sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Aforismos sobre desconhecidos na multidão

Eu o vi pela última vezes, duas ou três semanas atrás, mas não prestei muita atenção. Estava bem desiludido para prestar atenção em alguma coisa. Mas hoje me sentei na frente dele no ônibus e, enquanto esperava alguns minutos que mais pareceram uma eternidade, fiquei prestando atenção em alguns detalhes dele. 

Me recordo que sempre me chamava atenção os olhos fundos, como se ele não dormisse há dias, mas esses sinais se atenuaram, e isso destacou a cor dos seus olhos, um castanho claro com um toque esverdeado, belíssimos. Seu rosto estava bem mais magro, e quando notei isso olhei com mais atenção as poucas partes do corpo que estavam à vista e, como pensei, ele realmente emagrecera muito. Bocejou algumas vezes enquanto o ônibus partia, não deve ter sido por ter melhorado o sono que as olheiras diminuiram, talvez ele tenha feito algum tratamento de pele.

Sequer notou a minha presença, talvez nem mesmo escutasse a música nos fones que usava, e deslizava rapidamente o dedo pelo celular. Fiquei surpreso em como, naquele calor todo, a pele dele nem parecia transpirar, enquanto eu pingava suor e a minha maquiagem se derretia. Certamente o universo tem seus preferidos. Se não estivesse num ônibus indo para o trabalho usando uma camiseta com o nome de algum lugar que conserta celular poderia muito bem estar estampando qualquer editorial sobre beleza masculina. Ele bocejou mais uma vez e eu tive de me levantar para descer no ponto do meu trabalho, enquanto ele continuava viagem. 

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Percebi, num relance, o quanto eu devo ser insuportavelmente chato. Me sentei longe de uma senhora que sempre desce no mesmo ponto que eu, e sempre vem desfiando o mesmo rosário de lamúrias sobre o trabalho pesado. Me faltou caridade, mas já preciso aguentar conversas demais que não posso fugir, e então desci e andei o mais rápido que pude. E foi aí que percebi o quanto eu mesmo devo ser insuportavelmente chato. Isso porque sempre reclamando, sempre negativo, pessimista ao extremo. E, como não vejo no futuro próximo, chance de mudança, porque não vejo no mundo nada que mereça mais do que meu absoluto desprezo, prevejo então um solitário e triste fim.

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O que há é sobretudo cansaço -
Nem disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

Álvaro de Campos

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Realmente imagino que não vá conhecer muitas pessoas isolado aqui nesse escritório, mas se pensar um pouco, é bem mais complicado que isso. Digamos, muito hipoteticamente, que conheça alguém que, por algum milagre do universo que por qualquer razão decidiu me dar uma chance, e então, o que faríamos a seguir? 

Não sou do tipo que sai todas as noites, tampouco aos fins de semana. Meus compromissos se resumem a Missas e reuniões com pessoas velhas e chatas demais para interessar a alguém. Tampouco tenho dinheiro para sair, beber, gastar com presentes. E menos ainda paciência... São tantos pormenores que imagino, por exemplo num simples churrasco de fim de semana, que penso na minha conta bancária e já começo a ficar enjoado. 

Relações humanas são complicadas. Ir ali na esquina custa caro, custa disposição, custa mais do que eu posso pagar. 

Mas também não preciso me preocupar com isso, afinal, com quem sairia? Quando nem sequer olham para mim quando passo pelas pessoas, quando sou eu a observar os transeuntes que poderiam estampar capas de revistas, quando ninguém daria por falta se, amanhã, eu não fizesse parte da multidão. 

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