domingo, 31 de dezembro de 2023

Ano Novo

O meu coração fica sim apertado de saudades, nós dois sabemos, eu acho, o quanto você é importante para mim. Mas eu sei bem que, enquanto eu penso, o mundo todo é um parque para você e, contemplando as paisagens do interior você imprime nelas a sua própria vontade, o seu sonho de, um dia, numa casinha branca de varanda, passar esses dias de Natal ao lado de sua esposa com as crianças ao redor da mesa. 

E ainda me perguntou se eu poderia um dia compor essa paisagem impressionista de doces idílios. Não pretendo viver tanto, e se viver, contra minha vontade, espero estar distante para não me machucar com o que, mesmo sendo apenas uma imagem, já é como se você cortasse minha carne com aço frio. Mas tudo bem, entendo que é seu sonho, eu só não faço parte dele. Eu não faço parte de nada.

Mas sim, eu sinto sua falta. Mesmo lembrando que, naquela madrugada, enquanto eu quase em prantos dizia o que sentia, você se preocupava com a filoteia. E fiquei acordado a noite toda, sem conseguir pensar em mais nada, como faço todas as vezes em que sinto sua falta... Não espere que multiplique essas palavras. Embora meu coração saiba que quer gritar, eu sei que não adiantaria, então, quando retornar, dos belos campos, espero que meu silêncio lhe baste, já que meu amor não bastou.

X

"Então vozes ouvi; me parecia,
Que paz, misericórdia suplicavam
Ao Cordeiro, que as culpas alivia."
(Dante Alighieri)

Não vou desejar um feliz ano novo para ninguém. Seria feliz se não houvesse ano novo, se tudo acabasse à meia noite, se nos sobrecaisse uma escuridão e tudo voltasse ao nada! Mas amanhã tudo recomeça, com a essa impressão de que algo de novo se dará, que as vidas mudarão, que se abrirão uma longa lista de possibilidades; Mas, não se enganem, e ouça-me bem querida, preste atenção, o mundo é um moinho. Esse ano que se inicia vai se aproveitar de cada expectativa otimista para, justamente, triturar seus sonhos e reduzir suas ilusões a pó.

Não é um novo ciclo que se inicia, é apenas a longa roda da tortura que torna a girar, com a espada do destino ameaçando cair a qualquer momento. 

Vou para a Missa, chego e tomo uma boa dose de caipirinha e torço pra não acordar com o barulho dos fogos. Não crio expectativa nenhuma, assim evito as decepções, e espero o pior. E o mais que faço não vale nada. Realmente seria bem melhor se, ao invés de um novo ano de solidão e de trabalhos sem propósito, se eu conseguisse ver sentido em algo, ou que não houvesse um novo ano. Quem sabe, pela misericórdia, eu não acorde no primeiro dia de janeiro.

Muitos pedem então, sejam em preces a Deus, aos orixás, ao universo ou ao que quer que seja, um ano de paz, prosperidade, um ano de conquistas. Muitos esperam por dinheiro, uma melhoria nos empregos, por aquele amor dos sonhos... E enquanto isso, observando a procissão de almas brancas, eu só consigo, suplicante elevando os olhos a vós, ó Pai, fazer uma prece silenciosa de que não chegue o amanhã e o novo ano. E, por isso, não vou desejar um feliz ano novo para ninguém. Seria feliz se não houvesse ano novo, se tudo acabasse à meia noite, se nos sobrecaisse uma escuridão e tudo voltasse ao nada!

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Com tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço porquê?
É uma sensação abstracta
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...
(Álvaro Campos)

sábado, 30 de dezembro de 2023

O meu requiem II

Ah, quem me dera eu pudesse ser
A tua primavera
E depois morrer
(Vinícius de Moraes)

Talvez tenha sido o pior episódio depressivo que tive em mais de um ano. A última vez que fiquei debilitado assim ainda estava em Valparaíso, naquela casa, abandonando toda e qualquer perspectiva de existência, e abandonado pelos amigos, já sem esperanças até para minha família. 

Uma vez mais eu clamei pela morte, disse isso francamente, eu não via nenhuma razão para continuar aqui, estava sendo sincero. E não acho que alguém tenha levado isso à serio. Nunca levam, todos acham que quando falo sobre a morte é movido por um desespero por atenção. Não é verdade, tanto que não digo a ninguém da minha resolução, dessa decisão profunda, silenciosa e cheia de convicção, que é partir quando minha mãe já mais estiver aqui, sendo ela a razão para não ter feito isso ainda porque, em primeiro lugar, lhe causaria dor demais, e sei que nesse tempo todo ela foi a única que não desistiu de mim, então não posso deixar de lhe prestar auxílio em sua velhice, muito embora ache que sua esperança em mim seja tola e infundada. Ela é só mais uma que se recusa a ver a verdade. No mais a minha existência está limitada pela dela, não vejo nenhuma razão para continuar aqui se não for por isso. 

E é por essa razão que clamo para que seja levado sem que eu intervenha propositalmente, afinal permanecer aqui ainda me é custoso, e não raramente, como nos últimos dias, me vejo no limite da tolerância de qualquer aspecto do ser. A essa altura o ser cansa. E eu só queria voltar ao nada. 

Vou, como num vídeo de alguma música melancólica genérica, olhando pela janela do ônibus mas com a mente distante, pensando nele, em outro estado, numa festa com outras pessoas, as mulheres e os homens dando em cima dele sem que ele perceba, todos com sentimentos libidinosos, e ele nem diferencia eles de mim, age como se fôssemos todos iguais, como se meu amor, esse amor que me dói até o tutano, fosse igual a atração que esses pervertidos têm ao olhar uma figura pura como a dele. Será que, ao fim de tudo, eu serei como eles? Por isso ele sequer olha para mim de outro modo?

Percebo então que continuo ouvindo os compassos desse meu requiem, a sinfonia final, ao notar que, nessa manhã fresca, em todas as infindáveis possibilidades do ser, eu me via apenas pensando em você. E sempre vou alternando as minhas narrativas como se falasse diretamente a você ou em frente a um espelho. E você disse que não merecia meu amor, não é a primeira vez que o diz, e entendo nas entrelinhas que, em verdade, era apenas uma tentativa de se desvencilhar de mim. Eu sei como é isso.

Seja rejeitado mais vezes do que é possível contar, seja abandonado e vire motivo de risos paras as pessoas que mais ama e de desprezo para aquelas que mais preza, e logo você começa a perceber com mais facilidade que a sua presença é dispensável, trivial e até mesmo incômoda. 

Droga, queria não ser tão patético assim.

Queria poder ser, como naquelas histórias, um assassino impiedoso que conserva sua força ainda depois de mil anos, ou um general brutal que traz de volta os mortos pela sua espada, aquecendo as suas cinzas e fazendo-os sentir novamente a euforia da batalha. 

Mas não, eu sou apenas uma pétala de flor, em singela aflita pela chuva fria, solitária, observando silenciosamente um largo e vasto campo onde, ao longe, duas crianças brincam sob o olhar carinhoso dos pais numa choupana quentinha sem que, no entanto, se deem conta da minha presença ou que possa deles me aproximar. Há diferença entre as cenas bonitas, as declarações românticas, os olhares carinhosos e as pessoas que fazem sexo nos banheiros sujos das estações, entre aqueles que traem em carros apressados. Há diferença entre a flor e a espada em chamas. Há diferença entre a primavera e a morte.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

O meu requiem

"Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento."
(Vinícius de Moraes)

Não sei se você já fala assim comigo por costume. Tem algum fundo de verdade nas suas declarações de amor eventuais quando se despede de mim? Você realmente me ama ou apenas o diz por carinho e afeto, e todo o amor que sinto advém de uma interpretação errônea movida pela minha carência e pelo sentimento que eu tenho por você? Aliás, sequer faz alguma ideia da quantidade de palavras que brotam do meu coração e que são como uma infindável fonte de declarações? Às vezes me parece que eu gosto mais de você do que de todas as outras pessoas, e gosto mesmo, porque acho que a grande maioria das pessoas são apenas um desperdício de espaço a da minha paciência... Mas também sei a verdade, e sei que meus sentimentos por você também podem ser considerados um desperdício...

Há dois dias não vou ao trabalho, acredito ser o início de uma estafa, tenho estado bem mais cansado que o normal e praticamente não tenho conseguido nem ficar de pé direito. A alergia me pegou de jeito, dores por todo o corpo, a voz sumiu e sinto como se tivesse atravessado a nado a bacia do rio Amazonas ou desmatado a tapa toda a floresta que o rodeia. Estou acordado, realizando funções, mas ainda sem a capacidade de discernir uma pessoa de uma cômoda. 

Preciso descansar, isso é fato, mas mesmo que eu durma por dez ou doze horas parece não ser o bastante, no dia seguinte o meu corpo continua tenso, a minha mente começa a girar rapidamente e, várias vezes, me surgem rompantes de choro ou de desespero que preciso segurar, que preciso engolir. E a paciência se esvai como fumaça ao vento, a força nos membros não existe mais e o semblante permanentemente cansado, exausto, absolutamente exaurido. 

Pretendo dormir o resto do dia, sim. Pensei até em deitar na sala, com as portas abertas e sentindo o vento fresco do mar aqui perto passando por mim, mas acho que o quarto é mais adequado. Gosto, ou necessito, de ficar deitado por horas, mesmo durante o dia tiro algum tempo para deitar, no chão do banheiro que seja, com um lençol, cobertas ou um pano qualquer na cara. É bom ficar assim, nada acontece ali, nenhuma pessoa, nenhum amor não correspondido. Nada. 

Penso agora, brevemente antes da dose cavalar de remédios para dormir fazerem efeito, o quanto as pessoas são frágeis e se ofendem por pouco, enquanto aquilo que é importante lhes escapa pelos dedos. Tudo isso parece abstrato né? Deixe-me ilustrar com algo tanto mais palatável:

As pessoas normalmente se reúnem para ter ideias para as missas mais importantes. Surgem sempre então pessoas fantasiadas de santos, encenações, dancinhas toscas, tudo ao som de alguma musica sentimental daquela banda horrorosa que eu prefiro não mencionar o nome... Tudo aparece nessa hora menos, é claro, as instruções, orientações e até mesmo as proibições oficiais. Tudo é feito de modo a "atrair mais pessoas" para a igreja mas justamente tratando as pessoas como idiotas com teatrinhos e brincadeiras baratas. A seriedade, a solene sobriedade da liturgia é deixada de lado. O importante é considerado prejudicial e, o que nem deveria ser questionado, é colocado como o mais importante.

Finalmente aconteceu, o dia que não teria mas forças para nada e, quando olho na direção dele, buscando uma luz, não vejo mais do que escuridão silenciosa e solitária. Depois de dormir por dias inteiros eu percebi que meu problema não era um simples cansaço que poderia ser resolvido descansando, é bem mais sério do que isso e eu não sei o que posso fazer para mudar. Não é cansaço, não é a necessidade de novos ares, tampouco acho que seja apenas a depressão. Pode ser tudo isso ou nada. Eis a minha estafa, talvez o primeiro movimento do meu requiem.

Mas, mudando de (ou voltando ao) assunto...

Suponho que as partidas serão cheias de euforia pela comemoração, e nas várias horas em que eles estarão absortos em seus jogos e seus prêmios, ele pensará em mim, no que eu estou fazendo? Eu me odeio tanto por isso. E como eu daria tudo para não sentir nada mas continuo aqui, sentindo, e sentindo muito, e repetindo, ao mesmo tempo em que tento abafar a voz que grita, louca e desesperadamente que te amo. 

Eu te amo, 
eu te amo, 
eu te amo!

Eu te amo...

Eu... 

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

As pessoas lá fora

Novamente enquanto passava por uma área comercial da cidade, num dia atípico para mim pois quase não saio da rotina casa-trabalho, me passava pela cabeça o quanto acontece no mundo fora do meu pequeno horizonte de consciência. Constatação básica para um filósofo, ou um adulto, mas se bem percebo das pessoas que conheço quase ninguém sabe disso, mesmo sabendo-o assim mesmo. Acontece que, mesmo sabendo que há um mundo lá fora, e por lá fora entenda-se tudo aquilo que ultrapassa os vinte ou trinta metros dos lugares que trabalhamos, ainda assim não temos muita noção que, lá fora, o mundo continua. 

Têm pessoas trabalhando no sol quente, outras entediadas num escritórios refrigerado, têm pessoas buscando mudar a decoração de casa e tem gente pensando em qual restaurante caro almoçar ou jantar. As possibilidades são tantas quantas pessoas existem por aí. Em algum lugar à beira da praia pessoas trabalham servindo outras que estão de férias ou folga. 

Não é a descoberta de um país, apenas percebi que eu venho, novamente, me fechando em um mundo absurdamente pequeno e, da última vez que deixei isso acontecer, acabei saindo gravemente ferido, numa depressão que ainda hoje me assombra. Não posso permitir, mesmo que o sol brilhe forte lá fora eu preciso me lembrar, todos os dias, que o mundo não termina nos limites das portas do meu trabalho ou da minha casa. Há um mundo de possibilidades, um mar não longe daqui que se estende imensamente e um céu que se abre infinitamente. 

Ainda que os tentáculos gelados da depressão me apertem a voltar para o fundo eu preciso, de algum modo, subir até a superfície novamente e respirar... 

Percebo também, um pouco para além da dicotomia do meu transtorno bipolar, alguns sinais de estafa, o que não me surpreende, já que as pessoas parecem não notar em nenhum momento que eu faço bem mais do que uma pessoa daria conta. Quando percebem apenas comentam, de todo não fazem nada efetivamente, além de cobrar como se nada disso estivesse acontecendo. E sei que, ao fim disso, ainda vou sair como errado, preguiçoso, é sempre assim. Enquanto eu dou conta de tudo, sou querido e elogiado mas, agora que o peso do cansaço e da fadiga cobram uma taxa do meu corpo e da minha mente, quando isso chegar ao ponto de já não dar conta de tudo o mais, eu serei descartado.

Bom, a verdade é que nós só nos importamos quando fazemos algo valioso, ademais, maybe they just don't give a damn...

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Quem sabe dessa vez

Estou certo de que tinha algo a te dizer. Não estou completamente louco ainda. Me recordo de pensar em você em alguma das lojas que passei, nem sei ao certo o motivo. Comprava vasos de cerâmica e remédio para dormir e acho que, em algum momento, pensei em como seria se comprasse coisas para nossa casa, mas foi um movimento rápido e, com um aceno que passou despercebido aos transeuntes cansados ao meu redor, o pensamento se dissipou de tal modo que, agora, eu me recordo de ter pensado, mas sem saber o que pensei, sendo que só me recordo de que pensei em você, o que não é nenhuma novidade. 

Ah, me lembrei que foi no carro, na volta pra casa, quando pensei que hoje conversamos bem menos do que alguns meses atrás. Ambos ocupados demais, talvez, mas é certo que, se já não ocupo um lugar de destaque nas suas mensagens tampouco o sou no seu coração, e vinha pensando justamente isso, enquanto cantarolava baixinho para o motorista venezuelano não ouvir, aquela música da Kristin Chenoweth.

"Maybe this time I win..."

Nem preciso dizer que não, não acho que eu vá vencer. Aliás, acho até que se fizer algum exame vou descobrir, com certa alegria admito, que não me resta muito tempo. Mas, de todo modo eu sei que não há modos de vencer, mas existe uma parte, pequena e irritante de mim, que ainda acredita que, se não nessa talvez numa próxima, eu possa ocupar no outro o mesmo lugar que ele ocupa no meu peito, e aí sim então, talvez dessa vez eu vença. 

Mas não agora, não hoje quando volto pra casa cansado de trabalhar sob uma forte crise alérgica, com o corpo dolorido e principiando uma febre... Quem sabe na próxima, quem sabe quando conhecer alguém inesperadamente, sem o procurar pelas janelas ou do outro lado da plataforma, quem sabe dessa vez eu vença...

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Brisa de Natal

É impossível nesses dias de calor extremo, no verão joinvilense, não me ater a ficar irritado o tempo todo e só conseguir alguma veia poética ao sentir a brisa fresca que, felizmente, onde moro sempre vem... 

No meio de um almoço em família, incomodado com o calor e o barulho das crianças, não pude deixar de permitir que meu pensamento voasse para longe, claro, me imaginando numa praia ou próximo de um rio, à sombra de árvores, quem sabe uma cerveja ou uma companhia, um livro ou cantando baixinho. 

Talvez me animasse até com uma caminhada, sob a sombra claro. Uma trilha iria bem se o destino final fosse uma fonte de água fresca. Ainda não conheço muitos lugares interessantes aqui, vim para trabalhar e não saí muito desde então, e sei que preciso mudar isso. Preciso andar mais um pouco, sentir outras brisas, molhar os pés e caminhar na praia, sem pensar muito em nada sério, porque pensamentos assim sempre insistem em aparecer, e a saudade aperta nessas festas de fim de ano, e eu percebo que termino mais um ano sozinho, enquanto na internet todos estão sorrindo, apaixonados, felizes... 

Não fiz fotos de Natal, não tenho um namorado que possa me acompanhar também, tampouco amigos, e sei que na igreja eu sou antes um cara apegado à regras do que um companheiro. 

Então acho que seria bom caminhar, ouvir o canto dos pássaros e sentir o vento bater em mim e nas folhas ao redor, e deixar esses pensamentos, solitários, de um vazio imenso e angustioso, irem embora... É acho que seria bom. 

"Minha alma embriagada de cerveja é mais triste que todas as árvores de Natal mortas do mundo." (Charles Bukowski)

domingo, 24 de dezembro de 2023

In principio...

"In principio erat Verbum et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Verbum. Hoc erat in principio apud Deum" (Jo 1, 1-2)

Me sinto triste e solitário no Natal, e tudo que queria, já que me é impossível passar a noite ao seu lado, é que pudesse ao menos participar de uma Missa dignamente celebrada. Sim, eu sei bem que a validade do sacramento independe do estado ou não de graça do celebrante ou dos ministros que o celebram, porém, também é verdade que tanto mais bem celebrado mais favorece a virtude cristã que, reconhecendo na Divina Liturgia a dignidade de Deus, consegue tornar a sua vida tanto mais virtuosa e digna também. E Deus o sabe quanto estou precisando. 

Não é muito notado por muitos que a mudança de certos costumes e a introdução de outros desviaram completamente o centro da liturgia. Colocamos o homem no centro de tudo. É pedido que as pessoas cantem tudo, que se fantasiem, entrem em procissões, que inventem momentos e reflexões. A todo momento se quer inserir algo, alguém, e não é o Cristo. 

É triste ver que, como a Sagrada Famíllia não encontrou pousada na noite de Natal, tal qual Jerusalém desterrada nos lamentos de Jeremias, até mesmo em sua Igreja nos colocamos no lugar de Cristo e damos a ele a estrebaria enquanto festejamos com teatros e cantorias. Mas isso não impede que ele venha, que ele nasça, e que santifique o mundo com seu piísimo advento. Mesmo que os homens não tenham lugar para Cristo, nem mesmo na sua Igreja, ainda assim os pobres e os anjos cantarão "Glória in excelsis Deo"

Que possamos então preparar nosso coração para que o Menino Deus seja nele recebido, na simplicidade mas na auteticidade de um coração contrito e humilde. Que tenhamos um feliz e santo Natal! 

"Et Verbum caro factum est, et habitavit in nobis: et vidimus gloriam ejus, gloriam quasi Unigeniti a Patre, plenum gratiæ et veritatis." (Jo 1, 14)

sábado, 23 de dezembro de 2023

Cartas perfumadas

Arrependimento, Morteza Katouzian

Alguém disse que é atento aos detalhes, eu também. Percebo em sutilezas o que querem me dizer e não têm coragem. Mas, pouco a pouco, eu me coloco em meu lugar. 

Vejo que a maior parte das pessoas não sabe o lugar delas. Elas não se tocam que devem se calar ou não se meter quando ninguém perguntou, se intrometem e julgam o que não tem porra nenhuma a ver com elas. Pessoas assim são um saco de conviver pois, estando elas mesmas num lodaçal fedorento, se julgam do alto de um trono olímpico capazes de dizer a todos o que fazer. 

Também percebo isso na sutileza daquilo que não dizem, mas fazem. E isso às vezes me deixa confuso, sabe, quando aquele rapaz é pessoalmente simpático mas virtualmente parece incapaz de continuar uma conversa comigo... E pode ser apenas por inépcia em manter ou fluir um assunto, já que pessoas muito novas tendem apenas a saber falar muito sobre bobagens, mas de todo modo isso me deixa confuso e decidido a não falar mais com ele, mas aí nos vemos no dia seguinte e, mesmo sendo um domingo frio e preguiçoso ele sorri na minha direção e eu me derreto todo. 

Em outros tempos em escreveria longas cartas, talvez numa caligrafia caprichada e um papel rústico perfumado, e não as enviaria, ou talvez continuasse enviando mesmo sabendo que não receberia resposta. De todo modo, sem caligrafia ou papel, continuo escrevendo palavras que, dia após dia, ainda são longas cartas de amor, que nunca recebem resposta senão nas sutilezas que vejo. 

Muitas vezes a resposta desatenta dada a outros é a resposta que daria a mim. O que você disse aquele moço desatento que se atreveu a flertar com você. Aquela resposta foi, senão para mim diretamente, o que sim eu acho que foi, ao menos um aviso de que, se cruzasse certa linha, um dia serei eu a receber um fora bem dado e, diga-se, merecido. 

Por isso então é melhor que apenas essas páginas, não amareladas pelo tempo e sem o meu perfume mas completamente ébrias dos meus sentimentos, recebam as letras escarlates de meu afeto. Não há muito que eu possa fazer. Seja no silêncio ou nas respostas captadas por tabela, eu vou compreendendo, cada vez mais, que o meu lugar é sozinho, suportando tudo isso. Sem bravura ou heroísmo, eu sou só o homem fraco, gordinho, com o sangue cheio de remédios e álcool. 

Uns passam por
tudo isso
com uma certa
quantidade de
eficiência e
bravura
e então
vão embora

Alguns aceitam
a possibilidade de
Deus 
os ajudar a suportar

Outros
aguentam o tranco

E para estes

Eu bebo esta noite.

(Charles Bukowski)

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Na corte de Paris

"Tudo aqui é realmente espetáculo, comparação e instrução." 
(Honoré de Balzac)

Me recordo de ter ido dormir na esperança de que a dor de cabeça passasse e, na manhã seguinte, acordasse estabilizado mas, embora tenha sido um despertar mais tranquilo não foi completamente estável, senão que agora, nessa manhã absurdamente abafada, enquanto fico embaixo de um ar condicionado brutalmente frio, sinto minha face doer, num misto de sinusite incômoda e de uma depressão insistente. 

Nesse momento pessoas sorriem na minha frente. Um grupo de caras usando camisa branca e shorts pretos de malha leve no que parece ser uma conversa pouco mais interessante que uma convenção de direito tributário. Um em particular me chamou atenção pelo físico avantajado: o peitoral forte salta pela camisa com estampa de restaurante franco-chinês e me captura o olhar, sendo um dos mais belos par de costas que já vi, sério ele poderia abraçar dois de mim e ainda sobraria espaço... O rosto forma um contraste com o corpo, é doce e ingênuo, de um sorriso meigo e quase infantil. Mas é claro que ele sequer olhou pra mim e, se olhasse, não veria mais do que um espécime inferior, que ele jugaria digno de olhar apenas se frequentasse academia na mesma frequência que ele. 

Não ironicamente na perspectiva de ser julgado negativamente por ele eu mesmo incorro no julgamento. Acho que tenho estado tão habituado a miséria moral que me rodeia que, mesmo abominando isso, acabei por me tornar um arremedo moral, disforme e de hipocrisia crescente. 

E fiquei então olhando para aquelas pessoas, seus sorrisos, as construções de tantos personagens bem ali diante de mim. Duvido muito que eles tenham lido alguma página realmente interessante de poesia. E, no entanto, todos estavam ali supostamente para celebrar a poesia. Não irônicamente nenhum verso foi declamado, nenhum poeta citado. As fotografias daquele livro eram mais poéticas do que os versos que sao resultado dos relacionamentos fracassados do autor. Bom, ao menos ele consguiu plasmar algo pelo menos parecido com poesia, a arte não morreu de toda, embora essas pessoas aqui na minha frente pareçam mais uma procissão de mortos ou de artigos de museu.

E que tédio ter de sorrir o tempo todo, falar como se todos fossem interessantes. Se me pergunto qual a maior realização de alguém ali eles respondem com seus cargos, com suas articulações sociais. As suas personalidades são cindidas, não são pessoas completas, são pessoas que trabalharam nesse ou naquele orgão e que, por conhecer essa ou aquela pessoa, se tornaram de algum modo importantes. Mas ainda não consigo entender ou enxergar o que fizeram. 

É que existe diferença entre ser alguém com um propósito realizado ou, ao menos, intentado e alguém que simplesmente conhece outros alguens. Que desgraça!

Não tenho como disfarçar o descontentamento e o olhar distante. Será que as pessoas já chegaram a ouvir sequer um único ato de alguma ópera ou balé? Já terão lido uma página eterna que não para citar a alguém antes de enfiar o pau nessa pessoa? Ou só vãos aos teatros pelas conversas nos intervalos e nos jantares que se seguem e só acumulam frases esparsas dos livros, sem que elas lhe construam a personalidade. Só estão ali pela eterna e repetitiva celebração. Do que? Não sei dizer, mas celebram algo e, pela alegria com que o fazem, foi realmente grande. 

Tomando então a frase do poeta, "eu os olho com os olhos lassos, e há nos meus olhos ironias e cansaços e cruzo os braços!"

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Dois bobos

A Kiss, Nickie Zimov

Somos dois bobos não é? Eu, sentimental e exageradamente dramático fiz você, que tem o costume de tomar toda responsabilidade para sim, acabou acreditando que meu estado apático e de quase permanente niilismo se deve a você. 

Mas não meu caro, por favor não o creia. Minhas palavras são expressão do que sinto, de fato mas, no oceano da experiência da miséria humana o que consigo descrever é apenas a superfície das águas geladas e profundas. 

Decerto o amor, o qual boa parte é devotado a você, fez com que muito sentimento fosse voltado a ti, e é verdade que nesse mundo tão incômodo, tão feio, que tem horror a toda e qualquer experiência bela, superior ou sublime, ele ganhou destaque, mas mais pelo imediatismo e a pela intensidade do que pela destruição. Trata-se da última pétala ainda rosa nesse jardim morto pelo bater de asas infernais dos espectros de Hades.

E por isso, por estar tão perto, é que me expressei assim. Mas, em verdade, me sinto morto demais para me chatear por ter sido recusado por você. Doeu, e ainda dói, mas você não é causa, nem sintoma e nem agravante do que se passa comigo, eu já estava assim desde muito antes de te conhecer. Eu já havia perdido esperanças e me transformado em uma casca vazia desde antes de sermos amigos. Eu só não sabia ou, ao menos, não sabia dizer. 

Meu amor por você é, portanto, a porção ainda cristalina que, mais à frente, desagua num lodaçal. O amor foi a última mentira desse mundo, o último murmurar da desesperança em meus ouvidos, que me fizeram crer que poderia haver de bom, belo e sublime nesse mundo. Não o há. 

O amor foi só mais uma das mentiras dessa existência.

Minha revolta, portanto, não é contigo que continuo a amar e que uma das poucas coisas que me fazem algum bem, não. Minha revolta é contra o Ser, é contra aquilo mesmo que me infunde existência e que constantemente me sustenta na realidade. Minha revolta é contra aquilo que há e que me faz ser. Minha revolta é uma infelicidade profunda, um descontentamento bruto contra a própria existência. Essa revolta, que me faz caminhar a cada dia sem esperança de nada, fez com que meu único desejo agora seja o de voltar ao nada. Apenas. 

Então, por favor, não se deixe levar pelas minhas palavras. Não abanadone seus sonhos, não permita que minha desiulusão o tome pois a vida sem esperança é muito triste. Agarre-se aos seus sonhos, às suas aspirações, e as segure com força, não permita se tornar uma casca vazia como eu. Eu te amo, eu te amo, eu te amo e não quero que seja como eu. E não se preocupe comigo pois, se eu hoje sou apenas casca vazia, em breve nem isso serei, e desaparecei como cinzas ao vento.

"Estou muito tranquilo. Que venham os meses e os anos, não conseguirão tirar nada de mim, não podem tirar-me mais nada. Estou tão só e sem esperança que posso enfrentá-los sem medo. A vida, que me arrastou por todos estes anos, eu ainda a tenho nas mãos e nos olhos. Se a venci, não sei." 
(Erich Maria Remarque)

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Grãos de areia no meu rosto

Night Spectre on the Beach, Salvador Dalí

Continuo no meio de um grande deserto de areia, onde os pequeninos grãos  me dilaceram a face como se fossem navalha. 

Como descrever o que venho sentindo? Não sei nem por onde começar. Crises de choro, tremedeira, impaciência, ansiedade, a mente em intenso barulho e vazia ao mesmo tempo. Um inferno, complexo e difícil de descrever, mar congelado queimando as minhas mãos, a mente cansada de vagar sem rumo e, no entanto, parece que fui condenado a caminhar sem descanso. E não exagero em dizer que, por culpa da percepção distorcida pela depressão, ou não, cada pequenino detalhe tem dado errado na minha vida. O calor insuportável, pessoas incompreensíveis no trabalho, a porta que quebrou e até mesmo o doce que comprei estava estragado. Dias difíceis, sem dúvidas. 

Tentei me afastar, ficar quieto e em silêncio, esperando a boa vontade cósmica, ou orgânica, de voltar ao normal. 

Normal, quando foi que eu vivi algo normal? Nunca, nem soube o que se pode aproximar de algo normal. Tampouco consegui manter distância, droga, continuo idiota demais pra fazer algo assim, ainda que fosse me fazer bem. Bem, acho que tudo que eu sei fazer é me destruir. 

Tive de dizê-lo claramente. A minha indisposição não é apenas da noite insone, tampouco ressaca (nem disposição para beber eu tinha) mas vinha de um episódio depressivo que me pegou de jeito e que acabou comigo. Eu não sei como consegui sair da cama nos últimos dois dias, talvez o medo de perder o emprego ou o fato de saber que ficando em casa socado no quarto seria ainda pior...

"Estou com um problema sério que nasce do fato de que eu meio que não quero viver, mas meio que quero estar viva. Então todo dia eu tenho que lidar com questões que advém do fato de que no dia anterior eu decidi não mais existir, mas que, surpreendentemente, eu continuo aqui." (Mariana outra rosa, tweet)

sábado, 16 de dezembro de 2023

Procissão dos mortos

"Mas no parque e nas ruas os mortos continuam passando como se já estivessem num museu." 
(Charles Bukowski)

Hoje estou tendo um dia de cão, daqueles que faria o velho Buck se orgulhar da minha desgraça. Nessa confusão toda eu não encontro paz e nem refúgio, me encontro tal qual Jerusalém desterrada, pobre viúva sufocada. Sem álcool, sem amor, sem teogonia. E é preciso continuar, não posso parar nem para tomar fôlego. Ninguém o nota. Quem sou eu? Qual meu valor? É apenas o que consigo fazer e que alguém não faz ainda mas, quando o fizer melhor, vai rapidamente tomar meu lugar.

E eu nem me importo na verdade, sei bem que não tenho valor algum, assim como muitos não têm para mim. Estou péssimo, com uma cara péssima, depois de uma noite sem dormir péssima. Levantei pra tomar uma dose de um licor e deitei de novo, impaciente com o barulho da música, do ventilador e até com o difusor. Me masturbei duas vezes, me cansei da cara dos meninos bonitos dos vídeos, depois levantei, tomei um relaxante muscular e um zolpidem e me obriguei a ficar no escuro até adormecer, acordando poucas horas depois com o corpo cansado e extremamente irritando, contando as horas para poder ir embora, encher a cara e dormir, me fechar de vez.

Também não sei dizer se isso é um novo episódio depressivo, misto, se é um ciclagem provocada por uma discussão que tive ou sei lá, cansaço acumulado, tudo isso junto. Sei que minha autoestima está péssima, minha conta bancária pior ainda, me sentindo ansioso, tendo alguns acessos de choro ou apatia... Não foi uma noite sem dormir, foi um sinal de que estou prestes a colapsar. Minha cabeça já sem conseguir se atentar a nada...

Que inferno. Os dias parecem se suceder em desgraças infinitas, toda hora surge alguma porcaria, toda hora alguma coisa sai dos eixos, mesmo quando a gente tenta, tenta, tenta... A gente só se lasca. 

E claro que eu vou tentar fazer às pazes com ele, e claro que vou assumir toda a culpa, porque eu realmente me sinto culpado de tudo, de ser assim, tão fodido, tão intenso, sempre apaixonado, sempre querendo muito e nunca conseguindo ajudar. 

Hoje é um daqueles dias malditos que precisam acabar logo, mas que se arrastam em horas que mais parecem eras, que se prolongam indefinidamente em problemas e mais problemas. Eu queria poder colocar whisky nesse chá, me entupir de remédio e capotar por umas boas horas, mas algum idiota sacana achou que seria uma boa ideia obrigar todos os homens ao trabalho, a convivência... 

Não sei quanto aos outros mas eu estou morto e podre por dentro, e não é porque eles estão tão acostumados a miséria que os pareço melhor que isso signifique que eu esteja bem, pelo contrário. Acabaram com os manicômios e agora ninguém sabe mais quem é maluco e quem não é. 

Me encontro instalado no vazio. Cada pequeno maldito detalhe da criação me desagrada. Se aquele velho Buck me visse ele diria que nem sequer me pareço com um homem pra reclamar da vida de homem, mas que se foda, eu também não quero ser aprovado nem por ele e nem ninguém mais, isso dá trabalho e só serve para atrair mais problemas. Acho que só o que dá pra fazer é tentar aceitar essa porcaria de vazio, e aceitar que nada tem sentido e se tem é difícil de achar e mais difícil ainda de conseguir alcançar. 

Mas que porcaria é essa? Igual nesses programas idiotas somos jogados aqui e temos que sobreviver, competindo pra ver quem vai ser mais escroto que o outro? A vida me parece apenas isso, um partida idiota onde as pessoas tentam comer umas as outras. Como elas vivem assim?

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Aforismos dispersos sobre o amor

The End Of Tje Line, Nickie Zimov

"O amor não se manifesta através do desejo de fazer amor, mas através do desejo de partilhar o sono" (Milan Kundera)

Por onde eu começo dizendo isso? Quantas vezes já te falei dos meus sentimentos, quantas vezes já tentei explicá-los a você e quantas vezes me vi inflamado ao pensar em você e agora novamente ao ler essas linhas que, tão brevemente mas com tanta verdade, conseguiram condensar o que sinto? Em verdade é como se eu mesmo as tivesse dito, de algum modo resgatando algo de dentro profundo do meu próprio coração. 

Essa imagem é então cândida e doce, e me faz suspirar, como já o disse, em vivas ânsias de amor, somente ante a perspectiva de tocar-te enquanto dorme, de ouvir a sua respiração, de encostar levemente minha cabeça nas suas costas... É errado? 

Não há, como disse a autora, tão somente o desejo sexual, que me parece tantas vezes superficial e que pode ser entregue a qualquer um. Mas também não nego que ele exista, no entanto, comigo ele se expressa como a culminação da expressão do amor, em lugar análogo ao desejo de partilhar o sono. 

Tão somente me resta então essa doce visão, dessa doce harmonia. Tão doce quanto impossível, que só pode tomar forma e figura nos recessos da minha mente, no mais profundo tão intangível e invisível que somente os sonhos que tocam o mais inconsciente conseguem ver o mais leve vislumbre... Mesmo assim é lá que se encontra minha verdadeira identidade e o verdadeiro sentimento que eu não não posso partilhar nem mesmo com você.

X

Eu devia tirar os corações da frente do seu nome, e com isso mudar o que seu nome significa no meu coração. Droga, não devia ter deixado você me dominar assim, agora eu estou aqui sofrendo, sozinho, por um amor que só existe na minha cabeça... Eu me pergunto se, em alguma parte, estou insistindo nisso por uma esperança real ou se é apenas a insistência psicótica numa fantasia, ou se eu quero me destruir repetindo o mesmo erro pela milionésima vez, se eu desejo mesmo me ver morto uma vez mais ou se essa será a derradeira paixão a me aniquilar o ser. Mas e você? O que o faz continuar me observando? 

X

E é claro que dar vazão aos meus sentimentos não deu um bom resultado, isso já era claro. Te incomodei, te irritei e você sumiu, e já começa a desaparecer como tantos outros que já se foram antes de você. Não o culpo, como hoje também não culpo a mais ninguém. 

Eu sou o culpado, só não sei  motivo, só não consigo enxergar claramente o que em mim causa esse afastamento no outro, se é meu pessimismo, minha aparência grotesca ou o algum outro aspecto da minha personalidade que me torna tão repulsivo... Eu realmente não sei o que é... 

Também não há muito que eu possa fazer, além de respeitar e também me afastar. De, uma vez mais, a milionésima quem sabe, guardar meus sentimentos bem fundo no meu peito, tão profundo que não machuque mais, que não incomode mais, que não faça ninguém sofrer. 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Ode à Ingratidão

"Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige." (Clarice Lispector)

Acordei em plena manhã de ira, daquelas em que odeia-se o mundo e tudo o que ele contém. Em verdade eu não queria ter acordado, e poderia ficar ali na cama indefinidamente pelos tempos infinitos, pelos séculos sem fim, amém. Se é pra estar só ao menos que seja confortável, mas não, preciso levantar e encarar de novo uma série de obrigações que nunca têm fim.

Sinto como se tivesse uma espécie de dívida cósmica a pagar, e que não se quita enquanto não desfazemos nossa vida. Com efeito tudo o que vejo é justamente a decadência de todos, dia após dia. Uma entropia que lentamente leva todos ao colapso final enquanto o mundo permanece em sua transformação permanente. Um suplício de Tântalo.

E essa decadência se manifesta das maneiras mais diversas: na moralidade rasa que nos cobra o comportamento mais imbecilizante em nome de uma beleza social, onde se respeite quem não merece respeito algum e onde se ignora completamente coisas como a beleza real, o conhecimento e a verdade. Também se expressa nessa busca incessante por coisas totalmente vazias de sentido. 

E ainda me dizem que que devo ser grato. Sempre repetem isso. 

"Você precisa agradecer!"

"Ao invés de reclamar você tem que agradecer!"

Mas ninguém me responde, agradecer a quê exatamente? 

A ter de levantar cedo todos os dias e dissipar minha vida num esforço inútil e sem nenhuma recompensa? A lutar sem parar e sem descanso sem conseguir conquistar nada? Uma vida em que meu amor, que suspostamente deveria ser o sentimento mais belo e poderoso de todos só me serve de dor? 

De que serve essa vida? De que serve esse amor senão para dissipar essa miséria que chamamos de vida? Não deveria ele ser ao menos um alento nos dias difíceis? Um remédio aplicado nas feridas que recebemos? Um remédio aplicado às feridas do Prometeu acorrentado? Então qual a razão de esse amor mesmo doer tanto? 

Não sinto senão uma revolta, profunda, agitada como mar em ressaca, tempestuosa, em meu peito quanto tudo aquilo que é vivo e que me obriga a existir. 

Eu até consigo entender, num esforço imaginativo, esse pessoal da gratidão. Aqueles que já passaram por grandes dificuldades, especialmente financeiras, tendem a agradecer pela melhora, e estão corretos, mas enquanto eles passaram até pela miséria de não ter o que comer eu me vejo mergulhado num ambiente de miséria intelectual e moral sem precedentes, onde de cada um de nós é cobrado ser uma nova mulher de Cesar, conversar alegremente sobre nada, celebrar o vazio em taças cheias de bons vinhos...

E eu, o que celebro? Bom, eu não sei ao que brindar, não sei o que deve ser celebrado, senão que vivo com o mesmo sem vontade com que nasci, atrasado e sem sequer chorar ao ver esse mundo. Já não sentia mais do que apenas tédio pela existência. 

Claro que entro numa profunda consideração da minha realidade, o que comumente se chama de paranoia. Eu fiquei estranho por causa de uma abrupta mudança de humor e de um cansaço acumulado e que considero injustificado. Mas agora começo a alimentar justamente incertezas e cenários hipotéticos que me machucam, e fazem com que eu olhe, senão com apatia depressiva, com temor pela própria realidade. A verdade é que, sabendo bem o que é real e o que não é, eu temo assumir a verdade e me refugio nas ilusões.

o amor
que um dia foi cura
hoje provoca dor,
pontiaguda,
perfura
o coração
que te adorou.

de tudo, resta a amargura,
te amar foi a coisa mais pura
que a minha existência
já experimentou.

(Lucas Hermuch)

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

A Vida feita pela Morte

Enquanto voltava para casa, um pouco mais cedo do que de costume na esperança de descansar um pouco, eu vi o centro bem mais movimentado do que vejo normalmente. É que volto pra casa no horário de pico, quando as lojas estão fechadas e os comerciantes todos suados, tristes e impacientes, tomam os ônibus num trânsito lento e irritado de volta para casa, onde vão descansar, fazer academia ou preparar a comida do dia seguinte para requentar no trabalho. 

E então vendo aquelas lojas cheias, com a música alta (de uma qualidade questionável, claro), me perguntei mais uma vez quando as pessoas normalizaram o fato de que devemos passar oito horas do dia trabalhando. Em alguns desses dias eu nem mesmo saio do escritório, ainda essa semana eu percebi que sequer sabia da forte onda de calor que atingia o país, não por estar numa sala com ar condicionado, que aliás está quebrado, mas por estar tão ocupado que nem me dei conta das calamidades que estavam acontecendo. Metade do país num calor absurdo, causando mortes inclusive, temperaturas jamais registradas, a Amazônia em chamas e o estado de Santa Catarina de novo embaixo da água por causa das fortes chuvas, centenas de famílias desabrigadas, cidades destruídas, estradas fechadas... E eu não sabia nada disso porque passo os meus dias inteiros respondendo pessoas que exigem imediatismo. 

Percebi que isso foi me afetando, também o fato de comer pouco na esperança de emagrecer, o que enfraqueceu meu corpo. Mas essa ansiedade generalizada, esse sentimento desagradável de que todos os problemas devem ser resolvidos imediatamente, tudo isso foi mais forte que a minha disposição em não me deixar afetar por essas coisas, e eu me vi doente, vomitando e fraco, e isso na semana que mais precisava de forças pra continuar. 

Ou talvez meu corpo finalmente esteja respondendo aos meus clamores pela morte, o que não seria ruim e abraçaria com terna alegria. Já que não encontro alegria nessa vida talvez a encontre na morte.

Mas então volto ao centro, e vejo aquelas pessoas aproveitando talvez o seu único dia de folga, e penso que eu, quando estou em casa, me sinto cansado demais para fazer o que quer que seja além de dormir ou assistir alguma coisa, o que faz da minha vida uma rotina sufocante e profundamente entediante. Eu trabalho, volto pra casa num ônibus suado e tenho disposição para ficar, no máximo, duas horas acordado ainda antes de dormir e levantar novamente para começar tudo de novo. Não vejo, em parte alguma, a vida que tantos falam que devo viver ou aproveitar. Como se faz isso? Quando se faz isso se até para ver o mar imponente se balançar na baía eu tenho preguiça porque estou sempre cansado demais?

No meio de tudo isso, me vejo fantasiando um romance inexistente, fantasia da qual há muito eu perdi o controle e só agora, depois de tanto me machucar e de tantas noites indo dormir aos prantos após me despedir e sentir, em cada mensagem, a verdade brutal de qual é o meu lugar no mundo dele, que entendi que é preciso que eu recoloque as coisas no lugar, numa arrumação que mais se assemelha com uma batalha selvagem entre duas feras, dois desejos primitivos: o de amar e o de sobreviver.

Quanto ao último, ainda que lute vigorosamente, dá sinais claros de estar em vias de morrer, a minha fera que luta para sobreviver está prestes a ela mesma morrer. Não o sabem, os de fora, que acabei de tomar uns quatro ou cinco remédios para dormir, e que até agora não fizeram efeito, mas que devem estar me destruindo por dentro, me deixando cada dia mais próximo da irmã morte, a quem tanto almejo a companhia, já que nessa vida me foi dado apenas o caminhar ao lado de sua irmã mais pálida, a solidão. 

Mas é preciso que pare de escrever por enquanto, devo dormir. 

Amanhã começa tudo de novo. Droga.

"Não sei quem quem foi que disse que a vida é feita pela Morte. É a destruição contínua e perene que faz a vida. A esse respeito, porém, eu quero crer que a morte mereça maiores encômios. É ela que faz todas as consolações de nossas desgraças; é delas que nós esperamos a nossa redenção; é ela a quem todos os infelizes pedem socorro e esquecimento. Gosto da Morte porque ela é o aniquilamento de todos nós." (Lima Barreto)

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Entre uma angústia e outra, um café

Sunlight in Cafeteria, Edward Hopper

"Alguém com quem se dá a volta ao mundo à mesa dum café." (Mário Dionisio)

Lacan disse que "a angústia é o único afeto que não mente", onde há angústia há uma verdade invertida do desejo mais profundo. E me ponho a refletir então sobre a minha constante, exaustiva e exímia escritora, solidão. Dessa angústia que provém do medo de ficar só, de aceitar tantas coisas que não quero para ter como me aproximar de alguém, seja do rapaz que nem olha para mim ou simplesmente daquela moça que pareceu gostar de conversar comigo. 

Angústia que nasce do medo do desaparecimento caso não encontre a validação no outro. E com isso suporto todas as coisas que não queria suportar. O outro que fala alto, que implica, que se estressa por nada, que vive de aparências no sentido mais leviano que isso possa ter. Me encontro buscando validação dessa gente onde os meus valores mais profundos, a busca do conhecimento, do entendimento da situação real, da instalação na realidade, não vale nada, são, antes de qualquer coisa, papo furado, já que o que importa são as garrafas de vinho no fim de ano, ou qualquer outra coisa... 

E em mim permanece a angústia, o desejo pela companhia real, que quer as mesmas coisas e rejeita as mesmas coisas, que queira a intimidade simples de um filme e uns doces, de umas músicas observando o céu, um passeio de mãos dadas no parque, um beijo de boa noite e um abraço de bom dia. E todas essas cenas são carregadas de angústia. Carregadas dessa verdade, o medo do desaparecimento pela não validação do outro, que se expressa no desejo desesperado e angustiado do outro. 

X

"Ela era o mar e eu o rio que nele desembocava. Era uma estrela e eu outra que marchava em sua direção. Encontrávamo-nos e nos sentíamos mutuamente atraídos, permanecíamos juntos e girávamos felizes por toda a eternidade em círculos muito próximos e vibrantes, um ao redor do outro." 
(Herman Hesse)

Decidi que ia ficar em silêncio, e já perdi a conta de quantas vezes disse que iria fazer isso. Mas logo você voltou a falar, e eu não pude me conter em despejar palavras e mais palavras. E aí você disse que me ama, e eu percebi que não tenho nenhuma força capaz de resistir a você. Mas eu sei que quando diz que me ama não é o mesmo que quando digo que te amo, ou talvez seja e você não aceita mas, até então, quem não aceita essa verdade sou eu, e então me pergunto e fico irado, inconformado que as coisas sejam assim, que estejamos distantes, que trabalhemos tanto, que fiquemos sempre cansados, que a liturgia seja horrível, que os amores não se encaixem, que o mundo nos sugue tão impiedosamente, que tantos pareçam viver e outros apenas sobreviver sendo que eu nem mesmo consigo encontrar uma razão para isso. Naquele momento que você disse que me ama eu pensei, brevemente, que poderíamos ficar juntos, até que as areias da realidade caíram como tempestade por esse idílico jardim de meu amor tão almejado e que nessas palavras trago esboçados. Meu amor é como o grão dessa areia que voa pelo vento sem rumo e sem que ninguém o note, desaparecendo da vista e nunca mais retornando...

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Conhecer e conectar, transcender

Maria perguntou ao anjo: “Como acontecerá isso, se eu não conheço homem algum?” (Lc 1, 34)

Em várias passagens bíblicas o verbo "conhecer" é usado como sinônimo de relação sexual, ou ao menos é o que nos parece à primeira vista. De fato o "conhecer" denota o ato sexual mas, nesse contexto, ele quer significar algo muito mais aprofundado do que isso. Nem é preciso pensar muito para perceber que o contato sexual foi banalizado de tal modo que o "conhecer" no sentido sexual pode muitas vezes ser tudo menos um conhecimento de fato.

E isso nem é uma crítica a forma como vemos o sexo hoje, já há bastante tempo o contato sexual está apartado de uma proximidade real para além do físico, o que acho interessante aqui é justamente a diversidade de significações que o mesmo ato pode ter. 

Deixa eu tentar me explicar melhor: desde a mera reprodução de escravos em orgias públicas no império romano, as relações entre homens dos exércitos de todo o mundo em todo tempo até as relações líquidas da nossa época ao contato profundo relacionado a todo o cosmo onde o casal participa do ato criador perpétuo do universo. 

Sobre a distinção das mais diversas experiências associadas ao sexo o Prof. Olavo já descreveu isso bem melhor do que eu jamais poderia fazê-lo no artigo Sexólogos Mirins (que você pode, e eu sugiro que o faça, conferir aqui e aqui a continuação). O fato é que essa expressão "conhecer" como sinônimo, mas não apenas isso, de relação sexual é uma excelente forma de apontar justamente a escala, a transcendência que a intimidade pode tomar.

Funciona mais ou menos assim, as diversas formas de se encarar o sexo e também o relacionar-se com o outro pode aumentar ou diminuir em impacto e profundidade (com todas as implicações semânticas e infantis que essas palavras possam ter aqui). Conhecer alguém de fato, aproximar-se dessa pessoa é, ao lado dela, compartilhar de uma experiência tão velha quanto a própria humanidade e que permite inclusive a continuidade dela. 

Conhecer é escalar um degrau de cada vez, aprofundar-se, tornar-se próximo, partilhar não somente momentos de alegria mas também de tristeza profunda com sinceridade, é testemunhar a evolução do afeto em amor que, por sua vez, e só aqui, se expressa e se encontra sexualmente participando então dessa experiência comum à humanidade, que tornam não apenas dois num só, mas um só com o todo de que fazem parte. O contato íntimo, onde um toca o outro por dentro tem algo de germinativo, profundo, que faz possível a vida, que faz brotar inclusive o amor usado como combustível para que exista uma segunda, terceira, quarta vez, e é assim e tem sido assim desde sempre. 

Tive apenas um lapso disso quando ouvi essas palavras no Evangelho da solenidade da Imaculada Conceição, e então percebi que, algo que já estava claro naquela época e já também naquela época havia se perdido, pois a Virgem Maria que não conheceu homem algum era contemporânea dos romanos que já praticavam toda sorte de experiências sexuais que fariam corar atores da indústria pornô da nossa época. O diferencial não está na relação sexual propriamente dita, ou nos movimentos que são feitos nela e que podem ser aprendidos vendo os vídeos certos na internet, mas na carga que ela traz consigo, podendo ser tão vazia quanto cumprimentar um estranho rua, e com efeito muitos de nós fazem sexo com estranhos na rua, ou ser a participação num movimento cósmico perpétuo, que contém e abrange todos os outros relacionamentos, traduzidos e condensados em duas pessoas que "se conhecem."

Claro que não posso deixar de comparar com algumas outras relações minhas, que encontram empecilhos em certames diversos. Há pessoas que julguei conhecer, ora, há alguns de quem sou próximo, mas não ficou claro ainda o quanto e outras que sei que, apesar da relação sexual, sequer sei o nome, ficando então todas aquém dessa dimensão elevada a que me referi, donde não poderia também deixar de concluir me indagando se sou, de fato, capaz de vir a conhecer alguém. 

Por isso eu decidi não terminar ou, ao menos não me esforçar em aprofundar mais, nessa reflexão, fecundada pela minha amiga Patrícia que me mostrou um cosmos inteiro de possibilidades com o realismo de quem viveu e vive a possibilidade universal do crescimento, do elevar-se. Mesmo você tendo pedido que eu fizesse uma a respeito das conexões que temos e que nos fazem conhecer alguém mais profundamente. Isso porque, já prevendo, sei que o fim me machucaria demasiado. Fazendo então um salto no assunto de que tratava, o conhecer ou conectar-se com alguém necessita de uma resposta de ambos, é preciso querer conectar-se, ou manter a conexão, só assim é possível que ambos possam subir os círculos concêntricos do amor e se aproximarem efetivamente. Mas é claro que certos umbrais causam medo, muitas vezes somos colocados de frente à realidade doloridas que tememos enfrentar e mudar e, por isso, nos recusamos a passar ao próximo nível, e aqui deve existir um respeito ao outro, não sendo possível obrigar ninguém a adquirir mais consciência de si e do próximo, cabendo a nós estender a mão, convidar a fugir da escuridão de nossas próprias ignorâncias, e oferecer a nossa luz.

Claro que, se a outra pessoa estender a mão em resposta as luzes de ambos podem vir a iluminar um mundo de potencialidades que elas podem vir a descobrir sozinhas. No entanto o medo encontra aqui uma posição favorável, já que não raramente a verdade costuma dar novo sentido aos sonhos que tínhamos não é? É por isso que, ao olhar para mim você não enxerga o futuro que sonhou para si mas, ao mesmo tempo e sem nem mesmo perceber, age como se estivesse construindo comigo. Mas quando eu lhe disse isso, assustei-o, e você recuou. Tudo bem, eu aceito, mas não me provarei da minha evolução. 

Assim como Gabriel ouviu o fiat de Maria. Gabriel que, diretamente do cosmos, das altas castas angélicas, anjo, espécie especialíssima sabia de tudo o que poderia acontecer com aquela Virgem que casara com José, mas que em vista do seu medo não a obrigou, a acalmou com a sua Divina Presença, mas esperou paciente, voltando aso céus anunciar que todos deveriam alegrar-se com o Sim da Mão do Filho de Deus, que doravante seria chamada Bendita entre todas as gerações. Assim eu devo acolher a sua resposta, que não é a mesma da Virgem. Mas eu acolho, entendo seu medo, mas isso não vai me impedir de seguir o meu caminho.

“A maioria dos homens persegue o prazer com tanta impetuosidade que passa por ele sem vê-lo.” (Soren Kierkegaard)

sábado, 9 de dezembro de 2023

O que posso fazer


"Se não fosse a inquietude
dessa tempestade
que devasta o infinito
do meu peito, 
eu até me acalaria
com a chuva que cai lá fora."

(Joab Brandao)

Você ficou em silêncio, e eu nada pude fazer dada a distância que nos separa. Uma vez mais penso que a distância física, a do céu e das estradas que nos separam, é apenas símbolo da distância real que há entre nós. Você ficou em silêncio, e não havia nada que pudesse fazer além de silenciosamente adormecer escondendo algumas lágrimas de saudade no travesseiro, um suspiro se perdendo no ar perfumado. E nunca há nada que eu possa fazer. 

Como dizia Fernando Pessoa, as cartas de amor são ridículas, e é assim que me sinto, ridiculamente ridículo, e não há nada que possa fazer. 

É um fim de tarde preguiçoso... O dia nublado e fresco, silencioso, como a melancolia tivesse tomado conta da atmosfera e, enquanto me recupero lentamente do cansaço das últimas semanas a minha mente busca um lugar tranquilo, um jardim fechado e secreto onde, por entre açucenas olvidado eu possa deitar a minha cabeça num colo sentindo a brisa dos leques dos cedros. É claro que, em busca de calma, minha mente vai até você. E se agita. Se inflama. E não há nada que eu possa fazer. 

Porque você nem sequer pensa em mim, atolado em suas obrigações que te sufocam e engolem completamente, te deixando num cansaço tremendo e permanente, fazendo com que fiquemos cada vez mais afastados, e se antes compensávamos, mutatis mutandis, a separação abissal dos nossos sentimentos e dos nossos corpos com a presença virtual das nossas conversas, agora até assim nos afastamos, temporalmente, por assim dizer.

E não quero ser mais um peso para você, que luta e que segue seus sonhos. E eu, homem sem sonhos que não tem pelo quê lutar, bem... Não há nada que eu possa fazer. Além de te amar. Mas continuar amando assim dói, e não há nada que eu não possa fazer.

"Sonharás uns amores de romance, quase impossíveis? Digo-lhe que faz mal, que é melhor, muito melhor, contentar-se com a realidade; se ela não é brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir." (Machado de Assis)

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

E aí tem você

The End Of The Line, Nickie Zimov

Além da óbvia vergonha em não conseguir chegar a fim da relação, senti mais forte ainda aquela impressão de que falei tantas vezes aqui, e mais ainda para você: eu não consigo ter conexões com ninguém. 

Mas tem você.

E eu não sei dizer se nossa conexão é real ou apenas imaginária, e só isso é suficiente para me deixar inquieto. E ansioso.

E estou ansioso também por causa do trabalho, e sinto meu coração bater mais rápido. Um claro sinal de que deixei as coisas saírem do controle.

E aí tem você. 

O que nós temos?

Fui dormir deprimido, não sei quantas vezes eu chorei, e me abracei, e senti vergonha, e nojo, e raiva, e sangue e cântico nos lábios. A música estava alta, eu queria abafar meus pensamentos, queria não ouvir nada, mas tudo me incomodava. 

E eu só consegui dormir depois de várias horas, e de várias lágrimas. Tentando esquecer que, embora a conversa tenha sido boa, eu continuei sozinho, e enquanto o meu furor estava no auge eu estava sozinho, e quando eu consegui alguém, o fogo já havia passado, e já não era eu que foi ao encontro daquele desconhecido, mas sim um amontoado de cinzas ao vento...

Porque eu não queria só sexo, não, e não com qualquer desconhecido. Eu queria você, queria carinho, seu olhar, seu beijo, seu desejo. 

Mas eu não tenho você.

Assim como não tenho paz, ou futuro, ou teogonia. E não tenho você.

Aqui.

Comigo.

E agora já nem sei mais o que fazer. Acordei sem nenhuma vontade, tomei banho, comi e entrei no ônibus e ouvi a minha cota diária de ansiedade, sem nenhuma vontade. E estou ouvindo música e tomando café, e preciso adiantar alguns trabalhos, sem nenhuma vontade. 

"Decorrera tanto tempo que havia desistido de aplicar sua vida a um objetivo ideal e limitava-a a perseguir satisfações do dia a dia, que julgava, sem nunca o afirmar formalmente, que aquilo não se modificaria até sua morte; ainda mais, já não sentindo ideias elevadas no espírito, deixara de crer na realidade delas, sem todavia não poder negá-las de todo." (Marcel Proust)

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Descendo ao último círculo de Dante

Lúcifer, Gustave Doré

"Em leito de penas 
não se alcança a fama nem sobre as cobertas; 
Quem a vida consome sem a fama,  
não deixa de si nenhum vestígio sobre a terra, 
qual fumo no ar e espuma na água."
(Dante Alighieri)

Eu devia parar de reclamar, sei bem disso, mas você perguntou como eu estou e quando disse que estou bem, na verdade queria dizer que estou absurda, brutal e absolutamente cansado. Cansado e chateado de tanto trabalho, de que todo problema acabe vindo parar nas minhas mãos quando, em verdade, em mal tenho me aguentado de pé. Por isso as pessoas até vêm estranhando meu mau humor, mas isso é tudo que elas conseguem ver. Acontece que eu tenho estado num esgotamento depressivo tal que, as únicas forças que me restam são para que desempenhe as minhas funções minimamente, não sobrando muito espaço para mais nada. Então apenas volto pra casa, assisto e durmo, sem pensar demais em mais nada.

E, além disso, tenho saudades de você, do seu abraço, do seu cheiro, do seu carinho. Porque aqui dentro, num cantinho do meu peito, eu acredito que se sentisse sua mão nas minhas costas uma vez mais, e se pudesse me encostar em você um pouquinho que fosse, ficaria bem, tudo ficaria bem.

Me vejo de novo perdido em meio aos meus desejos. A mente sente a depressão ao mesmo tempo que o corpo sente a euforia. Me sinto escravo de meus desejos, quase a subir pelas paredes, gemendo e chorando, como um animal que não pensa em mais nada além da sua própria luxúria. é horrível isso, é horrível ser assim, escravo, preso a um corpo que deseja se destruir, se consumir em fogo até virar cinzas, até voltar ao nada...

Deveria voltar pra casa e estudar um pouco? Dificilmente vou me concentrar assim. Devia ir a missa? Estou indisposto pra ver abusos litúrgicos... Mas quero vê-lo, pelo menos um pouco... Mesmo longe dos meus braços se ele ao menos estiver ao alcance das minhas lentes... É, talvez eu deva ir lá um pouco.

X

Não consegui. Cheguei em casa com muito custo, quase não ouvi nada da aula sobre o Peri Hemeneias, e só consegui ter alguma atenção ao ver dois episódios de série, a segunda inclusive acabou agravando meu problema. O primeiro episódio da tão aguardada Playboyy deixou todo mundo de ânimos exaltados, já que quase metade do episódio foi com cenas de sexo. Mas todos aqueles homens lindos se chupando por mais de uma hora não me fez bem. Isso me deixou ainda mais carente, sendo que na verdade trata-se de um episódio de hipersexualidade, por isso fiquei tão à flor da pele assim e preferi até mesmo me afastar das mensagens para não fazer alguma besteira, como da última vez que fui parar num barraco escuro e úmido que facilmente se veria nas páginas policiais. 

Essa noite foi então um grande borrão, apenas me recordo do corpo arder em chamas. Tentei me acalmar com música e com os óleos essenciais, e talvez tenha funcionado porque entrei num estado quase letárgico, em partes ainda mais solitário e chateado porque nenhum deles me procurou e porque, uma vez mais, olhei pela janela e, aquela paisagem vazia do mangue, era um reflexo do que eu mesmo sentia: escuro, assustador, perigoso e, acima de tudo, solitário. Bebi um pouco mais daquele coquetel que achei no mercado perto de casa, a terceira garrafa essa semana, e fui dormir, depois de uma punheta, torcendo pra acordar um pouco mais humano.

É assim, nem é só uma vontade de masturbação, eu estou bem resolvido com isso, mas é um vazio brutal que parece que vai sugando tudo, eu viro um monstro, os pensamentos que passam na minha cabeça são os piores possíveis. É como um buraco que vai crescendo, crescendo e parece que vai me engolir inteiro. No lugar vai tomando forma um demônio, que por sua vez também começa a devorar, mas, ao invés do vazio, devora o mundo ao redor, espalhando dor, horror e porra por onde quer que passe. 

Eu passo então a desejar dar para todos os homens. Foder como uma cadela no cio. Me banhar no suor de todos aqueles machos que pululam nos vídeos mais nojentos da internet, fruto do que há de mais podre na mente humana e, naquela hora, acho tudo isso muito bom e meu corpo deseja toda essa profanação com cada fibra do meu ser. É como se não restasse nada de humano e eu fosse apenas a manifestação dos desejos mais primitivos e bestiais que há. 

É repulsivo. Eu sou um lixo. 

Hoje tem formação, eu devia ir e talvez vê-lo, mas não sei se tenho disposição para isso, para ouvir besteiras sobre algo que gosto tanto e que tratam com tanta displicência, mas eu queria vê-lo, ou ver alguém bonito pra variar, mesmo que nenhum deles olhe para mim ou dê pela minha existência.

E continuo sozinho, e em chamas a me consumir. 

Breve serei cinza fria. E depois, nada. 

E tudo retorna ao nada.

"Tenho que encontrar alguma coisa que me tire a vontade de beber. Veja só hoje, por exemplo. Não há nada pra fazer a não ser tomar porre. Não gosto de cinema. E jardim zoológico é um pé no saco. Não se pode passar o dia inteiro fodendo. Que problema..." (Charles Bukowski)

sábado, 2 de dezembro de 2023

Meus vícios

The Drinkers, Van Gogh

"Para tornar a realidade suportável, somos todos obrigados a alimentar algumas pequenas loucuras dentro de nós." (Marcel Proust)

Tenho recorrido bastante a isso ultimamente, em parte pelo profundo tédio existencial ou pela carência, permanente e extrema, que sinto. Todas as noites são como um refúgio longe das pessoas mas, ao mesmo tempo, uma tortura por estar sozinho, por não ter quem conversar, quem amar. 

Mas até esses momentos me fazem sentir cabisbaixo, com todos aqueles corpos perfeitos, com aquelas cenas que se multiplicam, de homens e seus amantes, como se todos no mundo estivessem acompanhados, felizes naquelas fodas incríveis, aqueles gemidos de satisfação, aqueles sorrisos de sacanagem pura, e apenas eu sozinho nessa cama a me satisfazer emergencialmente, sozinho e patético.

Eles aparecem em cenas criadas, muitas vezes sem contexto algum, e começam a se acariciar. Na maior parte das vezes apresentam um mais delicado, menor que o outro, que se põe a chupar vorazmente um pau de cabeça rosada enquanto ele mesmo se excita, pedindo para que cada centímetro daquele homem esteja dentro dele, não raramente imitando insegurança quanto a ser penetrado, enquanto o outro, de pau enorme, se prepara para meter sem piedade até que o outro peça por misericórdia, gozando juntos ou, gozando antes, lançando porra por todo o corpo ou na cara do outro em jatos desesperados e, depois, simplesmente esperando que o outro goze sozinho numa punheta rápida no chão, e terminando como começou, sem contexto ou profundidade alguma (além do corpo do passivo, evidentemente).

Esses rapazes, ávidos por sexo, só existem nesses vídeos. Ou melhor, a vida das pessoas é geralmente sem graça, a vida sexual ainda mais, com alguma exceções irresponsáveis mas, de todo modo, essas pessoas, insaciáveis, que unem uma boa foda com carinhos de gozo (literalmente), não estão tão afim de mim. Elas andam juntas, numa bolha intransponível, dando a aparência de que estão todas juntas e perfeitamente completadas nesse ciclo de troca de parceiros e gozando como cavalos nas caras uns dos outros.

Mas não estão. Tantos outros continuam solitários como eu, e continuam dizendo que procuram alguém, apenas alguém que os aceite e os ame seriamente, mas eles mesmos são incapazes de levar quem quer que seja a sério. E assim segue-se um ciclo de solidão. Todos sozinhos, todos querendo alguém. Todos cheios de solidão, todos idiotas. 

Mas eu também queria estar solitário entre eles, e não batendo punheta num quarto quente, torcendo que minha irmã não escute nada no quarto ao lado, enquanto ela mesma fode com o namorado novo. 

E então caímos nos vícios. Ah os vícios... Não faço uma ode a eles mas há que se concordar que algo nos vícios nos faz mais humanos, ou talvez seja porque somos humanos que caímos neles. De todo modo, independente do tratamento filosófico ou poético que se dê, os vícios servem para ajudar a sobreviver nessa porcaria toda.

Muitos bebem, fumam, se entopem de remédios para dormir (como eu), se masturbam, transam com prostitutas ou desconhecidos em barracos escuros e úmidos, apenas pelo prazer do momento? Acho impreciso, melhor dizer que é por uma fuga, porque talvez naquele momento, embriagados de alguma bebida doce e barata, ou quando os remédios começam a fazer efeito, ou durante um pornô gravado de modo caseiro em algum motel da Ásia, nesses instantes esquecemos as porcarias que nos cercam.

Esquecemos, ainda que brevemente, as dívidas que fizemos em compras idiotas, os colegas insuportáveis que deveriam aprender a ficar calados ou que deveriam ajudar mais no trabalho, esquecemos todo o percurso no ônibus cheio, quente e abafado pelo calor dessa época do ano que começa a ficar mais forte, dos idiotas que encontramos no caminhos e até dos que não encontramos. Do tédio das reuniões de família e dos longos dias sem fazer nada porque não tenho vontade de nada. Do garoto que não me respondeu e que eu demorei tanto tempo pra conseguir força de chamar... 

Nossos vícios são formas de fugir um pouco da nossa solidão. E eu devia parar de usar esse plural majestático ridículo: meus vícios são uma forma de fugir um pouco de minha solidão. A bebida é uma mentira, os remédios também, o pornô é uma mentira. A única verdade é a absoluta desolação do homem, miserável e patético que recorre a essas coisas para se sentir um pouco melhor, até pelo menos que elas passem...

Talvez eu devesse tomar mais uma dose pra enfrentar esse feriado da Proclamação da República (sic!), sem prestar atenção a nada... E quem sabe mais alguns remédios...

Sozinho com todo mundo

a carne cobre os ossos
e colocam uma mente
ali dentro e
algumas vezes uma alma,
e as mulheres quebram
vasos contra as paredes
e os homem bebem
demais
e ninguém encontra o
par ideal
mas seguem na
procura
rastejando para dentro e para fora
dos leitos.
a carne cobre
os ossos e a
carne busca

muito mais do que mera
carne.
de fato, não há qualquer
chance:
estamos todos presos
a um destino
singular.

ninguém nunca encontra
o par ideal.

as lixeiras da cidade se completam
os ferros-velhos se completam
os hospícios se completam
as sepulturas se completam

nada mais
se completa.

(Charles Bukowski)