sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Devorar

O vento bate com violência na janela, parece que vai chover mais tarde. Isso é bom, ao menos ameniza o calor desagradável, ao menos me dá oportunidade de ficar deitado aproveitando esse clima agradável, mesmo que isso signifique ser acossado por pensamentos que eu não consigo controlar. GETSUNOVA e suas músicas com letras românticas não me ajudam muito, embora sejam a minha companhia ideal. 

Ainda naquela linha tênue entre o sono e a vigília, sentindo certas partes do meu corpo acordadas, enquanto o resto se encontra em uma dormência letárgica. Aquela imagem continua aparecendo, de novo e de novo. É aquele rosto, que me recorda o toque de sua mão, que me recorda o bater de seu coração, quando sobre seu peito a minha cabeça repousava, sentindo o perfume doce do seu hálito. É uma lembrança doce, mas as lembranças são romantizadas, e eu não queria me lembrar disso. 

Não queria porque eu só pedi que me abrisse o coração, que se mantivesse aberto ao meu amor, e a minha resposta foi uma negativa. Ele não me quer em seu coração, aliás, ninguém quer, e essa negativa reverbera dentro de mim com a mesma força de um eco em montanhas altas, ocultando um grandioso e infindo abismo, o mesmo abismo que cavei com as minhas esperanças, e o mesmo abismo que preenchi de água, das lágrimas que através dos séculos incontáveis escorreram do meu rosto, uma a uma, representando cada vez que meu pensamento me traiu e eu fui obrigado a lembrar de todos os momentos que me fizeram crer que ele também me amava, 

O vento bate com violência na janela, e as memórias pululam sem controle algum, eu sinto meu coração apertar, o corpo estremecer, e eu quero fugir. Tenho fugido a semana inteira, tenho me escondido tão no fundo do meu próprio quarto que muitas vezes nem mesmo eu sei onde estou, isso porque a paisagem ao meu redor ainda seja dos móveis e da parede descascada, eu não sei mais por onde tenho caminhado, não sei aonde me levará o caminho que estou trilhando e, pra ser sincero, eu acho que nem me importo, contanto que me levem para longe daqui, para um lugar onde eu não exista ainda, para onde possa me reapresentar, ser um novo eu, onde possa redescobrir quem é o outro em relação a mim, onde possa olhar ao meu redor sem sentir que gostaria de tê-lo aqui comigo. 

E, por não tê-lo comigo o meu corpo reage instintivamente, fazendo meu hipotálamo mergulhar num oceano de hormônios devastadores, me transmutando naquele conhecido demônio, incontrolável em sua sede luxuriosa, insaciável em seus desejos bestiais mais primitivos, sedento pela carne e pelo sangue. E um ciclo amaldiçoado, que se inicia num sentimento puro, desejoso de companhia, que na verdade é uma carência disfarçada, pervertida, e que termina por desnudar-se num monstro que domina por completo, que faz questão de cravar bem fundo suas garras, de perfurar com violência suas presas, se deliciando com o aquele néctar quente, com aquele olhar de quem deseja simplesmente devorar, um berserker sem controle, ansiando apenas por morte e destruição.

Mas, no fim das contas, abaixo até mesmo da abissal escuridão donde se esconde esse monstro, há um eu, o eu, que apenas anseia por uma coisa, que apenas anseia por conhecer, finalmente, o amor, um grande amor, o verdadeiro amor. Por trás do homem há o demônio, a fera que grita EU no coração do mundo, e por trás do demônio há um pequeno garoto, que só quer saber de amar, de amar e ser amado. 

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