quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Reflexões sobre a banalidade do meio

Não sei nem por onde começar a loucura que tem sido. Nem mesmo dois dias inteiros dormindo permitiram que eu me recuperasse completamente, e ainda cansado eu já me deparei com uma nova leva de problemas que exigem demais de mim, e mais uma vez não perceberam a minha necessidade. Há meses venho pedindo por ajuda, há meses mostrando que sozinho eu não tenho dado conta. Mas ninguém parece se importar. Que se dissipe a minha vida sem que ninguém nem mesmo se dê conta. O som alto, as conversas, todos apressados, e eu só queria poder dormir. 

Acordei, tomei banho e peguei o ônibus com a mesma disposição que alguém vai o enterro da mãe. Além disso, do cansaço e de um incômodo com o outro quase permanente, some a isso a experiência, horrenda, de presenciar com a brutalidade de quem vê um cão sendo pisoteado, a afetação de pessoas que, já incapazes de perceber a realidade que as cerca, ou aquilo que lhes fala a sua consciência profunda, prostituiram a sua personalidade em detrimento do meio. 

Não importa o que se diga ou que eles vejam: tudo sera julgado segundo os cânones da moral mais baixa e imediata que as suas mentes podem conceber. Não me refiro nem memso ao julgamento antecipado da conduta sexual desta ou daquela pessoa, isso já seria exigir bondade demais: eles julgam conforme e apenas com base na aparência que lhes mostra, no mais superficial, mutável e cambiante que há no homem e, por isso mesmo, naquilo que no homem tem menos ou nenhum valor. 

Um homem que se julga o baluarte da decência e da elegância que se põe a consertar o botão do terno de um segurança, ou os muitos comentários sobre as cores dos vestidos das mulheres num evento noturno de verão onde, aparentemente, é proibido usar branco ou, last not least, comentários sobre como homens de calça justa são afeminados mas homens de calça folgada são desleixados porque isso lhes permite que engordem. 

Essas pessoas perderam toda e qualquer liberdade das suas inteligências. São incapazes de perceber, ou melhor, de dizer o que percebem. Tudo é expresso segundo um esquema fixo de emoções repetitivas: certo grupo de pessoas lhes dão o conceito de elegante, logo correto e digno de atenção. Então, uma vez estabilizado esse padrão tudo e qualquer coisa que fuja a essa, digamos, estética européia velha e com cheiro de mofo regada a espumante e vinho, é então considerado inferior. 

Finjo nem mesmo ouvir os comentários dirigidos a mim sobre como meus cabelos andam bagunçados, minha barba grande demais ou como engordei, como se eu não tivesse espelho em casa.  

O que assusta é como são incapazes de raciocinar um palmo para fora do pequeno circulo que eles conhecem, tudo o que passa disso é estranhez ou falta de dignidade, como se a existência humana nã fosse repleta de nuances de significados que, passando pela aparência física, que é apenas isso e não muito mais, desemboca num oceano de virtudes, vícios, costumes transmitidos pela sociedade, influência do clima e uma outra infinidade de esquemas que nem conseguiria enumerar, senão que existem ciências inteiras que tentam explicar esse ou aquele comportamento humano e tomar a vestimenta de alguém como ponto pacífico no julgamento do ser humano integral é, em si, sinal de uma razão ensismesmada e prostituída. 

Todo ser humano, ou pelo menos os normais, têm em si alguma característica admirável e algumas desprezíveis. O inverso também acontece. O Wagner que compôs dezenas de peças incríveis ou o Picasso que enche os olhos daqueles que visitam as galerias de todo o mundo eram pessoas desprezíveis sob muitos pontos de vista: pegavam dinheiro sem devolver e ainda denegriam os amigos que lhes favoreciam, comiam suas mulheres ou traíam as próprias. Nem por isso suas obras deixam de ser admiráveis, mas é justo o contrário, é porque suas vidas eram permeadas dessas nuances de que falei que eles conseguiam criam coisas tão incríveis que, não raras vezes, revelam justamente a riqueza interior de seus criadores, seja da sua genialidade ou dos comportamentos desprezíveis por constraste ou exagero. 

Entender que todo mundo tem em si algo de divino ao mesmo tempo que tem bastante de malicioso faz parte da experiência humana normal. Em todo tempo as pessoas sabiam que possuiam coisas em que deveriam melhorar e outras que deveriar conservar. O chinês médio confucionista ou o filósofo escolástico tinham exatamente a mesma concepção do homem, diferenciando apenas as formas metafíscias nas quais se apoiavam essas concepções. 

O homem de hoje, no entanto, parece ser uma reencarnação de Hegel, crendo ser ele mesmo a personificação da perfeição do espírito humano em sua mais prístina pureza. Julga todos do alto do edifício semântico do seu grupinho e perde tempo em discussões sem nenhum fundamento enquanto o homem real, levanta cedo, veste o que tem e sai pra tentar ganhar a comida dos filhos. Não tem tempo pra pensar na cor da estação, nem sabe o que é isso, e mais grave ainda: sabe ele mesmo que tem em si coisas que poderia melhorar, como quando alguém acredita que se estudar mais trará um futuro melhor aos filhos ou, ou ainda que têm coisas que deveria conservar, como a própria força de vontade em trabalhar. 

Esse univervo de nuances é imperceptível a todos esses que se fecharam em suas próprias e pobres concepções imediatas. 

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

A inconsciência me fascina

Dias de puro cansaço. O caos da missa de ontem me deixou no limite, tudo o que pude fazer ao voltar para casa foi me deitar e dormir por oito horas e, mesmo assim, quando acordei, meu corpo ainda doía tanto que eu custava me mexer. E sabe a melhor parte? Todos continuam mandando mensagens, me adicionando em grupos, me perguntando coisas, me cobrando outras, mas ninguém é capaz de perceber o quão cansado estou.

E amanhã volto ao trabalho, quem inventou que apenas dois dias são suficientes para descansar de semanas inteiras de cansaço? E eu nem consegui fazer a barba sequer, e certamente vão me julgar por isso, como se significasse que eu sou apenas um preguiçoso sem higiene. Eu tenho nojo dessas pessoas que esperam que eu fosse um daqueles homens de comercial de relógio, que usa terno no calor do verão como se isso fosse prova de inteligência e capacidade. Meu desprezo por essas pessoas é imensurável. 

Coloque-me do lado de um analfabeto de terno e pergunte quem é mais inteligente. Ninguém se importa com o esforço real, mas com a aparência da virtude, ninguém se importa com o conhecimento, mas com a aparência do mesmo. Infelizmente é necessário que eu suporte esses trastes, esses arremedos de ser humano pois, como dizia Carl Jung 

"É impossível se individuar sem relacionamento, também é impossível ter relações reais sem individuação. Pois, caso contrário, a ilusão intervém continuamente, e não sabemos onde estamos."

E sabe o que mais dói, além de que nunca se lembram de mim senão para me lançarem problemas ou dúvidas? É que ninguém, e agora falo mais especificamente daqueles dois, é que ninguém se importa realmente com meus sentimentos. Um deles passa por mim e nem me olha mais, sempre fui e continuarei sendo um estranho para ele. E o outro, tem outras tantas preocupações, já que tudo e qualquer coisa é mais importante e interessante que meu amor. 

Que posso fazer então diante desse cenário que não seja voltar a dormir, deixar que as mensagens cheguem, que o mundo se despedace, que todas as coisas cheguem ao fim ou retornem ao nada, que o caos vença a ordem, enquanto durmo, pois a inconsciência me fascina. Não pensar na falta de amor me fascina. Ignorar a desesperança é a única coisa que tenho.

E penso, antes que comece a sentir sono demais por causa das drogas, que aquela sacralidade que vejo está tão distante de mim. Que os cantos, a sóbria solenidade, o zelo e todo o respeito se perderam completamente. E eu faço parte disso, e não há muito que eu consiga mudar. Então, voltarei a dormir, cansado.

"Incapaz de conhecer pessoas novas, de suportar um novo conhecido; a rigor, repleto de um espanto infinito." (Franz Kafka)

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Meu ofício solitário

Já há alguns dias eu vinha pensando, ainda bastante cambaleante, em me confessar. Considerando que já faz mais de uma Páscoa que eu não me aproximo da comunhão, aliás desde poucas semanas depois que me mudei para cá, e as crescentes responsabilidades na paróquia começaram a fazer pesar algo que só pode ser tranquilizado com os sacramentos frequentes, e eu sentia essa falta, como se constantemente ao meditar sobre os mistérios divinos eu não tivesse a substância sobre a qual eu estava meditando. E de fato não tinha.

Claro que após tanto tempo eu não sei se terei forças para aguentar muito mais, especialmente com meu atual estado maníaco-depressivo que me faz oscilar tanto. 

O que me fez tomar essa decisão com um pouco mais de firmeza foi justamente o santo altar, do qual eu tanto falo e com tanto carinho. Ao me aproximar dele eu sentia não só a indignidade intrínseca ao homem caído, mas uma distância ainda maior pelo meu próprio pecado. E as necessidades pastorais parecem sempre surgir de modo a me aproximar novamente desse altar. Olhando então as páginas do Missal senti que precisava realmente me aproximar Dele de modo mais total, tanto quanto me fosse possível naquele momento. 

X

Não muitos dias depois voltei ao mesmo estado de antes. Percebi, caminhando sob o sol quente, como os Lamentos de Jeremias, do povo de Israel em seu exílio, se aplicam também a alma que se afastou de Deus em seu pecado, íntimo, silencioso e solitário. Uma vez mais eu me uni ao antigo profeta num adagio lamentoso:

Zela tão bem no castigo
Que a eles vais aplicar,
Como soubeste punir-me
Por todo este pecar;
Sem conta são meus gemidos,
Meu coração a parar...

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Das consolações

Ânimos aflorados ao meu redor. Além do cansaço físico dos dias eufóricos acumulados a uma pequena (não tão pequena assim) mudança no meu local de trabalho fizeram com que a fadiga começasse a se acumular e, como é típico desses tempos de loucos, é claro que a cereja do bolo seria, além do cansaço, um clima bélico ao meu redor.

As dores que sinto por todo o corpo são então uma união dos dias de prolongada euforia com os móveis que precisei carregar, além é claro,  de todas as tensões que precisei amenizar, seja no trabalho ou na igreja. Parece que todos andam prestes a explodir e, de repente, me tornei algum tipo de esquadrão antibombas de um homem só. Então é claro que apelo para distrações, felizmente pessoas com TDAH têm essa facilidade quando estão desinteressadas, ou então pros óleos essenciais ou ainda deixando que as pessoas falem e esbravejem, soltando tudo aquilo que as incomoda. Falar ajuda, e falar dos desafetos mais ainda e eu, felizmente, sou bom ouvinte. Ou pelo menos é o que pensam, já que em momentos assim eu apenas ligo a minha musica interior e fica por isso mesmo. 

De todo modo, ontem fui dormir imerso numa tristeza profunda. Novamente me deparei com aquela sensação horrível de que as pessoas apenas me procuram quando precisam de algo, e isso me é confirmado por alguns que me rodeiam. Eu sou um homem solitário que resolve problemas. As pessoas me procuram quando querem tirar alguma dúvida ou quando algo deu errado, e é bom ser lembrado como alguém eficiente ou capaz mas, ao mesmo tempo, eu não sou uma companhia agradável, visto que nas resenhas e nos momentos de confraternização eu sempre sou deixado de lado.

E isso machuca ainda mais quando vejo que, em determinados lugares, eu dou tanto de mim, me esforço tanto para evitar que as pessoas consigam se estressem demais ou que tenham desconfortos desnecessários, sempre dando tudo de mim, sempre buscando ser o mais eficiente possível, resolvendo o mais rápido possível mas, quando a tempestade passa, eu sou o primeiro a ser abandonado.

Então retorno para casa como ontem à noite, cansado, na chuva, depois de receber abraços de agradecimento, mas também esquecido por todos assim que passei pelo alpendre. 

Como não recordar, uma vez mais, das palavras do profeta Jeremias? 

Banhadas ´stão suas faces,
Corre o pranto a noite toda,
Daqueles que a amavam,
Já ninguém mais a consola;
Dos seus amigos traída,
São inimigos agora.

É assim que me sinto... Sempre e sempre, de todos os que cercavam só me restou a solidão, a pantera de que falava o poeta, a ingratidão a devorar a minha carne. Admito que foi uma das noites mais dolorosas que me lembro, e fui dormir sozinho, com essa angústia a me esmagar a alma saturada de males, afinal já ninguém mais a consola...

Onde é que há, afinal, companhia no mundo? 

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Uma tristeza sempre antiga e sempre nova

 "Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia." (Saramago)

Tentei estudar um pouco mas, em casa com esse calor todo, é quase impossível. Sinto muito mas o capítulo sobre Leucipo de Mileto vai ter de ficar para depois.

Não sei dizer por qual razão eu, dentre todas as pessoas, fui escolhido para amar, e amar tanto assim, amar tanto a ponto de doer e me machucar tanto, amar a ponto de cada fibra do meu ser se contorcer. 

E por mais que diga que me ama, que nossa relação é mais forte e mais importante que um namoro, ainda há essa parte em mim que grita, como fera maltratada, de dor por ver o meu amor ser aprisionado assim. Sim aprisionando, porque como Santa Terezinha canto que "meu ardente coração quer dar-se sem cessar, ele precisa demonstrar, essa ternurar. Ah! Quem há de comprender meu amor, quem poderá me corresponder?"

Parece que continuo na busca incessável, o que não é verdade, eu já há muito havia desistido. Mas o que acontece é que esse meu coração, de carne e sangue, pulsa e sangra todos os dias, e faz-se suspirar, faz-se chorar, por não ter, nessa terra infeliz, a quem se dar.

E me irrita pintarem o amor como algo belo assim. O amor não é assim. É uma praga, serve apenas para que nos humilhemos uns aos outros. O amor é essa ideia maldita de que as pessoas se apoiariam, que dividiriam suas vidas, que caminhariam juntas. Mas o amor é uma escolha, e sempre escolhemos o caminho que nos faz sofrer.

Anos atrás um aluno se aproximou de mim, e talvez só quisesse nota fácil sem esforço, e logo surgiram boatos de que estávamos juntos, e então ele se afastou, mas me lembro bem das últimas palavras dele quando me disse o quanto doía fazer aquilo porque seu pai jamais poderia ouvir um boato como aquele. Essa semana vi fotos do seu casamento. Não fora feliz naquela época, tampouco o vi feliz naquelas fotos, e eu? Bem, não digo que o faria feliz, de modo algum, mas observo, como se a isso tivesse sido condenado, a ver e presenciar os amores destruirem as pessoas, uma a uma. 

E com esse mesmo pessimismo também exergo que, vez após vez entreguei meu coração e o recebi de volta em frangalhos, senão que não aconteceu dessa vez porque não havia mais nada a devolver. O meu coração foi arrancado de mim, sobrando apenas a dor de cada artéria, de cada veia que foi arrancada, destroçando o meu corpo de dentro para fora, fazendo com que a minha casca, o que restou do homem que um dia era todo amor, agora seja apenas uma cabaça vazia, ruindo lentamente como as pedras antigas de um castelo em ruínas.

O amor é a maior da todas as mentiras, eternizado em séculos de literatura que falam dele justamente porque seus autores não o encontraram na vida real. O amor é maldição que não poupa quem nela acredita, o amor é uma doença que consome pouco a pouco, destruindo tudo o que o amante acredita. O amor, se não correspondido, não é uma bênção, é maldição, doença até a morte. 

Ser a pessoa que os outros se lembram apenas quando precisam é uma coisa que dói pra caralho. Eu sou sempre o especialista, mas não o amigo, nunca o amor. 

Assim eu fui dormir na noite passada. Revirando de um lado pro outro, o ar quente do ventilador disparado contra mim tentando vencer o ar abafado ao meu redor. Eu odeio o verão, como odeio saber que ele não sente o mesmo por mim, e como odeio saber que a vida continua, a dele, a minha, e a de todos os idiotas ao meu redor, tudo continua, e nada importa.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Tarde raivosa de verão

Que as pessoas dificilmente entendem o que eu digo não é nenhuma novidade. Acham que eu estou exagerando ao dizer que vivo rodeado de miséria. Mas, apontam elas, eu tenho um trabalho razoável, moro numa cidade em que todos os indices apontam com sendo uma das melhores para se viver, com uma boa relalçao entre a oferta de empregos e o custo de vida. 

Elas não entendem o que quero dizer. A miséria a qual me refiro não é dessa natureza. Sim, a geladeira de casa está sempre cheia, e não passamos necessidades dessa ordem. Mas e o fato de que todos aqui claramente têm depressão em algum nível? E a apatia que nos cerca? E quanto a absoluta miséria moral que enfrento, seja ao sair do quarto afora até voltar pra casa de noite? 

Eu nunca cheguei a passar fome, e tenho internet em casa e um notebook novo. Mas a minha família ainda acredita que trabalhando firme nós vamos conseguir comprar um carro e ir a praia toda semana. Assim como achavam que, vindo para cá, iríamos a praia toda semana. Faltava a eles essa pequena dose de realidade,

Nessa vida algumas pessoa vão à praia toda semana, outras têm ar-condicionado em casa e outros, a maioria, só pode comprar uma caixa de cerveja barata e suportar os meses de calor intenso do verão, sem nada que possam fazer. Essa impossibilidade, pura e simples, de mudar uma realidade tão básica quanto o lugar em que se vive, ou as formas mínimas de conforto e dignidade, isso elas são incapazes de perceber. 

Esse tipo de burrice, de cegueira social, de esperança estúpida e sem fundamento de um dia (quando?) as coisas vão mudar e melhorar, me incomoda profundamente, porque projetam em mim essa esperança, sendo que, eu o sei bem, o nosso futuro é continuar na mediocridade. 

E nem vou começar a falar do ambiente moral, onde esperam que eu me dedique a adular pessoas cuja maior realização de vida é serem aduladas onde quer que vão, por não terem feito nada, e por viverem melhor que todos. Esse é assunto que me embrulha o estômago de tal modo que é melhor deixar pra outro dia. 

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Duas canecas...

Acordei de novo. Droga.

Eu já estou morto, será que não percebem? O que estão esperando pra jogar um punhado de terra em mim e me esquecerem de vez? 

Continuo acordando, toda manhã. 

Um novo respirar. 

De novo. 

De novo. 

De novo. 

Um inferno sem fim. 

Fui buscar uma caneca de café, me recordei de ter comprado essa numa feira de produtos artesanais, muito abaixo do preço de quase tudo que tinha lá mas ainda muito bonita. Comprei apenas uma, mas pensei que poderia ter comprado um par porque, quem sabe, numa manhã eu poderia voltar a acordar e preparar duas canecas de café. Mas esse não é o caso e então mudei de ideia, comprando apenas mais uma pra minha coleção de canecas sem par.

Voltei pro meu quarto com a minha caneca com água (desisti do café), para tomar meu habitual coquetel de remédios para dormir o dia todo.

Hemitartarato de Zolpidem, 10mg

Clonazepam 10mg, 30 gotas

Diazepam, 10mg

Cloridrato de Ciclobenzaprina, 10mg

Tenho preferido dormir a enfrentar certas realidades, afinal, há coisas que simplesmente não posso mudar. 

Como o fato de que sol vai nascer amanhã de novo, e que eu vou acordar de novo. Droga.

E de que eu preciso trabalhar.

Nós não podemos namorar.

Ele ainda vai me ignorar quando nos virmos.

E que uma tristeza sem tamanho tomou conta de mim. Mas ninguém liga.

Ele nem liga, vai se encontrar com os amigos. E eu deveria aprender a não sofrer por um amor não correspondido. Mas isso eu também não posso mudar. Não posso controlar. Só posso, ao pensar nesse sentimento, tão forte e tão destruidor, lembrar que, em verdade, esse sentimento há muito me matou, quando amei aquele outro um, que também não ligou.

Se já estou morto, por qual razão continuo acordando todas as manhãs, banhado pela luz desse sol maldito, ouvindo os passos das multidões, caminhando pelas estradas de um castigo que parece não ter fim e cujo crime eu nem me recordo de ter cometido? 

Que farei, que patrono invocarei para que me dê uma morte misericordiosa? 

Até quando continuarei acordando e amaldiçoando até mesmo esse fôlego que me enche os pulmões e me obriga a acordar para viver um mundo onde o amor, a mais doce das mentiras, é também a mais negra das pragas?

É uma manhã de carnaval bem quente, ideal para os foliões, mas eu estou imerso em melancolia. Amanhã será igual. E depois volto para a rotina, com as pessoas me fazendo um monte de perguntas e me pedindo para fazer o que elas não querem ou têm preguiça. Esse sou eu, alguém que os outros se lembram quando precisam de algo porque me dediquei a aprender coisas sobre as quais ninguém mais liga. 

Tudo isso porque acordei. 

De novo. 

E amando mais uma vez. 

Droga.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O que um haikai me lembrou


Li um haiku de Yataro Kobayashi (que até então nunca tinha ouvido falar) que dizia:

Vem cá passarinho
E vamos brincar nós dois
Que não tenho ninho.

Essa delicadeza do convite, a forma como a amada é tratada como passarinho, me recordou vários versos mas, especialmente aqueles que conheci na literatura carmelita, dos diálogos entre amantes. No Cântico dos Cânticos essas formas ternas de se referir à criatura amada é sempre permeada de uma ternura cândida, isso porque, mesmo que em se tratando de uma liguagem romântica, não se trata de um romantismo apenas erótico. 

É que nesse estilo de escrita a pessoa amada se torna, de vários modos, um reflexo do próprio Criador, e os carmelitas pegaram isso para si com muito carinho. Por exemplo naquele longo diálogo de São João da Cruz em que toda a Criação assiste a busca da alma pelo Amado. De uma beleza singular. Poderia sim ser lido de forma apenas terrestre, como o amor entre duas pessoas, mas alguém com a sensibilidade desse tipo de literatura vai entender que trata-se apenas de uma forma de traduzir o inefável amor divino e palavras mais compreensíveis aos homens acostumados ao amor romântico.

Mas do amor divino eu deixo aos mestres carmelitas, que o entenderam bem melhor do que eu, enquanto eu me detenho em falar justamente do amor romântico usando as palavras que eles usaram para falar do outro. Paciência. Esse pobre homem, moribundo apaixonado que sou, não entende tanto de coisas elevadas.

O que me veio à mente quase imediatamente foi justamente uma recordação daquela passagem da pequena grande Santa Terezinha do Menino Jesus ao declarar "Passarinho é o que eu sou nas mãos do meu Senhor", confessando toda sua impotência, numa demonstração de realismo existencial como poucas vezes se viu na história dos homens letrados. Ela nem sequer poderia conceber-se como um Hegel que se considerava o ápice do espírito humano. Ela confessava sua pequenez, mesmo sendo gigantesca, pois reconhecia que sozinha não havia nela nada de grande e nem louvável. E justo por isso realizou grandes coisas. Ao mesmo tempo ela também reconhece em Deus o carinho com que Ele trata as almas, e que muitas vezes nos esquecemos.

Aqui me vejo completamente nas antípodas da santa. Eu murmuro a todo tempo a pouca sorte da minha existência e teimo em não reconhecer as muitas coisas boas que acontecem ao meu redor. Num misto de gratidão obrigatória e revolta infantil eu me vejo como que sendo guiado por Deus e o Diabo, em diversas proporções. Mas não é essa a condição de todos nós?

Santa Terezinha, no entanto, sabia que sua alma aspirava mais, e nela não encontrei esse embate que há em mim. Trazia em sua frágil compleição o olhar decidido de quem sabia querer o paraíso. 

Águia não sou, meu Senhor
Dela trago tão somente o olhar
E também no coração a aspiração do seu voar

Eu, no entanto, não me vejo decidido assim, muito pelo contrário. Sou débil ave, relutante em sair do ninho, com medo das feras que rondam os campos e das serpentes que rastejam. Enquanto ela aspirava tão grande amor eu me entretenho nos amores terrenos, desejando nos homens esse carinho que apenas Deus pode dar aos seus passarinhos. E, por falar em débil ave, é em outro escrito carmelita que a débil ave confessa seu amor:

Ó Jesus se tão delicioso é desejar amar-te
Que não será então possuir, gozar o amor

Mas e eu que continuo apenas a desehar o gozar dos amores dos homens da terra, dos homens que passam, dos homens baixos que nenhum carinho sabem demonstrar em verdade, que amam sempre debilmente, parcialmente, imperfeitamente, desajustadamente, como eu mesmo amo. 

Porque ao menos isso eu reconheço: meu amor imoral, desajustado, confuso, que vê o que não existe, que apenas causa dor e confusão por onde quer que passa. O meu olhar não é o de águia, mas é olhar perdido, olhar de serpente que vê nas águias o inalcansável. 

Umas das coisas mais belas da poesia carmelita é justamente como o amor é algo que torna os amantes decididos, como ele, e apenas ele, ilumina os passos dos amantes, até mesmo nas noites mais escuras. Por isso tantas belas comparações desse amor com fontes de água cristalina, com belas árvores, escadas, montes, castelos, flores... Imagens que remetem o carinho, o amor e o cuidado. 

Mas o meu amor não é visto assim, é como algo predatório, como se eu fosse apenas uma besta que rodeia a vítima procurando devorar. Queria que meu amor fosse esse que, carinhosamente, segura o passarinho. Queria que ele fosse visto em sua plenitude, em como é desejo, anseio, de bem querer, de velar, de tornar meu em amplexos o amado... 

Ao contrário da poesia, onde o Amado sempre encontra a Amante, eu me encontro sempre sozinho.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

São Valentim e cinzas

É Valentine's Day e, para onde quer que eu olhe há corações, rosas, declarações e sorrisos apaixonados.Sim, eu sei que é uma bobagem sem tamanho mas eu vou ignorar todas as milhares de postagens nas redes sociais sobre esse dia. Eu sei que é só um dia que eu poderia viver como qualquer outro, sei disso. Mas também não posso fingir que não estou vendo todas aquelas declarações de amor, todas as fotos de casais apaixonados, ou todas as composições daqueles atores e modelos com fundos cor de rosa e corações espalhados pelo corpo. 

É Valentine's Day, e ele provavelmente vai fazer tudo isso por alguma mulher num futuro não muito distante.

Assim como poucos dias atrás todos estavam de vermelho em comemoração ao Ano Novo Chinês hoje o rosa pulula por toda a parte, assim como as rosas, chocolates mãos dadas... Esses símbolos, ainda que superficiais, artificiais, encontram em mim um eco poderoso, porque encotnro neles tudo aquilo que, de algum modo busco em mim e não encontro.

Todos eles são como um lembrete, perfeito e bem produzido, de que não tenho a ninguém, de que estou sozinho, caminhando nessa cidade que, depois de dias de calor intenso, resolveu chover. Então há essas imagens de beleza ímpar ao mesmo tempo que há essa sensação de absoluta solidão, seja no caminhar, seja no olhar o horizonte. Há sempre a sensação de um vazio que me acompanha, que me consome, que me entristece mesmo quando, penso eu, nada mais poderia me entristecer. Mas isso não é verdade, continuo triste e, em dias assim, ainda mais triste. Em dias assim o vazo parece gritar por mim, e de sua escuridão surgem tentáculos que me forçam a olhar para o vazio infinito que há em mim mesmo. E ele é aterrorizante. 

Não é como se eu tivesse medo do que há em mim, fiquei há tanto sozinho que me tornei minha única companhia real, tive de me acostumar. Não há, em mim, um espaço que eu evite ver, porque sou obrigado a vê-lo todo momento e, a todo momento, enfrentar meus monstros interiores. 

E o que então eu vejo que tanto me incomoda? Vejo uma tristeza tremenda, uma angústia profunda e solitária, algo que vai, me consumindo, mas que parece sempre deixar uma nova parte para poder machucar mais e mais, num ciclo sem fim; 

É Valentine's Day, e os casais felizes publicam suas fotos apaixonados, mas no calendário litúrgico é Quarta-Feira de cinzas, e é assim que me sinto: como alguém que voltou ao pó. Enquanto as músicas que tocam são românticas, meu peito entoa o Dies Irae, implorando, supplicanti parce, Deus.

Queria até poder uma análise mais aprofundada disso, queria mesmo, mas não me encontro em condições. Prostrado de tristeza eu só posso olhar a chuva que cai, sentir o perfume do café e esconder as lágrimas do meu coração.

É Valentine's Day, mas eu estou sozinho respondendo à perguntas difíceis e fazendo coisas que ninguém mais quer fazer. 

Sozinho. 

Como sempre foi. 

Em uma noite tranquila e outros momentos

Estou indo para duas semanas num episódio eufórico anormalmente longo. Não me lembro a última vez que tive tanta energia por tanto tempo. E claro que isso vem acompanhado de várias consequências. Se minha produtividade aumentou e muito nos últimos dias, seja no trabalho ou na igreja, isso significa que todos estão com uma expectativa enorme em cima de mim agora. Quando o ciclo virar eu sei que todos ficarão mega decepcionados, já que eu não vou conseguir responder à altura... Se nesses dias consigo enviar dezenas de mensagens, lidar com escalas, documentos, diversas dinâmicas, vários sentimentos aflorados, noites em claro, escrita bem mais prolífica... Em poucos dias eu devo ficar completamente apático, e se vier um episódio depressivo proporcional eu devo ficar quase catatônico. E daí começarão a me chamar de preguiçoso, de lento, e vão exigir a mesma performance de um atleta olimpico, é sempre assim. 

No mais tudo continua como sempre é. Pensamento agitado que não pára um instante sequer. Libido zero, mesmo quando provocada até a avulsão da forma nívea. Às vezes irritabilidade, sérios episódios de inconsequência que, não raro, resultam em dívidas, e a lista continua...

X

Admito que não soube exatamente o que pensar quando me deu essa imagem de uma rosa branca. Mas, depois, pensando um pouco melhor, mesmo com todo simbolismo das rosas vermelhas, as rosas brancas são as minhas favoritas. Têm algo nelas de uma pureza cândida, a textura das pétalas de uma alvura que transmite, ou simboliza, ou ainda significa, a tranquilidade. Pode ser uma única rosa branca, em meio a um gramado de verde esmeralda, ou florescendo por entre pedras no alto de uma montanha, ela se destacaria como um monge em meio ao barulho do mundo, em sua prístina e silenciosa prece. E acho que talvez por isso a rosa branca me lembre você, sua face delicada e olhar puro. É engraçado falar isso de um homem feito, mas ao vê-lo tenho essa mesma impressão de ver uma rosa, e não se preocupe, você também passa a imagem de força mesmo sendo a sua beleza seu maior destaque: rosas têm espinhos, não porque ninguém deva se aproximar, mas porque elas precisam proteger a pureza dessas pétalas que continuam testemunhando, silenciosamente, a beleza em sua simplicidade, mais bela e nobre que qualquer veste de rei jamais poderia se igualar.

Você me pediu que escrevesse sobre a beleza da rosa branca, mas o que posso fazer se, quando penso em beleza, só consigo pensar em você?

X

Nem sequer me dirigiu a palavra, decerto eu realmente não sou importante em absolutamente nada para ele. Nada. Voltei ao início, quando pegava ônibus todos os dias mas nem sequer sabia seu nome, naquela época também eu não era mais do que um estranho. 

Só isso. 

Um estranho qualquer como tantos outros. 

Ele nem sequer me dirigiu a palavra.

Nada.

X

Finalmente consegui encontrar um momento de tranquilidade. Oh, quantas estações se passaram sem que conseguisse me sentar aqui, quieto, com música ao fundo e um copo ao lado e sentir apenas a brisa fresca e o coração pulsar, e dele brotar a mais sincera expressão que eu possa conceber? Poetas e amantes fazem da madrugada silenciosa a sua festa, uns multiplicam seus versos e outros os gozos, ambos cantando ao seu modo uma ode à criação.

Aproveito mesmo a melancolia de não ter sido visto pelo meu bem querer que me causa tanto quebranto, e o mesmo de suspirar em ânsias apaixonado pelo homem que distante daqui dorme no sofá nesse momento, cansado de sua própria rotina e que me tem em complexo amor junto ao seu peito, como o tenho junto ao meu. 

Derramei lágrimas por Pavel Naret e Pooh Krittin em seu luxurioso e apaixonado reencontro, entre gemidos ecoando nos vestiários daquela corrida, meditando cada um o corpo do outro junto ao seu... Assim como também me senti acolhido na intimidade de Kaneko Shunya e Nomura Kouta em Perfect Propose, me fazendo sonhar com aquela rotina, simples porém revigorante, na descoberta de um amor tão antigo e tão novo. 

Não pude deixar de me ver ali, é claro, em meio a abraços e confissões sinceras numa madrigada tão simples, bela e fresca quanto essa, com um coração a palpitar e em versos um amor tão sincero, quanto complexo, eternizar.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Um domingo triste qualquer

Queria poder abraçar você bem forte, e dizer que vai ficar tudo bem, para não temer o futuro. Queria poder dizer que te amo, e te chamar de meu amor sem culpa. Queria poder ser e estar mais próximo, colocar tudo o que já temos em outro patamar. Queria que você enxergasse isso como eu, o quanto combinamos, como isso poderia dar certo, se você ao menos desse uma chance... Não canso de te esperar, mesmo sabendo que você não vem. 

Eu sou como eles sim, e você devia ter mais do que pavor, mas também nojo, de mim e não deles. Mas tudo bem, não me importo que tenha dito isso de brincadeira, não há nada que você possa dizer, verdade ou não, sobre mim que eu não pense mil vezes pior de mim mesmo. Também tenho pavor e nojo de mim. Se pudesse não me olharia no espelho. 

Não vou reclamar por ter ficado horas no ônibus quente, por não ter conseguido comprar comida ou por meu salário ter atrasado, ou por ter dívidas demais. Muita está bem pior do que eu. Só vou dormir. É isso, dormir. Não há muito que possa fazer nessa vida miserável. 

Então boa noite. Esse é seu sonho realizado: que eu me levantasse e trabalhasse, está feliz? Espero que sim, alguém deve ser feliz nessa vida maldita. 

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Não se preocupe, não há como eu me machucar mais, e nem que você me machuque. Eu não espero mais nada, então não há mais decepção. Eu não sonho mais nada, então não há desilusão. Há apenas a realidade que, dia após dia, se reafirma e se confirma. Como o sol quente do qual não há como fugir ou a dureza do chão em que piso. Não há. 

Então quando você diz que tem de me machucar, para além de uma impossibilidade, tudo o que voce faz é me lembrar como a realidade é dura e cruel, mas isso não machuca. Meu corpo já apodrece em vida porque, para todos os efeitos, eu já estou morto, sou cadáver adiado. O que talvez pudesse me ressuscitar são palavras que nos são impossíveis dizer, o que também não é problema, não desejo voltar â vida. 

E já abracei meu destino, como que espero a visita de Thanatos quando lhe direi "finalmente deixará esse miserável em paz!" ao vê-lo diante de mim veste escura, pele clara e olhar distante. Já o espero ansiosamente, mas sozinho, pela sua vinda.

Mesmo assim sobreveio uma tristeza sem igual, comp que tomado de uma angústia ancestral, séculos de homens, poetas a despejar em suas letras a sua melancolia solitária, homens que viveram absolutamente sozinhos, que eram lembrados apenas por ter uma belz voz ou por saberem algo que ninguém mais queria saber ou poderia dizer, mas que tinham no olhar uma desilusão brutal. 

E não é apenas o pessimismo de um domingo triste, acho que toda a minha vida é como se fosse um grande domingo triste, acontece que, às vezes, estou ocupado demais para perceber isso.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Aforismos sobre desconhecidos na multidão

Eu o vi pela última vezes, duas ou três semanas atrás, mas não prestei muita atenção. Estava bem desiludido para prestar atenção em alguma coisa. Mas hoje me sentei na frente dele no ônibus e, enquanto esperava alguns minutos que mais pareceram uma eternidade, fiquei prestando atenção em alguns detalhes dele. 

Me recordo que sempre me chamava atenção os olhos fundos, como se ele não dormisse há dias, mas esses sinais se atenuaram, e isso destacou a cor dos seus olhos, um castanho claro com um toque esverdeado, belíssimos. Seu rosto estava bem mais magro, e quando notei isso olhei com mais atenção as poucas partes do corpo que estavam à vista e, como pensei, ele realmente emagrecera muito. Bocejou algumas vezes enquanto o ônibus partia, não deve ter sido por ter melhorado o sono que as olheiras diminuiram, talvez ele tenha feito algum tratamento de pele.

Sequer notou a minha presença, talvez nem mesmo escutasse a música nos fones que usava, e deslizava rapidamente o dedo pelo celular. Fiquei surpreso em como, naquele calor todo, a pele dele nem parecia transpirar, enquanto eu pingava suor e a minha maquiagem se derretia. Certamente o universo tem seus preferidos. Se não estivesse num ônibus indo para o trabalho usando uma camiseta com o nome de algum lugar que conserta celular poderia muito bem estar estampando qualquer editorial sobre beleza masculina. Ele bocejou mais uma vez e eu tive de me levantar para descer no ponto do meu trabalho, enquanto ele continuava viagem. 

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Percebi, num relance, o quanto eu devo ser insuportavelmente chato. Me sentei longe de uma senhora que sempre desce no mesmo ponto que eu, e sempre vem desfiando o mesmo rosário de lamúrias sobre o trabalho pesado. Me faltou caridade, mas já preciso aguentar conversas demais que não posso fugir, e então desci e andei o mais rápido que pude. E foi aí que percebi o quanto eu mesmo devo ser insuportavelmente chato. Isso porque sempre reclamando, sempre negativo, pessimista ao extremo. E, como não vejo no futuro próximo, chance de mudança, porque não vejo no mundo nada que mereça mais do que meu absoluto desprezo, prevejo então um solitário e triste fim.

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O que há é sobretudo cansaço -
Nem disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

Álvaro de Campos

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Realmente imagino que não vá conhecer muitas pessoas isolado aqui nesse escritório, mas se pensar um pouco, é bem mais complicado que isso. Digamos, muito hipoteticamente, que conheça alguém que, por algum milagre do universo que por qualquer razão decidiu me dar uma chance, e então, o que faríamos a seguir? 

Não sou do tipo que sai todas as noites, tampouco aos fins de semana. Meus compromissos se resumem a Missas e reuniões com pessoas velhas e chatas demais para interessar a alguém. Tampouco tenho dinheiro para sair, beber, gastar com presentes. E menos ainda paciência... São tantos pormenores que imagino, por exemplo num simples churrasco de fim de semana, que penso na minha conta bancária e já começo a ficar enjoado. 

Relações humanas são complicadas. Ir ali na esquina custa caro, custa disposição, custa mais do que eu posso pagar. 

Mas também não preciso me preocupar com isso, afinal, com quem sairia? Quando nem sequer olham para mim quando passo pelas pessoas, quando sou eu a observar os transeuntes que poderiam estampar capas de revistas, quando ninguém daria por falta se, amanhã, eu não fizesse parte da multidão. 

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Delírios romanticamente realistas

"Em relação à gravidade do assunto, muito pouco se tem escrito sobre o suicídio, nem tem sido devidamente observado. Talvez não seja essa uma doença suscetível de observação.

O suicídio é efeito de um sentimento que denominaremos, se quiserem, a estima de si mesmo, para não confundi-lo com a palavra 'honra'. No dia em que o homem se despreza, no dia em que se vê desprezado, no momento em que a realidade da vida está em desacordo com as sua esperanças, mata-se, e presta assim satisfação à sociedade, perante a qual não quer ficar despojado de suas virtudes ou de seu esplendor." (Honoré de Balzac)

É como se eu esperasse por isso, pelo golpe final, por uma razão mais ou menos aceitável para morrer. Ficaria grato por um algoz que me desse cabo. Sabe quando, nas histórias, antes de um golpe brutal e devastador o inimigo sorri levemente deliciando-se da sua vitória já mais do que certa? Assim eu também sorrio a mim, prevendo a minha derrota. Não é nem pela derrota em si, mas pelo fato de talvez ela me desse um pretexto para morrer ou, melhor ainda, ela seria causa direta dessa morte. De braços abertos a única lágrima derramada por mim é de a alegria ao ver a espada do inimigo póxima a me cortar a cabeça. 

Encontrei o amor dos realistas, o amor que cega e que depois destrói todas as ilusões. Eu encontrei, não posso negar. O mesmo amor de Balzac, Flaubert e tantos outros que mostraram a brutalidade do enamorar-se e fazer tudo por amor. Encontrei a mais negra das pestes, encontrei a desesperança.

Me recordo de ter esperado por um salvador, e talvez por isso os remédios que, verifiquei depois, teriam sido fatais a qualquer um, me foram como uma doença forte mas que passou. Talvez tenham deixado algum sequela que futuramente terei que enfrentar mas, até o momento, só me veio o incômodo de não ter morrido, de ser obrigado a continuar. 

O meu salvador não veio. Até o último momento esperei que alguém mandasse mensagem, ou entrasse heroicamente em meu quarto, forçando-me o vômito. Delírios românticos. Se eu quiser terei de beber até vomitar, sozinho mesmo. Meus delírios são românticamente realisticos. Não ando a contemplar a água em que gostaria de me lançar, como Luciano de Rubempré, porque nesse calor infernal do verão catarinense tudo que sinto ao sair na rua é ódio. Mas até nesse infortúnio sou mediocre, não sou, em verdade, um daqueles desgraçados que, tamanhas ilusões perdidas lhe golpearam a alma, que desejam lançar-se ao fundo de rios, de modo tão elaborado que nem mesmo seu corpo voltaria à superficie, em aparência de horrenda morte.

Por isso esperei pelo pior, e nem o pior sobreveio em mim, não, ele se esqueceu de mim, em minha mediocridade. Nem mesmo uma morte patética o destino me deu. Apenas amores não correspondidos e pessoas banais. Esperei pelo pior, e nem isso essa vida mediocre me deu. Nem mesmo posso alegar um destino terrível para justificar o desespero de me tirar a própria vida.

"O amor, pensava, devia chegar de repente com grande estrondo e fulgurações - furação dos céus que cai sobre a vida, transtornando-a, arranca as vontades como folhas e arrasta para o abismo o coração inteiro." 
Gustave Flaubert

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

O Roteiro Real


Ó caríssimos poetas, indivualidades subjetivas e demais homens de sensibilidade aflorada, permitam que sente com vocês para tomar de alguns copos, mas sem tomar partido das rodas de declamação que se seguem. Permitam que eu contribua com a minha apatia, que eu traga apenas em mãos a profundidade de não sentir nada por algum tempo. 

Vinha me sentindo orgulhoso por não imitar Balzac como acabo fazendo toda vez que mergulho em algum livro mais denso por um tempo maior. Preciso apenas fazer um breve excurso e dizer que "Curso público e gratuito das contas de recâmbio para os que não estão em condições de pagar as suas promissórias" é o melhor nome para um capítulo que esse verme endividado por besteiras consegue se lembrar. Um brinde aos gastos inúteis que eu achei absolutamente úteis, justos e necessários e que algum bom deus da generosidade pague a conta! 

São já 2h55 da madrugada, numa cidade que não está bêbada, mas que dorme profundamente seu cansaço infindável. Eu aproveito os últimos dias de um episódio eufórico e da energia extra de um energético, que já não faz efeito como alguns meses atrás. Assim como meus remédios já não funcionam como antes. Já vi um filme inteiro, vários episódios de série, sem realmente prestar atenção em nenhum deles. Li alguns capítulos do Evangelho mais cedo, contos eróticos, posts idiotas... Nada disso conseguiu capturar minha atenção, a única coisa em que consigo pensar é num tesão crescente e nas minhas hemorróidas. Talvez hoje eu conseguisse acompanhar aquele garoto louro e com um alto nível de TDAH, e eu talvez eu implorasse pra ele me comer até que me cansasse. 

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Novamente lutando para não ser engolido pela profusão de palavras que me rodeiam. Minha música interior carece de ficar mais alta do que nunca. Não posso deixar que o mero cansaço mental me faça desistir de tudo o mais.

Bom, isso não ficou claro o suficiente. Não é que eu tenha medo de perder alguma esperança elevada, não, mas digo também referente as pequenas coisas. Não quero deixar que o cansaço apenas me faça querer chegar em casa e dormir, quero ao menos conseguir caminhar um pouco antes disso, para que, ao fim, a noite não seja tão simples e sem graça, já que tudo o mais parece triste e sem graça. 

Acabo sempre cansado demais, ansioso por finalmente consegui relaxar, na minha cama, tomando uma taça de vinho ou sei lá o que mais... Perdi a conta de quantos remédios tomei ontem, sei que, lá pelas tantas, já estava tonto e não conseguia dizer nada, mas ainda prestava atenção na música e com a mente desperta, um inferno. 

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Hoje já me veio uma necessidade de tranquilidade, de me sentar na varanda, com uma bebida ao lado e sentir a brisa antes de dormir. Não tenho conseguido fazer isso, ao fim do dia o cansaço é demais, nem consigo mais raciocinar direito sobre as séries ou as aulas que assisto, o corpo e a mente em estado permanente de exaustão e, com isso se vai embora toda e qualquer vontade de relaxar, já que o corpo necessita de um tipo de descanso desesperado que, por mais horas que durma, nunca o descansa realmente. 

Num paralelo bobo mas que me veio nesse momento é foi o sentimento que tive ao ver uma série japonesa que estreou recentemente. Perfect Propose apresenta um protagonista que se encontra em estado de completa exaustão há anos. Sua primeira cena é final conseguindo um tempo pra observar o belo céu noturno, deitado no chão no meio da rua. Ao reencontrar um antigo amigo que ele não via há mais de dez anos e que se convida para morar com ele, invocando uma antiga promessa que ambos fizeram na infância de se casarem um dia. 

Depois desse absurdo argumento inicial eles começam a morar juntos e, em pouco tempo, a qualidade de vida do protgonista dá um salto. Antes ele sofria de uma insonia que o deixava sempre cansado, o que já impactava diretamente no seu rendimento no trabalho. Sua alimentação sempre fora precária: com pouco tempo e disposição ele apelava para comidas prontas e suplementes que, logo perderam o sabor e o efeito, mas agora ele tem um parceiro que cozinha todas as refeições que ele mais gosta. Que conversa com ele, que o apoia. Esse ambiente acolhedor o torna mais caloroso também. 

É bonito ver como ele recupera a cor, como passa a se cuidar mais, e vai então deixando de lado aquela apatia de antes, quando prestes a sofrer um burnout. 

Mas é claro que eu sou maduro o suficiente para saber que isso não passa de um roteiro, e que a vida encontra sim o seu fim na exaustão. 

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

De um dos princípios dos escrúpulos

Minha dúvida na verdade é um pedido de esclarecimento quanto a uma partezinha do livro dos Escrúpulos.

Parte III - Princípios dos escrúpulos:

"I. O nosso próprio fundo é, muitas vezes, a única fonte do escrúpulo, que nasce ora [...] da leitura de livros teológicos ou demasiadamente eruditos, que só deixam no espírito aquilo que pode embaraçar, embora lisonjeando o amor-próprio que pretende compreender tudo e tudo saber."

De algum modo eu me enxerguei nessa parte, só que queria te pedir que destrinchasse mais isso. Sinto que realmente tenho essa ideia de pretender compreender tudo e tudo saber, que busco sim livros teológicos e tal. Não entendi a parte do lisonjeando o amor-próprio. Talvez se relacione à vaidade.

Pode levar o tempo que precisar, fique tranquilo. Só quero compreender por quê isso me tocou.

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Para entender o que ele disse, lembre daquelas lições de vida intelectual do A. D. Sertillanges que a vida de estudos, antes de qualquer coisa, visa ao crescimento espiritual do homem. No entanto, por desordenada a vontade e o meio em que isso é feito ela pode acabar tendo efeitos negativos. Tomemos o primeiro exemplo: um jovem ali na casa da sua idade, entre 16 e 25 anos, construindo sua rede de relacionamentos ao mesmo tempo em que estuda e concilia universidade, vida pastoral, amigos, família... Essa é a fase da aceitação social, que nem sempre é desejada no sentido de pertença mas também se aproveita do sentido de exclusão. Essa alma então quer primeiro tornar as outras tão interessadas por aquilo como ela, mas como o resultado é negativo e ela é excluída do meio, passa a desejar o contrário: que sua exclusão seja sinal de progresso. Aqui faz o raciocínio "se eles estão contra mim é porque eu estou certo" (o que depende de muitas outras coisas pra ser verdade ou não).

Mas a primeira coisa que essa alma faz é buscar refúgio na doutrina correta: conselhos corretos de pessoas, diretores piedosos, e aqui ela esta coberta de razão. Mas a forma como a ajuda dessas pessoas vai ser recebida por ela é que é complicada. Vou tomar seu exemplo como ponto inicial e fazer um exercício imaginativo a seguir: ao descobrir o peso da impureza, o homem deveria, por óbvio, buscar a longa purificação da memória para se livrar desse pecado. Por um lado ao ler coisas sobre a pureza ele pode tomar como exemplos a comporem uma longa lista a ser cumprida a vida toda, de purificação. Aqui as leituras espirituais ajudariam o homem porque ela formaria um piso firme, um novo aposento, onde ele poderia entrar e dormir sem interferência de imagens exteriores que o desviem do objetivo.

Mas lembre que falei da influência do meio: a vontade de ser aceito, ou rejeitado, mexe com a vaidade, e então o sujeito começa a rodear-se de práticas e coisas que lhe dão validação externa de que ele pertence ao grupo dos puros, mas note que o foco dele já não é tanto a transformação interior mas, por meio da exterior se aproximar de outros que o ajudem. Mas isso o faz se afastar cada vez mais porque as leituras espirituais, dirigidas a pessoas mais maduras, assim como as letras da teologia, destinadas a maturidade, onde elas encontram na alma um piso firme onde se assentam e passam a construir uma catedral.

Então sem isso, sobra apenas o amor próprio, a vaidade de se sentir bem ao adquirir conhecimentos que pode usar parar mostrar aos outros que vive assim ou daquele jeito ou, e aqui entra propriamente o perigo maior, enquanto tenta equilibrar a vida social aparente com a vida interior séria, as orientações desses livros se tornam só confusão, pois não acharam o ambiente onde aquele conteúdo assentar na alma e trabalhar. Torna-se então o homem que queria purficar-se numa nova mulher de César: o retrato da decência, não conforme uma moral reta mas conforme qualquer acepção de moral que o seu meio tenha.

Lembra mais ou menos da ordem das disciplinas né? onde se encaixa a química, a física, a história, ambas embaixo da física e todas debaixo da metafísica, E da metafísica se sobe a teologia. Mas até mesmo antes desse conhecimento há ainda um outro mais basal ainda: experiência de vida. A experiência de vida é o rio onde se mexem as águas da sabedoria e para onde distribuem os rios que irrigam as diversas flores, flor de castidade, de esperança, de fé... Mas o rio precisa encher-se, com a experiência humana. Mas a nossa é muito limitada, breve, e somos ocupados. Mas quando vivemos a vida de outros, em livros que transcendem séculos, em ensinamentos e pessoas baixas, de homens santos, de assassinos horríveis, mentirosos gananciosos, heróis virtuosos, sábios... Você vive cem, duzentas vidas de pessoas imensamente maiores que nós, quer em bondade, santidade ou malícia.

Aí, formado o rio, e sem a preocupação do parecer puro ou conservador ao outro, porque você se confessa a Deus, e só a Ele seu conhecimento vale algo. O conhecimento dos náufragos, o barco foi destruído, nessa tábua que agarrei eu peço a Deus que me salve, mas estou de bermudas, será que peço pra me salvar e trazer calças? Ou, se sobreviver, devo nunca mais usar bermuda, por que elas indicam imaturidade? O absurdo explica por si. Se estou prestes a morrer pouco importa se uso bermudas ou se estou nu.

Então a leitura de certos livros espirituais sem esse preparo da literatura, que leva anos, e verdadeiramente nunca termina, ele constantemente dá a você o local apropriado para que aquele conhecimento se forme de verdade. Conhecida a verdade, os escrúpulos somem, como Cristo que jantava com cobradores de impostos sem se importar que se diriam que ele era como eles, porque a sua justiça era diante de Deus e não do homem.

Então enquanto essas leituras só forem gerando mais e mais preocupações e não indicando o caminho, é porque na verdade estamos lendo para, em algum momento, dizer aos amigos que se leu, com esse único propósito, e então os escrúpulos atacariam, afinal está cheio de medo do que os outros vão dizer.

Portanto a vida intelectual consiste em, na sua confidência que só Deus conhece, você apresentar suas dúvidas e, quando as respostas chegarem você pode ficar completamente em paz por saber que você e Deus sabem, se ele permitir que você diga aos outros, bom aí já é graça extraordinária.

Lembre-se então da prece que nos ensinou o Olavo de Carvalho: "Deus eu quero saber, mesmo que não possa contar a ninguém, mas tu sabe de tudo já, então me ensine por favor." Confessando humildemente a sua ignorância.

Daí o peso dos escrúpulos: querer fazer o certo, mas ao mesmo tempo querer que os outros vejam isso. Queira conhecer, ainda que nem possa dizer, e então se purifica os escrúpulos porque ele não terá o que atacar pela via da vaidade

esses desejos de aprender tudo, latim pra ler a vulgata, hebraico, grego...Isso tudo acaba mostrando aos outros que, pela quantidade de ocupações elevadas e nobres aquela alma não é mais nobre. Mas aqui são exemplos apenas. Se, por outro lado: quero aprender grego pra ler a patrística, mesmo sem dizer pra ninguém, porque aquele conhecimento de séculos nela contida lhe é favorável, aí sim é busca pelo conhecimento de verdade.

Porque coisas como conhecimento, pecado, graça...  Essas coisas são sempre entre você e Deus, então ele que deve se impressionar, e não aqueles que nos rodeiam e, não raro, se impressionam apenas com o que tem pouca ou nenhuma importância.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Aforismos sobre nada

"Encontre significado. Distinguir a melancolia da tristeza. Sair para uma caminhada. Opte pela privacidade e solidão. Isso não o torna antissocial ou faz com que você rejeite o resto do mundo. Mas você precisa respirar. E você precisa ser."

Albert Camus

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Acordamos cedo, voltamos depois de escurecer, tão cansados que não conseguimos fazer mais nada antes de cair de sono e cansaço. E, se algum dia você parece não estar bem ainda reclamam que você não está sendo produtivo o suficiente. E a esse inferno querem que sejamos gratos.

Admito que hoje só gostaria de poder voltar para minha cama, ligar o ventilador para melhorar um pouco a sensação de abafamento extremo e dormir. Mas isso não será possível, e estou consciente o suficiente para saber também que isso não seria bom, afinal o ar daquela casa se tornou venenoso para mim, então tudo o que posso fazer é justamente esperar que o dia passe lentamente, ir para aquela reunião, e depois retornar para casa, cansado o suficiente para não pensar em mais nada antes de mergulhar lentamente na demência e adormecer. 

Meu café esfriou bem rápido. Talvez consiga ver um ou dois episódios antes de dormir. 

Não estou exatamente existindo nesses dias, apenas enrolo um pouco, espero as horas passarem e o meu corpo ficar cansado, do calor e dos longos trajetos pela cidade...

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Tive uma ciclagem mais branda nos últimos dias, nem percebi que estava ficando eufórico até perder o sono ontem a noite, e girar várias vezes sem conseguir desligar a cabeça, seja dos problemas do trabalho, de uma palestra que vou dar em algumas horas, de uma necessária faxina no meu quarto ou nos episódios de uma nova série. 

Sem grandes expectativas ou perspectivas, é uma longa ressaca na verdade, e meu corpo nem se recuperou ainda do golpe do fim de semana. Tenho olhado tudo ao meu redor com pessimismo e tédio. 

Quanto barulho esse silêncio que não cessa. As vozes continuam soando, soando, parece que estou no meio daqueles sinos gigantescos golpeados com violência, mas não escuto realmente o que me dizem, sorrio e aceno ocasionalmente, e claro que o percebem, mas eu também não me importo.

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Por quê?

Porquê. Ao mesmo tempo em que se pergunta obssesivamente por que não é amado, o sujeito apaixonado vive na crença de que, na verdade, o objeto amado o ama, mas não o diz.

Roland Barthes