimos dias tenho estado mais sensível a determinados comportamentos e, especialmente, a determinadas obras que, contrariando diametralmente minhas posições, acabam por me ofender quando são tomadas por aqueles que me cercam de algum modo.

Acontece que tem sido doloroso ver as pessoas mais caras a mim sendo engolidas pelos tentáculos gigantescos do kraken que se escondeu no mar sob o canto doce das sereias. Tem sido particularmente ofensivo ver que nenhuma explicação, por mais teológica, filosófica, litúrgica, catequética que seja, consiga algum resultado diferente do balbuciar animalesco de chipanzés que batem no peito querendo banana. É triste ver o quanto a cegueira faz o cego se apegar a escuridão de um mundo que, embora evidentemente maligno, se mostra deliciosamente pentecostal.

Minha linguagem, no entanto, não serve mais para persuadir. Careceria da retórica de um Aristóteles, no mínimo, para demover aqueles de seus erros, coisa muito além de minhas parcas capacidades. As palavras, já tomadas de um significado viciado pela crescente protestantização do catolicismo e pela secularização do mesmo protestantismo torna meu discurso completamente inútil, ao passo que minhas palavras não evocam mais os significados originais, mas se perderam em meio aos acordes doentios provocados pelo crepitar da sarça que só queima e que nos conduziu a ante-sala do inferno, onde ouvimos essa música enquanto aguardamos sermos chamados, de meu amor, pelo próprio demônio travestido de gato da balada. 

As experiências reais, profundas e transformadoras, foram substituídas pelo simbolismo imediato, que logo se esvai por entre os dedos como fumaça, como a fumaça maligna que aliás adentrou nossos corações a partir do momento que deixamo-nos levar pela vibe inebriante, doentia e hipnótica, de quem compôs uma música depois de fumar um cigarro de maconha com o terço na mão. 

No mais tenho me recusado a dar maiores explicações. Não há no mundo teólogo suficientemente capaz de enfiar consciência abaixo ensinamento superior. Não há perfume que supere o odor da latrina. 

Enquanto isso, permaneço em silêncio, enquanto na minha mente borbulham críticas ácidas como essas que aqui teci. Ácido também é o gosto do veneno que me sobe subitamente do estômago cada vez que vejo um grupo de jovens sujeitos a autossugestão a ao transe, de mãos erguidas, adorando seu próprio ego neo pentecostal, com as cruzes dos terços pendendo de seus braços, fazendo o próprio Cristo sentir enjoo de seu sacrifício ter terminado sendo musicado com tão baixa qualidade. Muito embora a fé de que no fim o Imaculado Coração triunfará seja um alento para essa alma inquieta é difícil de ouvir a voz calma de Nossa Senhora sob tão estridentes gritos de extravasamento vocal.  A situação é, no mínimo, desesperadora e nos faz desejar o Apocalipse com um ardor tremendo, pois, creio e espero com furor, que a música dos anjos diante do trono do cordeiro seja melhor do que essa que aqui produzimos. 

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