quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Fim de Ano e Alquimia

"A Alquimia é uma ciência de compreensão, decomposição e recomposição da matéria, contudo, não é uma prática onipotente, pois não se pode criar uma coisa do nada. Para se obter algo é preciso oferecer em troca uma coisa de valor equivalente, esse é o princípio da Alquimia: a Lei da Troca Equivalente!" (Hiromu Arakawa)

Eu andei pensando durante todo este dia em algo que me ajudasse a definir o que foi esse ano, um símbolo, uma matriz de intelecções que refletisse de algum modo o completo caos que se deu dentro de mim nos últimos doze meses. Não é como se fizesse uma retrospectiva, aliás esse é um ano que eu prefiro esquecer, mas algo como um exame de consciência, uma revisitação a certos pontos que, esses sim, valem a pena manter gravados no meu ser. 

Mas, enquanto pensava, a única palavra que me veio a mente foi AMOR. Sim, clichê e melancólico, mas convenhamos, que mais alguém como eu poderia pensar se, apesar de todos os apesares desse ano, esse Amor foi o responsável por me manter vivo, dia após dia, mesmo quando tudo me dizia que seria melhor não estar vivo? 

Foi esse Amor, que aqui escrevo com A maiúsculo porque ele não é um sentimento, mas uma pessoa, melhor ainda: pessoas, mesmo que se colocou ao meu lado, trazendo um pouco de luz, o necessário, para crescer e continuar cada dia, que me abriu os olhos. Me mostrou os amigos que ficaram ao meu lado quando tudo se desmoronava. Quantas risadas, quantas músicas cantadas no improviso no meu quarto ou no quintal, quantas garrafas de coquetel, quantos filmes, quantas noites de reflexão... Se não fosse por essas coisas esse ano seria apenas cinza e frio mas, pelo contrário, todas as dificuldades não diminuíram as cores daqueles que me cercavam, mesmo quando tudo o mais continuava cinza.

A minha melhor amiga veio morar aqui em casa, os meus outros amigos, embora em número bem reduzido se comparado ao batalhão que vinha aqui antes, se fizeram tão presentes que eu sequer senti a falta dos outros que se foram. E eu não sinto nada de ruim pelos que se foram, antes disso, sou grato a cada um deles por tudo o que fizeram por mim, inclusive quando me deixaram, me mostrando que eu deveria caminhar sozinho, com minhas próprias pernas, isso é também um ensinamento de grande valor pelo qual serei eternamente grato, tendo o nome de cada um escrito em meu coração! Mas, voltando a esse ano, nós ficamos juntos, todos passamos por dificuldades juntos. Problemas com relacionamento, pais, emprego, e até mesmo a pandemia em si. Mas nós conseguimos sobreviver, nem tão inteiros e muitos menos intactos, é verdade, mas sobrevivemos e, o mais importante: juntos!

Maria e Cadu, os dois vulcões constantemente em erupção, implacáveis numa combinação de companheirismo e sinceridade brutal foram os responsáveis por me trazer de volta ao realismo muitas vezes perdido por entre a névoa dos devaneios, quando sonhar sozinho parecia mais agradável do que lutar. Ambos num ímpeto de querer o movimento, de querer mudar as coisas, seja numa noite de filme e massas ou numa tarde de bebidas e músicas. É o elemento mutável da minha alquimia, o enxofre, a constante transformação. E eu amo vocês!

José, como dizer sem soar piegas? Como não amar a gentileza, a delicadeza, o altruísmo? Como não amar? Ele tem um poder que eu nem sei se ele já percebeu, mas é capaz de curar um coração partido e as dores mais horríveis com um abraço, com um sorriso ou até com uma piada besta. Mesmo escondendo por trás do sorriso as dores que ele sente o seu sorriso não é falso, antes disso, é justo o sorriso que mostra aos outros que eles devem continuar lutando, persistindo. Ele é o elemento fixador do meu círculo de transmutação, o mercúrio, o que no meio do caos oferece um porto seguro, um lugar firme, um peito florido entre os amplexos do amado. Uma de minhas músicas favoritas desse ano (My Oxygen, do Supanut) fala sobre uma pessoa que trouxe amor e calor a uma pessoa que já havia perdido as esperanças e a capacidade de ver a vida como algo diferente de um grande vazio, e foi exatamente isso que ele fez por mim, se tornando tão vital, tão necessário quanto o oxigênio que eu respiro. E eu amo você, mais do que seria capaz de expressar!

Max é o ar, imprevisível, que sopra como brisa ou como vendaval, é aquele que vem e vai mas, mesmo à distância não perde seu significado e nem sua força. Se a brisa não toca o meu cabelo aqui eu tenho certeza que um furacão está em algum outro lugar. Ele soube, mesmo sem saber, quando ficar em silêncio ao meu lado e quando me agitar, quando me despertar se necessário. E eu amo você coisinha!

Por fim, a surpresa: quem diria que um aluno se tornaria um de meus melhores amigos? Igor e eu conversamos praticamente todos os dias desse ano, passando da relação profissional para a de uma amizade sincera que compartilha momentos felizes e tristes, que ficou muitas e muitas noites até quase o dia clarear conversando sobre sabe-se lá o quê. Uma amizade à distância, é verdade, mas que não perdeu seu encanto. Dela nasceu um sentimento verdadeiro, um carinho que não poderia expressar de outra forma senão num abraço apertado. Só espero que possamos mudar isso e nos fazer presentes também lado a lado, sem figuras de linguagem, um do outro. E eu te amo nego. 

E esses elementos, unidos uns aos outros pelas linhas que permitem a sua reação, são capazes de dar origens à novas coisas, o resultado do processo alquímico. Como dizem as palavras sagradas de que quem encontrou um amigo encontrou um tesouro, eu achei o meu, ou pelo menos parte dele. Quando pensamos em tesouro pensamos em pedras preciosas mas, na alquimia, o sal representa o cristal, o elemento final, resultado dos processos de compreensão, decomposição e recomposição, aquilo que resulta do mutável e do imutável. Me vejo carregando comigo um punhado de sal, representando esses cristais que brilharam e iluminaram a minha vida durante esse ano tenebroso que, ao lado deles, se tornou até leve e suportável.

Quantas vezes fugimos do medo e da solidão em nossas noites de filmes improvisadas de qualquer jeito na minha sala apertada? Quantas vezes saímos de carro praticamente sem rumo procurando alguma coisa pra fazer só para não encarar algo que era grande demais em casa ou até mesmo dentro de nós? Isso só foi possível porque entregamos os nossos corações e, em troca, recebemos os corações daqueles que amamos, essa foi a nossa troca equivalente, capaz de abrir a Porta da Verdade. 

Isso é o que tenho a dizer, apenas: Obrigado! Pelo carinho, pelo apoio, pelo Amor, que nos uniu e nos une, Amor que permitiu que ficássemos juntos e vivos, nos vários sentidos da palavra vivo, mesmo com tantas adversidades e desilusões. Obrigado por serem a minha luz!

"Em noite tão ditosa, e num segredo em que ninguém me via, nem eu olhava coisa sem outra luz nem guia, além da que no coração me ardia. Essa luz me guiava, com mais clareza que a do meio dia, aonde me esperava quem eu bem conhecia em sítio onde ninguém aparecia." (S. João da Cruz)

domingo, 27 de dezembro de 2020

Dias solenes

23 de Dezembro - Primeiro Dia

E dá-se o tiro de largada! Algumas épocas do ano são sempre mais intensas do que outras, em especial a Páscoa e o Natal são tempos de maior intensidade, e exigem mais do tempo e do esforço de quem prepara as celebrações na igreja. O dia 23 de dezembro é sempre marcado por essa ansiedade crescente, a espera pela vinda do Senhor que está logo ali, o Advento terminando e eu repassando cada detalhe das missas mentalmente, torcendo para não ter esquecido nada. 

Infelizmente nem tudo sai como planejado, e esse ano já desde o fim de semana passada as coisas não aconteceram com eu esperava. Alguns atrasos em serviços contratados me obrigaram a adiar a investidura dos novos coroinhas e até agora eu não consegui uma data ainda. Depender de prestadoras de serviço exige uma dose a mais de paciência, o que é bem difícil de se conseguir em dias assim. 

Ademais, as orações estão digitadas e impressas, o roteiro pronto e entregue a todos os responsáveis, as escalas feitas, os estoques refeitos e contados uma dezena de vezes, ensaios marcados. O que poderia ser feito já o foi. Agora é esperar para coordenar cada equipe na preparação imediata de cada celebração. E, como não poderia deixar de ser, uma ansiedade crescente vai tomando conta de mim. Sabe, uma insegurança, um medo de que algo não dê certo em cima da hora. 

Em dias assim a fadiga acaba cobrando uma taxa maior do meu corpo e da minha saúde e, geralmente, termino bem cansado quando finalmente acabam as celebrações principais. Já estou com o corpo quase no limite pelas noites insones, as constantes revisões dos ritos, as incontáveis mensagens trocadas entre coordenadores e líderes. Me sinto, muitas vezes, sozinho, mas eu sei que não estou. Também vejo muitos irmãos se esforçando em fazer a sua parte. Mas, ainda assim, quando me vejo sozinho na cama, com o corpo dolorido e a cabeça ainda alerta depois das três da manhã, é quase impossível não se deixar tomar por um leve sentimento de abandono, não com relação a mim, mas com relação ao sagrado. 

Parece-me que as pessoas fazem as coisas porque eu as peço para fazerem, dificilmente vejo alguém tomar a iniciativa de se preocupar com algum detalhe. A tolha está bem passada? As flores estão devidamente dispostas, as alfaias estão prontas? O incenso? Sabe, coisas que não me deixam dormir e que, ao meu ver são de grande importância, mas que passam desapercebidas aos demais. Claro, eu estou generalizando, mas ainda assim é o sentimento geral. 

Não posso deixar de traçar um paralelo com o mesmo abandono que a Sagrada Família, que vamos celebrar no próximo domingo, sentiu ao não conseguir encontrar lugar para ficar em Belém, tendo nascido o Salvador junto aos animais. É Cristo que nasce de novo, esquecido por muitos, mas adorado pela realeza que vem de longe sem poupar esforços para vê-lo.

27 de Dezembro - A Última Solenidade

Bem, é isso, depois de dias intensos finalmente deu-se o "Ide em paz" da última celebração. Depois de uma grande missa solene da Noite de Natal, com um coral cantando a Missa de Angelis, de uma celebração marcada pela ressaca geral das pessoas na manhã do Natal, de uma bela missa a noite, de uma celebração que começou com mais de vinte minutos de um atraso inadmissível e de uma Solenidade dos Patronos, a Sagrada Família de Jesus, Maria e José, cheia de correrias e adaptações, finalmente terminou. A próxima solenidade é apenas no dia 1° de janeiro, no fim da semana, mas nem de longe se compara com a dificuldade de todas essas celebrações, carregadas de responsabilidade pelo peso espiritual que cada uma delas para a comunidade cristã.

Eu estou absolutamente exausto, e isso porque tenho dormido os dias quase todos. Acontece que a ansiedade constante não me permite relaxar mesmo dormindo, e não é raro que eu fique até uma ou duas da madrugada pensando nesse ou naquele detalhe que poderia ter sido melhor ou no que eu terei de fazer. 

Nem tudo saiu perfeito. Houveram atrasos, pessoas sem compromisso que desapareceram jogando sob mim e outros uma responsabilidade extra, houveram momentos de tensão, broncas, mas também houveram coisas boas. Não posso deixar de me lembrar da emoção que foi ouvir uma missa cantada em latim pela primeira vez em minha comunidade. A solenidade dos cantos, dos gestos, a sobriedade que confere uma dignidade ímpar, a beleza das cores e das flores, o perfume do incenso, tudo isso me deixou extremamente satisfeito. 

E é assim, agora deitado eu posso finalmente relaxar. A noite muito provavelmente será de um sono pesado, finalmente descansando de toda tensão. Mais alguns dias e posso começar a pensar nas celebrações do próximo ano, mas isso daqui alguns dias, mereço ao menos alguns dias de férias. 

Me sinto leve, satisfeito, com algumas anotações para continuar melhorando nos próximos anos. Espero ter a graça de ainda poder celebrar muitos natais, com crescente solenidade e proveito para minha alma e a de minha família. Que assim seja!

sábado, 26 de dezembro de 2020

O Primeiro X Outro X Resposta

O PRIMEIRO

Já tem bastante tempo que eu não o vejo, isso é verdade, e muito me surpreendi quando o vi entrando pelos portões do lugar que me é tão caro. Essa foi minha primeira impressão. Conforme você ia caminhando, sentando-se perto da porta, mais eu sentia que invadia um pouco do meu espaço, ainda que estivéssemos há muitos metros de distância e eu tenho certeza que você nem sequer conseguia me enxergar direito. Ainda assim a sua presença lá no fundo ainda era opressiva, de algum modo.

E eu senti então um misto, de várias sensações que eu precisaria de décadas de estudos e leituras para conseguir sequer começar a descrever. Era medo, senti o cheiro do medo começando a exalar do meu corpo, como o suor por entre meus poros. Medo daquilo que eu sentia quando o via todos os dias, medo do seu olhar de julgamento, quando me olhava com certo desprezo, com certa afetação de superioridade. Eu não gostava daquilo e aquela sua pose, altiva, sempre superconfiante, me assustava, a mim que estou sempre inseguro de mim e de tudo o que faço. Minha insegurança e autoestima combalida fizeram, em contraste com sua confiança me deixaram sempre com medo de me aproximar, mesmo quando essas mesmas características me faziam flutuar para o seu lado, de algum modo inconsciente, desejando cada vez mais proximidade. 

Ao mesmo tempo que eu desejava certa proximidade eu sentia medo, e vontade de me afastar de você, cada vez mais. E eram sentimentos conflitantes, eu sei, e pude sentir cada um deles de novo ao ver você ali, de pé, confiante e apolíneo, enquanto eu estava num lugar mais alto, curvado e fechado em minha própria insegurança, em meus próprios medos, alguns deles despertados pela sua presença.

OUTRO

Também tenho esse duplo ímpeto travando uma embate feroz dentro de mim quando se trata de você: Por um lado quero ficar longe, longe de tudo o que pode me machucar, longe da dor que já senti, longe de querer me iludir com os pequenos gestos de carinho que ganho de você. Por outro lado eu quero ficar cada vez mais perto, e é por isso que aproveito toda e qualquer oportunidade que surge para me aproximar de você. É por isso que puxo as suas pernas para cima do meu colo, por isso te abraço e te beijo sem nenhuma razão aparente, é por isso que gosto de ficar deitado com você, assistindo alguma coisa ou simplesmente conversado, o que me importa é estar ali, tendo você do meu lado, tocando sua mão, sentindo o seu hálito sob a minha pele, segurando a sua mão. E, ao mesmo tempo em que cada uma dessas pequenas coisas me dão esperança, me fazer crer num amor puro e verdadeiro, capaz de superar o próprio destino, eu também vislumbro o triste dia em que eu serei deixado de lado, quando você finalmente encontrar alguém, quando eu for substituído, quando eu já não for mais importante...

RESPOSTA

Existe uma batalha travada dentro de mim, entre não duas mas várias facções. Eu desejo amor, mais do que tudo, desejo amar e ser amado, desejado. Desejo alguém ao meu lado, para dormir nas noites de chuva e assistir filmes nas tardes nubladas. Desejo aquele olhar apaixonado dos jovens por quem passo nas ruas e que parecem ter encontrado no outro uma razão para viver.

Mas eu também quero que minha razão para viver não esteja no outro, não o outro que pode partir amanhã sem maiores explicações, não o outro que pode me dar as costas sem sequer olhar para trás. Eu não quero isso. 

Outra parte de mim tenta me dominar pelo medo, medo da dor, do abandono. E outra parte busca ainda tentar conciliar tudo isso me enlouquecendo completamente, me tornando irresponsável, sem pensar nas consequências dos meus atos, tentando me convencer a seguir os meus instintos não importa quais sejam os resultados. É um amálgama que não consigo explicar, tendo pelo menos uma centena de tensões que eu não consigo sequer colocar em palavras, mas que estão aqui, mergulhadas em mim, revolvendo com violências as águas obscuras do meu coração, do meu ardente coração que quer dar-se sem cessar mas que não sabe que coração quererá corresponder, mas parece que é vão que procuro essa resposta...

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Os filhos da Besta

O despertar de uma fúria que se encontrava no interior obscuro de uma grande caverna, há tanto tempo adormecida que os homens já até haviam se esquecido do som de seu rugido gutural, fazendo com que pensassem se tratar de algum tipo de som natural que vinha daquela área remota e escura por onde alguns viajantes passavam, desavisados e perdidos, se surpreendendo com tamanho desfiladeiro mortal. 

Mas, ali onde ninguém suspeita, onde não parece haver nada, habita uma fera sem igual, um monstro de tamanho e fúria tão enormemente desproporcional a capacidade dos homens se defenderem que não é exagero afirmar que ali dorme aquela besta que tem o poder para devorar toda a humanidade. Ela tem uma forma humana, mas não é humana, apenas uma forma que esconde como que por detrás de uma pele artificial todo os horror que há nos vales mais profundos dos círculos do inferno de Dante. 

Aquela escuridão guarda sua ânsia assassina e que nunca cessa, esconde o seu ímpeto de matar, cravando suas presas longas bem fundo na carne, rasgando os músculos e triturando os ossos de suas vítimas, enquanto os gritos de dor e desespero o fazem ressoar de prazer e júbilo, um júbilo doentio que cresce a medida que cresce o pavor daqueles que padecem sob peso de sua enorme pata. Em suas presas corre uma substância viscosa, um veneno das feras, que ao penetrar a carne de suas caças dissolve os músculos rompendo cada fibra com violência, ao passo que, impedindo o movimento das mesmas, aumenta cada vez mais a dor que elas sentem. 

Em seus corpos pequenos e frágeis então corre esse veneno, fazendo ferver o seu sangue, que evapora no ar impregnando o ambiente de uma névoa densa, carmesim, dessa mistura de sangue e veneno, que tem o poder de atrair mais e mais vítimas. O sangue que ferve e escorre, dos olhos aos lábios, faz os homens se contorcerem em dor e agonia, e injeta neles o mesmo desejo assassino que há no coração da fera. Os seus corações batem então numa velocidade frenética, seu olhar se fixa num injetado vidrado de quem só pensa numa coisa e, correndo pelas vilas, destruindo tudo o que veem pela frente, fazem inebriar-se ainda mais o ar com o seu próprio suor, escorrendo lentamente pelos seus corpos fortes, por aqueles músculos enrijecidos, por gemidos de desejo e prazer que apenas se comprazem nos gemidos de dor, no fogo que ateiam e na destruição que causam. 

Aquele sangue que se mistura com o ar transforma os homens que passam ali num tipo parecido de fera, um tipo que também não consegue frear os seus instintos e que os torna prisioneiros de suas próprias vontades, de seus próprios desejos luxuriosos, desejos que habitam o íntimo de seus corações e que, como uma chama pequena que se verte num tremendo incêndio que a tudo destrói e reduz às cinzas, vai crescendo e consumindo, fazendo de homens bons feras demoníacas que passam os dias e noites vagando sem rumo buscando satisfazer os seus apetites bestiais, cravando seus dentes na carne tenra de suas pobres vítimas, que nada podem fazer além de gritar implorando por suas vidas miseráveis, vidas que terminam ali mesmo, jogadas ao chão em cima de seu próprio sangue misturado com a porra e o suor de seus executores que olham para aquela cena como um artista contempla, eufórico, sua obra prima, obra plasmada de suas próprias mãos, que contém a marca de sua lascívia, que guarda todo o torpor de suas ações nojentas em respirações ofegantes de quem já se entregou ao instinto daquela fera, aquela mesma que já não precisa mais sair para caçar, pois os seus asseclas caçam em seu lugar, pois o seu séquito varre o mundo atrás de sangue e da pureza de suas presas. 

Mas eles logo são consumidos por esse veneno, que rompe seu corpo e corrompe a alma, logo eles caem inertes, absortos num delírios de prazer, num orgasmo maldito cujo último suspiro de gozo é o suspiro final de uma fera, filha da grande besta, que já se consumiu em desejo tão potente, tão implacavelmente dominador que transformou todas as coisas do mundo em cinzas. 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

A risada maligna

Poder: a capacidade de alguém de curvar a vontade de outrem à sua. Todas as nossas relações humanas, de algum modo, giram ao redor do poder, seja ele político, econômico ou intelectual ou até mesmo espiritual. Mas existe um poder em específico, mais limitado e pessoal, que exerce influência sobre mim, com a mesma influência ou ainda maior do que se me oferecesse o mundo inteiro em ouro ou se apontasse uma arma para a minha cabeça.

É o poder que ele tem sobre mim. O poder que ele tem de me desmontar, de me fazer responder mesmo quando eu estou fechado para o mundo, e que preciso me isolar de tudo e de todos porque sei que, se eu o vir, eu o responderei, pois sou incapaz de virar as costas, incapaz de dizer "não", incapaz de não ser controlado pelas cordas de sua voz, que me manipulam com mais liberdade do que o titereiro manipula o seu boneco.

E eu odeio isso! Odeio como ele é capaz de me desarmar apenas com uma ou duas palavras, como seu sorriso me faz perder o equilíbrio e seu abraço me faz esquecer como é que se respira. Odeio como ele faz o mundo, o meu mundo, girar ao seu redor, como se não fosse mais a gravidade ou o ser que me mantivesse nessa existência, mas como se fosse a sua presença o fundamento do meu ser. E eu odeio isso, odeio ser assim, influenciável, estando sempre a mercê de suas vontades, sendo a segunda opção, sendo aquele que ele usa para tapar os buracos de sua carência, sendo aquele que sequer tem um nome dentro do seu coração, alguém que só está ali para ele por conveniência, e não por amor verdadeiro. Eu odeio ser assim. 

Odeio me apaixonar e me deixar levar dessa forma, como um cadáver nas mãos do lavador do cadáver, sem conseguir escolher qual caminho trilhar, sempre precisando tentar andar ao lado de alguém, sempre perseguindo alguém, tentando ajudar a realizar seus sonhos, enquanto eu sequer sei quais são os meus. 

Por outro lado há a completa falta de poder. O homem é um ser que vive sem nenhum poder sobre si ou sobre o mundo ao seu redor. Podemos pensar o contrário quando vemos grandes construções ou, sei lá, a destruição provocada pelas grandes guerras mas, ainda assim, o que nós fizemos? Arranhamos a superfície de um planeta minúsculo e insignificante. E isso é o máximo que conseguimos fazer. 

Eu não tenho poder sobre quase nada em minha existência, antes disso, estou como uma pequena pétala rodopiando num gigantesco furacão, sem nenhum controle. O que mais posso fazer? E, diante dessa perspectiva eu só posso declarar: tudo sempre dá errado para o homem. Tudo sempre dá errado para mim. 

Não se trata de uma afirmação pessimista que prevê que no futuro tudo dará errado, não, mas é uma afirmação tomada com base num passado onde tudo deu errado. Desde pequenos detalhes no plano geral da vida, como um atraso do Uber ou unhas quebradas horas antes de um evento, ou a sacanagem de um chefe ou falta de responsabilidade de algum serviço contratado, tudo sempre dá errado. 

E eu me irrito com as pessoas que adoram encarnar o otimismo e dizer que tudo vai dar certo, porque não vai, tudo vai dar errado, tudo já está dando, muito, errado, e vai continuar assim, visto que vivemos num mundo que tende ao caos, onde somos governados pela entropia, que destrói qualquer perspectiva de homeostase em relação aos humanos. Em relação ao plano da realidade em si o mundo é plenamente equilibrado: ele subsiste na aniquilação diária do homem, na destruição de sua esperança, no esmagar de seus sonhos, desde as grandes perspectivas de vida até os mais mínimos detalhes. Porque esse é o destino do homem, ser um fantoche para as risadas malignas de um destino que se diverte em ver tudo dando errado para os homens, um demônio que vive por puxar nossas cordinhas, ora fazendo-as vibrar e ora largando-o inerte, aterrorizado sem poder se mover, com o poder de sua risada maligna. 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Fogo X Gelo X Lança Celestial

Um homem que se vê perdido em plena escuridão pode sentir-se feliz ao ver uma luz brilhar, guiando seus passos errantes. Aqueles que andava sem rumo passa a fitar aquela pequena estrela, lá no céu, tomando-a como seu Norte. Ele não está mais perdido, mas agora tem um objetivo, um destino a chegar. Mas, e quando a estrela não é mais do que um farol distante que brilha apenas porque foi aceso por seus próprios inimigos para trazê-lo ao seu campo de batalha, ou melhor, ao seu campo de execuções?

A esperança é a luz acesa pelo inimigo para conduzir os pobres desesperados que vagueiam sem rumo pelo deserto da vida ao seu próprio fim. Não mais precisa incorrer em longas perseguições, não precisa se preocupar em encontrar, não, o próprio inimigo os encontrará, e caminhará contente para os braços da própria morte, abraçando-a com alegria por não precisarem mais caminhar na escuridão.

Aqueles que caminham sem destino, que não sabem para onde ou por onde vão, sentem uma insegurança máxima, um desespero pelo temido desconhecido, pelo inimigo que se esconde na escuridão. A luz, por menor que seja, lhe tira essa apreensão, mas também lhe tira toda razão, pois já não pensa se tratar de uma armadilha, não, é uma estrela, é uma luz que o guia. E, seguindo cegamente, ele cai nos braços daqueles que lhe querem matar, mas não sem os requintes de crueldade de executarem na sua frente aquilo que ele tem de mais valioso, aquilo que em seu coração ocupa mais espaço do que o apreço por sua própria vida.

Aquela luz, que representou o fim das trevas era, na verdade a que o conduziam para os tentáculos gelados das próprias trevas, que tão ardilosamente prepararam aquela pira ao seu amado

Como não cair em desilusão? Como não ser destruído pela foice da própria morte que se transmutara em esperança e que nos aquecera em meio a noite fria? Como não olhar para aquelas chamas que mais parecem arder não de calor, mas como gelo, tirando dele tudo o que o calor lhe havia dado? Naquelas labaredas ardem a suas esperanças, se desfazem seus amores, e tudo o lhe resta é um olhar frio e vazio, enquanto caminha não para o fogo, mas para um inferno de gelo, para um abismo que ele mesmo cavou com seus próprios pés enquanto caminhava. Fogo e gelo ardem juntamente para destruir completamente seu corpo e sua alma. Um lhe deu a esperança, cega e vazia, e o outro lhe deu o fim, silencioso e desesperador, catatônico pela perspectiva de que não adianta mais lutar, e que tampouco há outro lugar para onde ele possa andar.

Mas eu não quero ser interpretado erroneamente com essas palavras. Quero deixar claro que a luz de que tanto reclamo aqui é aquela que nasce da falta de esperança de nosso próprio coração que, por medo da escuridão, muitas vezes necessárias ao nosso crescimento, nos conduz ao nosso próprio fim. A noite escura não é uma maldição, mas, ao contrário, uma provação que pode se revelar muito proveitosa ao espírito peregrino. Mas temos medo da escuridão e, na ânsia de encontrar uma saída que seja rápida, depositamos a nossa esperança em qualquer luz que apareça a nossa frente. São promessas fáceis de felicidade e realização, são convites, são olhares, são tudo o que alimenta o coração vazio do homem, faminto e necessitado de calor. Ele então anda em direção aquela chama, sem perceber que caminha para a própria condenação, para a fogueira que, queimando os corpos daquele que ele mais ama, queimará também sua carne até os ossos, reduzindo-o as cinzas frias daquele dia, sendo esquecido ao vento e, depois, perdido na frialdade já inorgânica da terra por onde um dia ele peregrinou.

É difícil saber onde devemos depositar a esperança e, com frequência, o cansaço da batalha nos faz crer que as provações já são o suficiente e que por isso devemos confiar naquela luz, que aquela talvez seja a luz que tanto buscamos. Mas, como nos ensina o Antigo Pai, aquela Luz está dentro, e não fora, ela está conosco, embora na maior parte das vezes não estejamos com ela. E é essa luz, que de dentro do coração arde para fora dissipa as trevas do pecado e da morte, que deve ser a nossa guia, que nos guia com mais clareza que a luz do meio dia.

Repito, por fim, um pequeno trecho que considero bastante ilustrativo e, embora já tenha aparecido aqui diversas vezes, ainda se casa muito bem com o que venho tentando dizer e, mais importante ainda, guardar no profundo do meu coração e entendimento.

“Alguns dizem que o mundo vai acabar em fogo,
Alguns dizem em gelo.
Pelo meu desejo
Eu retenho aqueles que favorecem o fogo.
Mas se tivesse que perecer duas vezes,
Eu acho que sei o suficiente de ódio
Dizer que a destruição de gelo
Também é grande
E seria suficiente.”

(Robert Frost)

Eu, por outro lado, afirmo que o mundo terminará quando, imersos numa infindável escuridão, lançando todos os homens no mais profundo abismo do desespero, veremos brilhar, no alto céu uma luz, que não será mais do que o brilho refletido da lua na grande lança do destino, apontada diretamente ao nosso peito, instantes antes da aniquilação total, aquele momento ínfimo em que o tudo, repleto de amor e esperança vazios depois do expurgo pelo fogo e pelo gelo, voltará ao nada.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Vento de Prata

Me sentindo uma péssima pessoas, em todos os sentidos, em todos os campos de minha vida. Me sentindo um péssimo filho, que não é mais do que um peso para os meus pais, uma ocupação de espaço nessa casa, sem nenhuma ajuda ou contribuição. Me sentindo um péssimo irmão, negligente, distante, que fechou os olhos e cruzou os braços para tudo que havia de errado e que se esconde no quarto enquanto todos se matam de algum modo do outro lado da porta de madeira. Me sentindo um professor fracassado, que não sente mais a mínima vontade de explicar nada para ninguém por se ver incapaz de ensinar algo de verdade. Me sentindo um péssimo projeto de intelectual, que dorme durante as aulas e abandona as leituras pela metade, que sabe que, mesmo tendo algum talento, nunca vai chegar a ser grande, nunca saindo da mesma mediocridade que tanto abomina. Me sentindo um péssimo cristão, alguém incapaz de vencer os próprios pecados de estimação, alguém que não faz mais do que qualquer um com o mínimo de amor pudesse fazer dez vezes melhor na paróquia. Me sentindo um amigo horrível, que escreve e machuca aqueles que mais ama, que os afasta e repele. Me sentindo uma pessoa incapaz de ser amada, que a ninguém conseguiu tocar, que a ninguém conseguiu mostrar ser merecedor de algum amor. É isso, que é ser um completo fracasso, em todos os sentidos, em todos os campos de uma vida miseravelmente medíocre. É isso que é viver de mendigar afeto, frases curtas de vaga aprovação, de buscar calor nos braços de desconhecidos e de viver da inveja pelo amor dos outros. É isso, nada mais do que uma serpente mirrada que rasteja pelo chão enquanto volta seu olhar para o céu, o mesmo céu que ela jamais poderá sentir a menos que torne-se presa de alguma grande ave, que voa por aquele mesmo céu, mas sem inveja, dominando-o por entre suas plumas majestosas, observando ao longe com seu bico e presas de aço, voando pelo meio das nuvens, soprando aquele vento de prata, o mesmo que toca a serpente, trazendo até ela a zombaria daquela que voa por sua cabeça e que logo planeja fazer dela sua mera presa. É isso que é viver apenas por esperar a lança divina transpassar a minha carne e o meu ser desde o alto de sua morada, caindo sobre mim o fechamento de um destino que foi feito sobre a areia, e que vai desaparecer como essa mesma areia, voando pelo vento. 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Que me transborda

Como tem sido difícil ficar perto de você, sentir sua presença, sentar ao seu lado e sorrir, brincar e conversar, mas sem a proximidade, sem a intimidade, que gostaria de ter. Tem sido difícil, fingir que não sinto mais nada, fingir que estou bem com apenas sua amizade, tem sido difícil, porque o que eu sinto, que é muito maior do que qualquer amizade, que é um amor tão poderoso, não pode ser contido apenas dentro do meu peito, é grande demais para meu corpo pequeno, e não raramente transborda.

Seja pelo álcool, seja pela música ou pelas lágrimas, não importa como mas o meu amor sempre transborda. O amor é então não um sentimento que nasce dentro do meu coração, não apenas isso, mas é um mundo superior, um oceano de águas impetuosas que o meu coração apenas toca, e é essa água que brota no meu coração, que mina imperiosamente de mim, que cresce, me preenche, mas não se limita a mim, me abarca e me supera ilimitadamente. Eu quase sinto esse amor transcender fisicamente, quando estou perto de você é como se o ar se tornasse rarefeito, é como se meu amor ocupasse também um espaço entre nós. 

E você tem esse poder sobre mim, abrasador, pois ao simples toque, ao simples olhar, ao menor abraço, uma carga elétrica passa por minha pele e vai diretamente ao meu coração. Essa carga, que penetra profundamente meus músculos e ossos até o tutano, enche de amor por ti cada fibra do meu ser, fazendo até que o ar que sai dos meus pulmões, exale o carinho que há em mim. 

E esse carinho nasceu do carinho que por mim tinha, nasceu de quando me ergueu do pó em que jazia, da lama que me encontrava em chafurdaria. Esse carinho nasceu daquele contato, com tua mão, que da mais profunda escuridão me fugia. 

"Como um fantasma que se refugia na solidão da natureza morta, por trás dos ermos túmulos, um dia, eu fui refugiar-me à tua porta!"

sábado, 12 de dezembro de 2020

O retorno da névoa matutina

Gostaria que as cores tivessem tomado conta do meu horizonte, queria ter me pintado com as aquarelas, aquelas mesmas que são vistas nos campos floridos de canolas, nos belos quadros dos maiores mestres, com aquela singeleza e a delicadeza de pinceladas feitas pelos próprios anjos, aprendizes diletos do grande pintor. E toda beleza que tem as flores, na harmonia de suas cores, era o que eu gostaria de imprimir em mim. 

Mas eu não consegui. Eu não conseguia fazer mais do que me revirar na cama, lutando e, ao mesmo tempo, me entregando nos braços de uma névoa sonolenta, pesos nos braços e pernas, perdido numa escuridão, num torpor que me fazia fechar os olhos por alguns instantes e só conseguir abrir horas depois, vendo o relógio avançar sem piedade contra mim. Quando me olhei no espelho, me dei conta de quanto tempo havia passado. Os cabelos cresceram, minha barba começa a perder a forma, a pele mostra sinais de descaso, mostra que há tempos eu deixei de me cuidar, que há tempos eu deixei de saber como é me pintar com a singeleza que tem as flores. 

E não conseguia me levantar, eu não consegui me levantar, até que caísse a noite, e que fossem surgindo tantas luzes que ninguém jamais poderia contar, mas eu fiquei ali, parado, e sem forças, sem conseguir reagir. 

Até mesmo escrever torna-se um esforço demasiado. Responder tem sido difícil, reagir tem sido quase impossível. Me sinto perdido, sem conseguir tomar uma atitude, sem conseguir sequer sorrir ou cumprimentar. Mas eu não sei o que fazer, não sei que formas dar a essas palavras, não sei como posso fugir, acordar, mover de novo as minhas mãos; Eu não sei o que fazer, eu não sei mais nada, não consigo pensar em nada... Cansado demais, mesmo estando há dias sem andar, sem fazer nada demais... É como se não tivesse mais forças, é como se, pouco a pouco a névoa que me rodeia fosse entrando, me possuindo, e fazendo com que eu mesmo me desfizesse em névoa, lentamente até desaparecer... Até o amanhecer, quando tudo começa mais uma vez. 


sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Devorar

O vento bate com violência na janela, parece que vai chover mais tarde. Isso é bom, ao menos ameniza o calor desagradável, ao menos me dá oportunidade de ficar deitado aproveitando esse clima agradável, mesmo que isso signifique ser acossado por pensamentos que eu não consigo controlar. GETSUNOVA e suas músicas com letras românticas não me ajudam muito, embora sejam a minha companhia ideal. 

Ainda naquela linha tênue entre o sono e a vigília, sentindo certas partes do meu corpo acordadas, enquanto o resto se encontra em uma dormência letárgica. Aquela imagem continua aparecendo, de novo e de novo. É aquele rosto, que me recorda o toque de sua mão, que me recorda o bater de seu coração, quando sobre seu peito a minha cabeça repousava, sentindo o perfume doce do seu hálito. É uma lembrança doce, mas as lembranças são romantizadas, e eu não queria me lembrar disso. 

Não queria porque eu só pedi que me abrisse o coração, que se mantivesse aberto ao meu amor, e a minha resposta foi uma negativa. Ele não me quer em seu coração, aliás, ninguém quer, e essa negativa reverbera dentro de mim com a mesma força de um eco em montanhas altas, ocultando um grandioso e infindo abismo, o mesmo abismo que cavei com as minhas esperanças, e o mesmo abismo que preenchi de água, das lágrimas que através dos séculos incontáveis escorreram do meu rosto, uma a uma, representando cada vez que meu pensamento me traiu e eu fui obrigado a lembrar de todos os momentos que me fizeram crer que ele também me amava, 

O vento bate com violência na janela, e as memórias pululam sem controle algum, eu sinto meu coração apertar, o corpo estremecer, e eu quero fugir. Tenho fugido a semana inteira, tenho me escondido tão no fundo do meu próprio quarto que muitas vezes nem mesmo eu sei onde estou, isso porque a paisagem ao meu redor ainda seja dos móveis e da parede descascada, eu não sei mais por onde tenho caminhado, não sei aonde me levará o caminho que estou trilhando e, pra ser sincero, eu acho que nem me importo, contanto que me levem para longe daqui, para um lugar onde eu não exista ainda, para onde possa me reapresentar, ser um novo eu, onde possa redescobrir quem é o outro em relação a mim, onde possa olhar ao meu redor sem sentir que gostaria de tê-lo aqui comigo. 

E, por não tê-lo comigo o meu corpo reage instintivamente, fazendo meu hipotálamo mergulhar num oceano de hormônios devastadores, me transmutando naquele conhecido demônio, incontrolável em sua sede luxuriosa, insaciável em seus desejos bestiais mais primitivos, sedento pela carne e pelo sangue. E um ciclo amaldiçoado, que se inicia num sentimento puro, desejoso de companhia, que na verdade é uma carência disfarçada, pervertida, e que termina por desnudar-se num monstro que domina por completo, que faz questão de cravar bem fundo suas garras, de perfurar com violência suas presas, se deliciando com o aquele néctar quente, com aquele olhar de quem deseja simplesmente devorar, um berserker sem controle, ansiando apenas por morte e destruição.

Mas, no fim das contas, abaixo até mesmo da abissal escuridão donde se esconde esse monstro, há um eu, o eu, que apenas anseia por uma coisa, que apenas anseia por conhecer, finalmente, o amor, um grande amor, o verdadeiro amor. Por trás do homem há o demônio, a fera que grita EU no coração do mundo, e por trás do demônio há um pequeno garoto, que só quer saber de amar, de amar e ser amado. 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

O que eu quero

Deitado no escuro, esperando o sono finalmente aparecer... Desisti de ver o filme, tomei um banho quente e me enfiei dentro da primeira roupa que achei. Não quero pensar muito, seja na reunião de sexta, nas brigas que tive com minha mãe ou com o que vou fazer amanhã... O que vou fazer amanhã? Minha concentração pros estudos tem estado péssima nos últimos dias, não tenho lido e tenho dormido mais do que o habitual, em parte culpa dos remédios que tomo toda hora na esperança de apagar e fazer o dia acabar mais rápido. 

Queria dormir, um dia inteiro, sem ninguém me incomodar. Mas aí eu acordo e acho que preciso ser um pouco produtivo, tento estudar, acabo dormindo, me distraindo, e aí, quando vou dormir, sempre encontro algo pra fazer em vão, seja tirar uma foto que não vou postar ou ler alguma coisa sem nenhum proveito. Quando vou dormir já é fim da tarde, e logo as pessoas começam a me procurar, os compromissos começam a surgir, e eu só queria dormir, um dia inteiro, sem ver a hora passar. 

Mas é isso mesmo que eu queria? Não, tem muitas outras coisas que eu queria. Eu queria ser inteligente e experiente o bastante pra publicar um livro de sucesso, que alavancasse minha carreira de escritor, queria ter um bom emprego que me permitisse sair desse lugar miserável, queria morar numa bela casa planejada nos mínimos detalhes. Mas eu também queria outras coisas. Queria olhar no espelho e ver um homem bonito, de traços finos, olhos puxados e cabelos lisos, pele clara. Queria um feed organizado com fotos bonitas, bem iluminadas, com roupas bonitas, que me atraísse centenas de seguidores nas redes sociais. Queria não sentir nojo de mim, de minha aparência. Queria não sentir que sou empurrado de um lado para outro, porque ninguém me quer por perto ou porque minha presença só convém quando sou útil de alguma maneira. Queria ser desejado, queria ser fodido com força por vários caras que eu desejo, queria não precisar dormir depois de uma punheta patética no xvideos, queria ter uma vida diferente dessa que hoje vivo, e que tanto abomino. 

Queria não chorar de raiva do meu próprio destino enquanto escrevo palavras que vão despertar riso e asco nos leitores, isto se houver algum leitor, o que duvido muito. Queria, o meu coração queria, algo diferente, de ódio, de dor, de carência, de insuficiência, de mentiras, de abandono, de incompreensão, de solidão... 

Queria que ele abrisse o coração para mim, que ele não se afastasse, queria que meu sentimento pudesse alcançá-lo, queria... Amar e ser amado, apenas uma vez que fosse, queria conhecer isso que tanto falam mas que ainda não sei do que se trata, eu queria... Eu nem sei mais o que eu queria, eu não sei mais nada, nada dele, nada de você, eu não sei voar nas nuvens, eu não sei nada, eu não sei mais nada.  

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Cessado o cansaço

Finalmente a maior parte do cansaço cessou, perdendo-se entre as dobras das cobertas, dissipando-se nos gemidos sonolentos após o merecido sono dos justos. O tempo colaborou com uma breve chuva, que deixou o clima agradavelmente ameno, com uma brisa fresca a soprar meus cabelos, enquanto deitado assisto alguma coisa. 

Já me esqueci daquela sensação, quase um rancor, a respeito dos que me abandonaram sozinho com mais obrigações do que poderia cumprir sozinho. O resultado final foi tão satisfatório que isso nem importa mais, estou contente com o que consegui fazer, e é isso. 

Claro, isso não significa de modo algum que não deixo de sentir ainda agora que continuo sendo apenas o idiota útil, que é útil justamente por ser idiota o suficiente para não se revoltar contra isso. Bom, de qualquer forma, o mundo está repleto de idiotas de qualquer jeito, sou apenas mais um.  

Aliás, não apenas nisso eu sou apenas mais um, mas também me vejo como um igual junto aqueles que buscam no divertimento, banal e superficial, não uma resposta mas uma fuga aquelas verdades íntimas e secretas que sabemos, vimos e fingimos não saber. Acho que tem sido mais fácil, me embriagar levemente com o objetivo de fazer aflorar o personagem apaixonado que consegue usar dos seus sentimentos não correspondidos para escrever coisas que soem como palavras desenhadas com sangue, como quem se derrama inteiramente na letra, muito embora não tenha restado realmente nada substantivamente suficiente para se derramar. 

Tornei-me um pequeno ouriço bucólico, que encontra distrações nas coisas que não me fazem esquecer nem por um segundo sequer a miséria que me cerca, mas que me desperta, que me torna um pouco mais sensível justamente para dizer o quanto tudo isso é patético. 

Mas tudo isso o quê? A vida do homem em si, vivendo cada dia, seus trabalhos e afazeres, como se tivesse um objetivo no fim de tudo isso, sendo que na verdade ninguém sabe ao certo nem o que será de nós no fim do dia, que dirá do futuro incerto. As ilusões, que antes me apavoravam e me deixavam sem dormir, agora me divertem. Eu vejo as pessoas correrem atrás do amor, de uma realização, de qualquer coisa que possa dar significado a suas pequenas existências patéticas, que desaparecem ante a mim e ante a si mesmas como poeira lançada ao vento, podendo até mesmo incomodar os olhos brevemente, mas logo deixando de existir, indo para tão distante que ninguém sequer pode afirma com certeza que chegaram a existir um dia. É realmente patético e miserável. Sob uma escala minimamente macroscópica é risível, não mais do que as trombadas incertas de formigas atrás de migalhas que caem da mesa de seres tão grandes que elas sequer podem compreender, assim somos nós diante de um universo, de uma existência, que sequer podemos tentar entender. 

Nos resta a doce ilusão dos amores. Beber ao lado de quem te rejeitou é uma boa ilustração do quão patético um homem pode se tornar. Eu nunca pensei algo diferente disso a respeito de mim. Mas, ao observar as pessoas ao meu redor, especialmente as de minha própria casa, eu vejo que na escala da miséria humana eu não estou tão ruim assim. A absoluta falta de perspectiva de presente e futuro dos meus pais, aliada a completa destruição de seu senso de proporções resultam numa existência aglutinadora de problemas, eles interpolam uma coisa depois da outra e isso é o máximo que conseguem fazer. A minha irmã (sic!), entregou-se completamente a bestialidade dos prazeres mais baixos que o homem já ousou conceber. Tenho agora dificuldade de olhar para ela e enxergar figura humana, senão que vejo apenas um animal em busca de saciar seus apetites mais primitivos, ás custas de quem quer que seja, alimentando-se visceralmente do que restou de meus pais e, eventualmente de mim, quando me faz mergulhar em um oceano de ira contida que não poderia ser extravasado de outro modo senão quebrando uma longa série de artigos do código penal, infelizmente não tenho compleição física para as cadeias, sendo obrigado a internalizar.

Isso me leva a outro ponto. Decidi me recusar a dar continuidade ao meu tratamento de Transtorno Bipolar. A infeliz da mau caráter faz um inferno nessa casa e, pra melhorar um poucos as coisas, eu sou obrigado a cruzar metade do estado para ir num médico que vai me entupir de remédio como se o problema fosse eu? Não. Interrompendo o tratamento quem sabe eu não surte logo de uma vez e, dando cabo finalmente da minha vida miserável eu fique livre de uma vez por todas de ter de conviver com essa criatura espúria? É um vislumbre melhor do que uma doença hepática grave por causa do uso exagerado de medicamentos. Prefiro ficar com os benzodiazepínicos ocasionais que, pelo menos, me ajudam a fugir daqui para aquele mundo dos oneiros que, mesmo sendo horrível também, pelo menos não conta com a presença dela e de nenhuma de suas amizades. 

As vezes eu penso se todos os meus problemas se resolveriam se me mudasse de casa (o que me exigiria, primeiramente, um emprego que pagasse mais do que um salário de fome) ou se conseguíssemos, por algum milagre do universo, uma casa pelo menos três vezes maior, onde não precisássemos ficar cruzando uns com os outros toda hora, nem tropeçando nos moveis e, muito menos, compartilhando o mesmo banheiro minúsculo entre oito pessoas, no mínimo. 

Encontrar um emprego é outro desafio do meu tempo atual. Em época de pandemia ninguém tá lá conseguindo muita coisa, isso é verdade, mas eu admito que sequer estou tentando. Acontece que todas as vezes que penso em trabalho eu fico paralisado. Eu me lembro de toda chateação que era no último colégio, ser liderado por imbecis e ter de receber ordens de pessoas absolutamente incapazes de compreender o que quer que fosse sobre educação. Se esse fosse um país decente todos estariam hoje presos por todo o dano que causaram as crianças que estavam matriculadas ali, o que fazem não é mais do que crime, e um dos piores porque não só impede a vítima de se defender como cria nelas uma deficiência quase impossível de ser corrigida ao longo da vida. São criminosos. 

E então eu penso que teria que levantar cedo todos os dias, ouvir alunos chatos e burros todos os dias, receber ordens de pessoas ineptas todos os dias, gastar tempo elaborando e corrigindo provas, lendo as maiores absurdidades em detrimento de cada pequeno detalhe explicado em sala de aula. Todo esse cansaço é a causa da paralisia. 

Outros empregos são igualmente desmotivadores. Passar o dia inteiro num escritório sonolento, realizando funções sem absolutamente nenhuma importância pra humanidade... Argh! Por outro lado, gostaria de escrever, vivendo de colocar ideias em circulação, dizer aos outros o que penso. Mas se nem mesmo aqui, onde o faço de graça, essas ideias atraem algum interesse, quanto mais num livro envolvendo todo um escopo de gastos editoriais num país onde livros escritos por youtubers ocupam o topo do rank de vendas. A verdade também é que eu não tenho mais sobre o que dizer. Não tenho idade e nem experiência de vida para falar algo de substantivo. 

Pois é, o meu futuro não é muito promissor. E eu já não sou um garotinho de quinze anos, as coisas já deveriam estar mais encaminhadas. Mas não estão, e não faço ideia de como vou começar a fazer isso. 

domingo, 6 de dezembro de 2020

Peso

"Ai de mim! Que vazio horrível sinto em meu peito! Quantas vezes digo a mim mesmo: "Se pudesses uma vez, ao menos uma vez, apertá-la contra o coração, esse vazio seria desfeito." (Goethe)

E de repente tudo despenca em cima de mim, uma vez mais. As pessoas sempre me dizem que eu devo dividir as obrigações com o pessoal da igreja. Eu tento. Não gosto de fazer isso porque vejo o descaso de todos com as coisas sagradas, mas tentei. O resultado? O silêncio e as respostas negativas, em cima da hora, de que não poderão ajudar, que eu vou precisar dar um jeito de me virar em dois ou três para que as coisas saiam dignas.

Amanhã é dia de Primeira Comunhão, com uma missa a mais na comunidade. Tem toalha pra passar, detalhes da credência pra organizar, uma equipe pra liderar, lanche pra vender... Mas o que eu tinha dividido, voltou tudo pra mim. E agora sinto um peso grande, de uma responsabilidade que não é só minha, caindo todinho em cima de mim. E não é a primeira vez. Eu não posso, não vou e nem quero, abandonar, mas me sinto triste porque sei que, desse jeito, as coisas não sairão tão bonitas como deveriam. A dignidade, a atenção aos detalhes, tudo isso corre risco porque uma mente só pode não conseguir dar atenção a tudo isso sozinha. Primeiro peso. 

Depois disso me vem uma sensação, também desgastante, da minha insuficiência, de total incapacidade, de fazer todas as coisas darem certo desse jeito ou, pior ainda, de conseguir ser alguém. Aqui a situação é completamente diferente.

Enquanto eu coloco quem amo num  pedestal, no mais alto grau de carinho que há em mim, percebo que, para os outros, não passo de um estranho qualquer, tão importante quanto aquele desconhecido que trombou com a gente na feira e depois sumiu na multidão. E isso por causa de uma foto, um stories que apareceu e depois sumiu, mas que possui tanto significado que eu não conseguiria dizer, por incapacidade e por estar abalado demais pra conseguir fazer mais do que me lamentar tristemente, do que chorar calado no meu canto, prostrado sob o peso de minhas obrigações e expectativas. 

Só queria ser importante pra ele, que ele percebesse o quanto preciso dele aqui comigo, do quanto preciso de ajuda. Mas, em se tratando dos outros, eu sou invisível, apenas se lembram de mim quando precisam, do contrário, quando eu preciso, fico jogado à minha própria sorte. E eu agora, que farei, que patrono ou que amigo invocarei?

Essas coisas juntas se tornam um peso grande demais, e meu corpo entra em torpor, um gosto ruim na boca, as pálpebras pesadas... Eu quero dormir, apagar, esquecer dessas coisas, dessas pessoas. Queria conseguir me amar, me sentir suficiente, me sentir o bastante para cumprir os meus objetivos e, mais ainda, para conseguir viver sem sentir a constante necessidade de alguém, de amar, mesmo sem ser amado.

"Este vazio de amor todos os dias: a cabeça pesada ao meio-dia, a boca amarga, um cheiro de sono e solidão nos cabelos..." (Caio Fernando de Abreu)

sábado, 5 de dezembro de 2020

Resenha - OXYGEN

"Um homem com o coração vazio, um livro em branco, a este coração agonizante você trouxe vida, como a luz no meio do inverno."

O comecinho da música tema dessa obra é mais do que capaz de mostrar bem o que acontece com um coração triste que finalmente conhece o calor do amor. Apenas o primeiro episódio já foi suficiente pra me fazer suspirar, ficar contente com o coração quentinho e, quem sabe, até mesmo voltar a crer um pouco na beleza de um amor puro, inocente. 

Um homem calado, que tem muitos pesadelos e que não gosta da multidão, assustado por fantasmas do passado e que finalmente encontra, num sorriso doce e num gesto gentil de um desconhecido, o que precisava para dar um sentido a sua vida, o que precisava para descobrir o que é o amor.

Oxygen conta a história de Solo e Gui, baseada numa novel homônima, sendo o primeiro, calouro na universidade, um rapaz sério e fechado, até mesmo com os seus colegas de banda. Ele é de uma família rica, mas problemas do passado o tornaram desiludido, como se andasse por aí sem o controle de sua vida. Tem tudo mas não consegue sorrir. Um dia, após uma noite sem dormir por causa de constantes pesadelos, ele sai pelas ruas e acaba parando num café, quase fechando, onde conhece Gui, um lindo barista que, embora também tenha um passado difícil, tem um doce sorriso, e que o oferece uma caneca de leite quente, dizendo que assim será mais fácil para ele conseguir dormir. Esse primeiro encontro é suficiente pra traçar o destino de ambos, que descobrirão um intenso e belo amor entre eles.

Solo Siwarokin (Nut Supanut) é herdeiro de uma grande empresa, mas não se dá bem com seu pai, que o trata como um de seus funcionários, treinando-o para sucedê-lo nos negócios, chegando ao extremo de colocar funcionários atrás dele para que não faça nada que saia desse objetivo. Essa frieza no relacionamento deles, somada ao fato de que traçaram um futuro para ele sem que o consultassem, fez com que ele se tornasse um rapaz de difícil compreensão. Ele é talentoso com a música, e tem uma banda, mas é distante e quase incapaz de sorrir, pois não consegue esquecer o passado e nem o fato de que não poderá escrever o próprio futuro.

Gui Jirayu (Petch Chanapoom, a coisinha mais linda desse mundo) é um garoto gentil que desde cedo precisou se virar para viver. Cresceu num orfanato, tendo a diretora como uma verdadeira mãe, sendo ela a única figura de carinho em sua vida. Foi o único de seus amigos a não ser adotado, ficando no orfanato até ter idade suficiente para trabalhar e conseguir entrar na faculdade. Apesar desse passado ele é doce e prestativo, embora também sério, mas ainda tem um sorriso doce que, junto com a sua gentileza, conquista Solo no primeiro encontro. 

Além do casal principal nós temos Kao e Phu, baseados na novel Nitrogen. Kao (Boss Thanabat, de Cofee Prince Thai) é amigo de Solo e faz parte da mesma banda que ele. É um garoto levado, atrevido e muito curioso que se apaixona por Phu (Phu Phubet), primo de Solo, depois de uma confusão com uma gangue que tentava assaltar o rapaz. Enquanto Kao é brincalhão o tempo todo Phu é calado e muito, muito sério. O pobrezinho precisa correr muito atrás dele pra finalmente conseguir ver um lado mais doce do rapaz. Isso porque ele também tem uma relação conflituosa com o passado e prefere manter as pessoas afastadas. Kao, no entanto, acaba se tornando o seu "coelhinho", apelido que Phu dá a ele por ser tão fofo e inquieto e tempo todo. 

O último núcleo é um quadrilátero amoroso. Depois de visitar a cafeteria onde Gui trabalha, o Dr. Petch (Kun Kunchanuj, de SOTUS S e U-Prince) se apaixona por Khim (Natty Thanyanan) barista e amiga de Gui, uma fujoshi de carteirinha que adora shippar os clientes, tirando fotos deles e postando na internet. Acontece que Khim começa a shippar o Petch com o Dr. Perth (Yuuki Durongsang), seu colega de trabalho que sempre vai até a cafeteria com ele e que, por sua vez, gosta do amigo. O triângulo amoroso seria suficiente se não tivéssemos ainda Khem (Fourwheels), irmão de Khim, que depois de um tempo acaba indo trabalhar na cafeteria também e começa a gostar do Dr. Petch. Aí tá formada a confusão: Petch finge ser gay pra se aproximar de Khim e pedir conselhos a ela, tenta usar Perth como namorado falso e, como ele não concorda, parte pra cima de Khem, que acaba se iludindo. 

Solo e Gui me conquistaram desde o começo. A construção de personalidades simples, sem afetação exagerada, é de uma beleza tão cativante. Não é preciso fazer barulho, ser colorido demais, para ser belo, aliás, a beleza do amor está nos pequenos gestos, num sorriso que acalma, num toque leve no cabelo que diz "eu estou aqui por você" ou uma companhia numa noite difícil de chuva em que é tão difícil pegar no sono. 

A primeira coisa que me encantou foi o jeito fofo do Solo mostrar que não nega o quanto está apaixonado, ele sorri com ternura, os olhos brilham de admiração e dizem em silêncio que ele quer a companhia do veterano pra sempre, que sem o carinho e a doçura que fizeram ele dar ao calouro aquele copo de leite morno ele não poderá mais dormir em paz. Gui deu a ele a tranquilidade que faltava num coração agitado e machucado. O veterano que trabalha no café e confeitaria é sério mas está sempre sendo atencioso e preocupado em cuidar e ver o outro bem, feliz. É preciso muita delicadeza para ver nos olhos de alguém o quanto essa pessoa sofre e do que ela precisa pra se aquecer: um gesto de carinho que possa trazer calor ao corpo e ao coração. 

Quem é que, em sã consciência, não deseja algo assim? Quem é que nunca desejou um amor perfeito, nem que fosse para satisfazer uma tristeza daquelas que nos fazem ver o mundo cinza? Não é de se espantar que ambos se tornaram a razão da existência um para o outro, sem esse amor já não podiam mais respirar, não podiam viver sem seu oxigênio. E isso é o amor, não a dependência, mas aquilo que traz sentido, aquilo que torna tudo colorido mais uma vez. E também é calmo e compassado como a própria respiração, que leva vida a todos os órgãos e mantém o corpo em movimento, fazendo a vida avançar mais uma vez, mesmo quando a noite chuvosa de pesadelos parecia não ter mais fim. 

Khao e Phu também são muito lindinhos. Aos poucos o coelhinho vai quebrando o escudo do veterano e encontrando um espacinho em seu coração. Phu vai se deixando levar também, no princípio sem entender direito mas depois vendo que, de todas as pessoas, só Kao pode ter um lugar especial em sua vida.

E a série segue assim, leve, mesmo tratando temas importantes, como abandono, morte de entes queridos e a construção do próprio futuro, apesar da vontade de outros. É a jornada de descoberta da própria vida. A narrativa é divertida, confortável, e é como se a todo momento a história te abraçasse. Não é preciso ter medo, a gente sabe que tudo vai ficar bem. 

A produção não é a melhor que vimos nesse ano. Os errinhos de continuidade aqui e ali são muitos e chegam a incomodar de vez em quando e, embora eu os ame de paixão, colocar dois atores sem experiência em papéis com tanta profundidade emocional pode decepcionar algumas pessoas. Eu já gostei bastante e me apaixonei perdidamente pelo Petch, a quem sigo fielmente no Youtube agora. O andamento pode incomodar um pouco também, dando a impressão de que nada de muito importante está acontecendo, mas isso pode ser tanto um defeito da direção quanto um artifício proposital, para mostrar que as coisas evoluem sim lentamente, particularmente eu prefiro a segunda opção.  A trilha sonora não tem muita coisa pra mostrar, com exceção da música tema, My Oxygen, cantada pelo Supanut (Solo) que é simplesmente uma das melhores músicas do ano, sem sombra de dúvidas. 

Toda essa atmosfera faz de Oxygen uma das melhores séries do ano, para mim, ficando atrás só de I Told Sunset About You. A delicadeza, o amor puro, a simplicidade, é isso que precisava um ano em que tudo parecia dar errado, onde todas as pessoas estavam saturadas de tragédias e pandemias. Oxygen veio como o ar fresco que precisávamos para parar um pouco e admirar a beleza, seja uma bela paisagem ou de um pequeno gesto de carinho, como oferecer uma xícara de leite quente a um homem com pesadelos.

Nota: 10/10

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Entre o sol e o inferno

Parece que o tempo finalmente realmente resolveu firmar, e escolheu a temperatura amena entre o Sol e o Inferno, deixando a gente com essa sensação de estar constantemente nadando no sovaco de um pedreiro, com marca de pizza e embaixo do braço e uma impaciência crescente, que só não se transmuta em vandalismo consumado porque pobre não pode fazer vandalismo com as próprias posses, senão que se contenta com uma ânsia e uma convalescença leve e demente em se imaginar fazendo xixi no túmulo das inimigas. 

Francamente me vejo incomodado, menos com o calor do que com a família com a qual sou obrigado a conviver e que, no caso a minha família, constantemente faz apostas clandestinas pra ver quem vai me irritar primeiro: minha irmã com sua cresce falta de caráter e bom senso, trazendo os piores tipos (sub-)humanos pra dentro de casa e descaso indolente dos meus pais que não têm pulso firme pra lidar com essa marginal e enviá-la pra qualquer lugar longe da gente pra enfim atingirmos a paz. Lamentável. 

Infelizmente desempregado num país onde os professores não só são massa de manobra revolucionária quanto desvalorizados e culpados por todos os problemas do mundo. Também não encontrei um homem bem sucedido que queira me sustentar em troca de companheirismo, e sexo de manhã, tarde e noite. Ganhar todas não dá mas perder todas não só é possível como bastante provável. Pelo menos o alisamento do meu cabelo deu certo, deve ser algum tipo de esmola do universo pra que eu não possa dizer que TUDO sempre dá errado, ah não, se eu disser isso vou ganhar de brinde um câncer no fígado por seu ingrato. Perdão oh universo maravilhoso!

Pelo menos agora já sinto passar o efeito da ressaca de vinho barato da noite passada. Quanto mais doce mais a gente se empolga, e quanto mais a gente se empolga mais o álcool faz o papel de sentar na mesinha do escritório mental e acessar os arquivos dos vacilos passados, enumerando-os em ordem alfabética e declamando em voz alta, fazendo a gente se sentir uma porcaria que não presta pra nada (não tanto quanto a minha irmã mas ainda assim uma porcaria), sentada ao lado da última pessoa que fez você se iludir e acreditar que o amor poderia trazer alguma felicidade a essa vida fútil. Que fofo!

Acho que estou sendo um pouco frankfurtiano demais, trazendo a crítica ostensiva a tudo que existe para a minha vida. Não, eu deveria enumerar as coisas boas também, mas talvez num próximo post (que não vou escrever), aqui eu só vou reclamar mesmo, e aliás, se achou ruim pode reclamar nos comentários também, já que eu só estou escrevendo pra esperar o Rivotril fazer efeito e eu esquecer dessa sexta medíocre em que sou assomado por pensamentos não só suicidas mas homicidas e de perspectivas de um futuro tão pessimista que fariam as distopias de Aldous Husxley e Suzanne Collins parecerem verdadeiras utopias, um céu na terra. 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Menos

Eu estou quase sempre com o o celular em mãos, pulando de uma rede social para outra e, quase toda hora, dou de cara com algum artista asiático, seja um ator de BLs tailandês, famoso pelo fanservice e propagandas de vitaminas para a pele, ou o idol coreano que arrebanha multidões de garotas apaixonadas... Todos eles têm algo em comum: fazem parte de um seleto grupo que possui um padrão de beleza praticamente inalcançável para alguém como eu. 

Todos tem a pele clara e sem manchas, os olhos bonitos, o cabelo bem cuidado, sempre liso, caindo numa bela franja sob um rosto harmônico, um sorriso fofo, uma expressão séria sedutora. São, na minha opinião, o que há de mais perfeito na beleza masculina de todo o mundo. Não consigo imaginar quem possa ser mais bonito do que um Tay Tawan, um Gulf Kanawut, um Jungkook ou um Eiji Akaso. Mas todos são, como disse, membros de um seleto grupo, um panteão de homens cuja beleza servem de inspiração para tantos mas que, quando visto sob o prisma de alguém que se encontra no lado diametralmente oposto ao deles, só serve para detonar o que resta de uma autoestisma já bastante combalida para conseguir reerguer-se após mais essa derrota. 

Como não olhar para um First, Kanaphan ou Chalongrat, e não sentir-se rebaixado, ao mesmo tempo em que deseja aqueles traços finos, delicados e belos? Como não sonhar com esses anjos de perfeição, enquanto se olha no espelho e vê algo como um animal que não saiu completamente da selvageria de seus próprios pelos, que ainda vive na própria pele imunda a emitir grunhidos e latidos como uma fera? E a coisa piora ainda mais quando vejo que nem mesmo os mesmos adereços e artifícios que eles usam servem para me ajudar. A maquiagem não cai da mesma forma, as roupas não funcionam para emoldurar a beleza, os óculos, as cores, o penteado, tudo o que neles realça e destaca ainda mais algum aspecto já bonito de seus seres, em mim serve apenas para macaquear e fazer parecer com um palhaço. 

Um outro traço característico dos asiáticos é a versatilidade da imagem. Homens feitos usam uniformes de colegial e se passam como estudantes do ensino médio sem nenhuma dificuldade. Se numa foto dá pra parecer com um bebê fofo, num comercial de produtos pra pele ou algo do tipo, na outra a sensualidade é aflorada com apenas o abrir de alguns botões da camisa ou com um iluminador corporal e um olhar profundo. Quando tento fazer algo do tipo o resultado não é nada mais do que patético. 

E é cada vez mais frustrante, perceber que não há nada em mim que me agrade ao olhar. Os defensores da beleza interior defendem que isso não é importante, que há uma série de qualidade interiores maiores e mais bonitas, ou que a própria definição de belo é relativa demais para apenas os asiáticos serem realmente bonitos. Mas a verdade é que ninguém acredita nisso. Eu, pelo menos, não vejo nisso mais do que um consolo patético ao fato de que, perto deles, qualquer um deve se sentir menos do que um nada. Não há como comparar um corpo atlético ou um rosto perfeito com o meu, a comparação simplesmente não é possível pois se tratam de coisas tão distintas entre si que são separadas não por um continente, mas um universo inteiro, entre o homem e o animal que se veste de homem, entre a besta de cara peluda e nobre príncipe. 

A autoestima cada vez se destrói mais, se reduz, pouco a pouco, em cada sorriso, em cada foto, em cada curtida, e se perde na tela que se escurece, nas lágrimas que se derramam no travesseiro, nas mensagens que não chegam, nos sentimentos que não são correspondidos. Aos poucos vira cinza, a cinza fria que se perde no vento, que só pode acariciar as pétalas da bela flor, antes de se dissipar de uma vez por todas no céu de um mundo de deuses e príncipes, onde as bestas foram erradicadas, exiladas nos pântanos e nas florestas profundas, longe da luz do sol, para que ninguém veja tal coisa grotesca. 

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Frizz

Os últimos dois ou três dias têm sido sonolentos, e essa é a melhor definição que encontrei para eles em meu parco vocabulário. Embora o cansaço seja em parte responsável pela minha estadia demorada na cama, pela minha preguiça em responder, pelos compromissos adiados, pelas pálpebras pesadas e visão enevoada, pela impaciência generalizada, também tem culpa a minha decepção, novamente provocada pelo meu ímpeto atroz e apaixonado, pela minha veia luxuriosa, pela carência permanente que há muito, desde antes que consiga me lembrar, tomou o meu ser, desde os fios de cabelo arrepiados de frizz até cada pequena fibra dos meus músculos. 

É aquilo que já faz parte de mim, uma característica que renego com veemência mesmo sendo ainda mais marcante do que o brilho do meu olhar. Isso porque ela guia a maior parte das minhas ações, é ela que guia muitos dos meus pensamentos, é ela que dá sentido aos meus abraços, aos meus beijos e a todos os meus relacionamentos. É ela que me guia, seja para o céu azul ou o inferno, com mais clareza que a luz que brilha ao meio dia. 

Essa carência tem tantos impactos no meu eu que a cada dia eu me surpreendo com alguma demonstração sua, em algum lugar que eu não esperava, por algum motivo que eu não esperava. Seja, deitado sozinho, numa cama que repentinamente se tornou grande demais para o meu pequeno corpo, seja olhando no espelho, com desgosto, para a cor suja da minha pele, para o meu cabelo sem forma, ou ouvindo com desagrado a minha voz. A verdade é que olhar ao meu redor e não ver ninguém, não sentir um abraço ou o um o coração batendo forte, me faz procurar em mim todos os defeitos que possam explicar os motivos de estar assim, sozinho. 

E é por isso que tanto me cobro, para que o pouco que fizer seja feito bem feito. Mas é também por isso que eu muitas vezes prefiro não fazer nada, simples assim, não fazer nada! Ficar deitado, me concentrar apenas nos acordes de sonatas e suítes, é melhor do que pensar em qualquer outra coisa. Ignorar as imagens e as vozes que surgem na minha mente, me lembrando coisas que eu quero esquecer, e mesmo quando o sono se esvai, ainda tem a amizade dos benzodiazepínicos, que me socorrem nesses momentos. É melhor dormir e apagar do que ficar sonhando acordado com coisas que nunca vão acontecer, querendo a companhia das pessoas e o carinho que eu nunca vou ter. É melhor desaparecer do que insistir numa existência que só é capaz de trazer dor e solidão, do que pensar em verdades que sobre as quais eu prefiro não saber.