quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Reflexões sobre a banalidade do meio

Não sei nem por onde começar a loucura que tem sido. Nem mesmo dois dias inteiros dormindo permitiram que eu me recuperasse completamente, e ainda cansado eu já me deparei com uma nova leva de problemas que exigem demais de mim, e mais uma vez não perceberam a minha necessidade. Há meses venho pedindo por ajuda, há meses mostrando que sozinho eu não tenho dado conta. Mas ninguém parece se importar. Que se dissipe a minha vida sem que ninguém nem mesmo se dê conta. O som alto, as conversas, todos apressados, e eu só queria poder dormir. 

Acordei, tomei banho e peguei o ônibus com a mesma disposição que alguém vai o enterro da mãe. Além disso, do cansaço e de um incômodo com o outro quase permanente, some a isso a experiência, horrenda, de presenciar com a brutalidade de quem vê um cão sendo pisoteado, a afetação de pessoas que, já incapazes de perceber a realidade que as cerca, ou aquilo que lhes fala a sua consciência profunda, prostituiram a sua personalidade em detrimento do meio. 

Não importa o que se diga ou que eles vejam: tudo sera julgado segundo os cânones da moral mais baixa e imediata que as suas mentes podem conceber. Não me refiro nem memso ao julgamento antecipado da conduta sexual desta ou daquela pessoa, isso já seria exigir bondade demais: eles julgam conforme e apenas com base na aparência que lhes mostra, no mais superficial, mutável e cambiante que há no homem e, por isso mesmo, naquilo que no homem tem menos ou nenhum valor. 

Um homem que se julga o baluarte da decência e da elegância que se põe a consertar o botão do terno de um segurança, ou os muitos comentários sobre as cores dos vestidos das mulheres num evento noturno de verão onde, aparentemente, é proibido usar branco ou, last not least, comentários sobre como homens de calça justa são afeminados mas homens de calça folgada são desleixados porque isso lhes permite que engordem. 

Essas pessoas perderam toda e qualquer liberdade das suas inteligências. São incapazes de perceber, ou melhor, de dizer o que percebem. Tudo é expresso segundo um esquema fixo de emoções repetitivas: certo grupo de pessoas lhes dão o conceito de elegante, logo correto e digno de atenção. Então, uma vez estabilizado esse padrão tudo e qualquer coisa que fuja a essa, digamos, estética européia velha e com cheiro de mofo regada a espumante e vinho, é então considerado inferior. 

Finjo nem mesmo ouvir os comentários dirigidos a mim sobre como meus cabelos andam bagunçados, minha barba grande demais ou como engordei, como se eu não tivesse espelho em casa.  

O que assusta é como são incapazes de raciocinar um palmo para fora do pequeno circulo que eles conhecem, tudo o que passa disso é estranhez ou falta de dignidade, como se a existência humana nã fosse repleta de nuances de significados que, passando pela aparência física, que é apenas isso e não muito mais, desemboca num oceano de virtudes, vícios, costumes transmitidos pela sociedade, influência do clima e uma outra infinidade de esquemas que nem conseguiria enumerar, senão que existem ciências inteiras que tentam explicar esse ou aquele comportamento humano e tomar a vestimenta de alguém como ponto pacífico no julgamento do ser humano integral é, em si, sinal de uma razão ensismesmada e prostituída. 

Todo ser humano, ou pelo menos os normais, têm em si alguma característica admirável e algumas desprezíveis. O inverso também acontece. O Wagner que compôs dezenas de peças incríveis ou o Picasso que enche os olhos daqueles que visitam as galerias de todo o mundo eram pessoas desprezíveis sob muitos pontos de vista: pegavam dinheiro sem devolver e ainda denegriam os amigos que lhes favoreciam, comiam suas mulheres ou traíam as próprias. Nem por isso suas obras deixam de ser admiráveis, mas é justo o contrário, é porque suas vidas eram permeadas dessas nuances de que falei que eles conseguiam criam coisas tão incríveis que, não raras vezes, revelam justamente a riqueza interior de seus criadores, seja da sua genialidade ou dos comportamentos desprezíveis por constraste ou exagero. 

Entender que todo mundo tem em si algo de divino ao mesmo tempo que tem bastante de malicioso faz parte da experiência humana normal. Em todo tempo as pessoas sabiam que possuiam coisas em que deveriam melhorar e outras que deveriar conservar. O chinês médio confucionista ou o filósofo escolástico tinham exatamente a mesma concepção do homem, diferenciando apenas as formas metafíscias nas quais se apoiavam essas concepções. 

O homem de hoje, no entanto, parece ser uma reencarnação de Hegel, crendo ser ele mesmo a personificação da perfeição do espírito humano em sua mais prístina pureza. Julga todos do alto do edifício semântico do seu grupinho e perde tempo em discussões sem nenhum fundamento enquanto o homem real, levanta cedo, veste o que tem e sai pra tentar ganhar a comida dos filhos. Não tem tempo pra pensar na cor da estação, nem sabe o que é isso, e mais grave ainda: sabe ele mesmo que tem em si coisas que poderia melhorar, como quando alguém acredita que se estudar mais trará um futuro melhor aos filhos ou, ou ainda que têm coisas que deveria conservar, como a própria força de vontade em trabalhar. 

Esse univervo de nuances é imperceptível a todos esses que se fecharam em suas próprias e pobres concepções imediatas. 

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