terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

De um dos princípios dos escrúpulos

Minha dúvida na verdade é um pedido de esclarecimento quanto a uma partezinha do livro dos Escrúpulos.

Parte III - Princípios dos escrúpulos:

"I. O nosso próprio fundo é, muitas vezes, a única fonte do escrúpulo, que nasce ora [...] da leitura de livros teológicos ou demasiadamente eruditos, que só deixam no espírito aquilo que pode embaraçar, embora lisonjeando o amor-próprio que pretende compreender tudo e tudo saber."

De algum modo eu me enxerguei nessa parte, só que queria te pedir que destrinchasse mais isso. Sinto que realmente tenho essa ideia de pretender compreender tudo e tudo saber, que busco sim livros teológicos e tal. Não entendi a parte do lisonjeando o amor-próprio. Talvez se relacione à vaidade.

Pode levar o tempo que precisar, fique tranquilo. Só quero compreender por quê isso me tocou.

X

Para entender o que ele disse, lembre daquelas lições de vida intelectual do A. D. Sertillanges que a vida de estudos, antes de qualquer coisa, visa ao crescimento espiritual do homem. No entanto, por desordenada a vontade e o meio em que isso é feito ela pode acabar tendo efeitos negativos. Tomemos o primeiro exemplo: um jovem ali na casa da sua idade, entre 16 e 25 anos, construindo sua rede de relacionamentos ao mesmo tempo em que estuda e concilia universidade, vida pastoral, amigos, família... Essa é a fase da aceitação social, que nem sempre é desejada no sentido de pertença mas também se aproveita do sentido de exclusão. Essa alma então quer primeiro tornar as outras tão interessadas por aquilo como ela, mas como o resultado é negativo e ela é excluída do meio, passa a desejar o contrário: que sua exclusão seja sinal de progresso. Aqui faz o raciocínio "se eles estão contra mim é porque eu estou certo" (o que depende de muitas outras coisas pra ser verdade ou não).

Mas a primeira coisa que essa alma faz é buscar refúgio na doutrina correta: conselhos corretos de pessoas, diretores piedosos, e aqui ela esta coberta de razão. Mas a forma como a ajuda dessas pessoas vai ser recebida por ela é que é complicada. Vou tomar seu exemplo como ponto inicial e fazer um exercício imaginativo a seguir: ao descobrir o peso da impureza, o homem deveria, por óbvio, buscar a longa purificação da memória para se livrar desse pecado. Por um lado ao ler coisas sobre a pureza ele pode tomar como exemplos a comporem uma longa lista a ser cumprida a vida toda, de purificação. Aqui as leituras espirituais ajudariam o homem porque ela formaria um piso firme, um novo aposento, onde ele poderia entrar e dormir sem interferência de imagens exteriores que o desviem do objetivo.

Mas lembre que falei da influência do meio: a vontade de ser aceito, ou rejeitado, mexe com a vaidade, e então o sujeito começa a rodear-se de práticas e coisas que lhe dão validação externa de que ele pertence ao grupo dos puros, mas note que o foco dele já não é tanto a transformação interior mas, por meio da exterior se aproximar de outros que o ajudem. Mas isso o faz se afastar cada vez mais porque as leituras espirituais, dirigidas a pessoas mais maduras, assim como as letras da teologia, destinadas a maturidade, onde elas encontram na alma um piso firme onde se assentam e passam a construir uma catedral.

Então sem isso, sobra apenas o amor próprio, a vaidade de se sentir bem ao adquirir conhecimentos que pode usar parar mostrar aos outros que vive assim ou daquele jeito ou, e aqui entra propriamente o perigo maior, enquanto tenta equilibrar a vida social aparente com a vida interior séria, as orientações desses livros se tornam só confusão, pois não acharam o ambiente onde aquele conteúdo assentar na alma e trabalhar. Torna-se então o homem que queria purficar-se numa nova mulher de César: o retrato da decência, não conforme uma moral reta mas conforme qualquer acepção de moral que o seu meio tenha.

Lembra mais ou menos da ordem das disciplinas né? onde se encaixa a química, a física, a história, ambas embaixo da física e todas debaixo da metafísica, E da metafísica se sobe a teologia. Mas até mesmo antes desse conhecimento há ainda um outro mais basal ainda: experiência de vida. A experiência de vida é o rio onde se mexem as águas da sabedoria e para onde distribuem os rios que irrigam as diversas flores, flor de castidade, de esperança, de fé... Mas o rio precisa encher-se, com a experiência humana. Mas a nossa é muito limitada, breve, e somos ocupados. Mas quando vivemos a vida de outros, em livros que transcendem séculos, em ensinamentos e pessoas baixas, de homens santos, de assassinos horríveis, mentirosos gananciosos, heróis virtuosos, sábios... Você vive cem, duzentas vidas de pessoas imensamente maiores que nós, quer em bondade, santidade ou malícia.

Aí, formado o rio, e sem a preocupação do parecer puro ou conservador ao outro, porque você se confessa a Deus, e só a Ele seu conhecimento vale algo. O conhecimento dos náufragos, o barco foi destruído, nessa tábua que agarrei eu peço a Deus que me salve, mas estou de bermudas, será que peço pra me salvar e trazer calças? Ou, se sobreviver, devo nunca mais usar bermuda, por que elas indicam imaturidade? O absurdo explica por si. Se estou prestes a morrer pouco importa se uso bermudas ou se estou nu.

Então a leitura de certos livros espirituais sem esse preparo da literatura, que leva anos, e verdadeiramente nunca termina, ele constantemente dá a você o local apropriado para que aquele conhecimento se forme de verdade. Conhecida a verdade, os escrúpulos somem, como Cristo que jantava com cobradores de impostos sem se importar que se diriam que ele era como eles, porque a sua justiça era diante de Deus e não do homem.

Então enquanto essas leituras só forem gerando mais e mais preocupações e não indicando o caminho, é porque na verdade estamos lendo para, em algum momento, dizer aos amigos que se leu, com esse único propósito, e então os escrúpulos atacariam, afinal está cheio de medo do que os outros vão dizer.

Portanto a vida intelectual consiste em, na sua confidência que só Deus conhece, você apresentar suas dúvidas e, quando as respostas chegarem você pode ficar completamente em paz por saber que você e Deus sabem, se ele permitir que você diga aos outros, bom aí já é graça extraordinária.

Lembre-se então da prece que nos ensinou o Olavo de Carvalho: "Deus eu quero saber, mesmo que não possa contar a ninguém, mas tu sabe de tudo já, então me ensine por favor." Confessando humildemente a sua ignorância.

Daí o peso dos escrúpulos: querer fazer o certo, mas ao mesmo tempo querer que os outros vejam isso. Queira conhecer, ainda que nem possa dizer, e então se purifica os escrúpulos porque ele não terá o que atacar pela via da vaidade

esses desejos de aprender tudo, latim pra ler a vulgata, hebraico, grego...Isso tudo acaba mostrando aos outros que, pela quantidade de ocupações elevadas e nobres aquela alma não é mais nobre. Mas aqui são exemplos apenas. Se, por outro lado: quero aprender grego pra ler a patrística, mesmo sem dizer pra ninguém, porque aquele conhecimento de séculos nela contida lhe é favorável, aí sim é busca pelo conhecimento de verdade.

Porque coisas como conhecimento, pecado, graça...  Essas coisas são sempre entre você e Deus, então ele que deve se impressionar, e não aqueles que nos rodeiam e, não raro, se impressionam apenas com o que tem pouca ou nenhuma importância.

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