sábado, 30 de dezembro de 2023

O meu requiem II

Ah, quem me dera eu pudesse ser
A tua primavera
E depois morrer
(Vinícius de Moraes)

Talvez tenha sido o pior episódio depressivo que tive em mais de um ano. A última vez que fiquei debilitado assim ainda estava em Valparaíso, naquela casa, abandonando toda e qualquer perspectiva de existência, e abandonado pelos amigos, já sem esperanças até para minha família. 

Uma vez mais eu clamei pela morte, disse isso francamente, eu não via nenhuma razão para continuar aqui, estava sendo sincero. E não acho que alguém tenha levado isso à serio. Nunca levam, todos acham que quando falo sobre a morte é movido por um desespero por atenção. Não é verdade, tanto que não digo a ninguém da minha resolução, dessa decisão profunda, silenciosa e cheia de convicção, que é partir quando minha mãe já mais estiver aqui, sendo ela a razão para não ter feito isso ainda porque, em primeiro lugar, lhe causaria dor demais, e sei que nesse tempo todo ela foi a única que não desistiu de mim, então não posso deixar de lhe prestar auxílio em sua velhice, muito embora ache que sua esperança em mim seja tola e infundada. Ela é só mais uma que se recusa a ver a verdade. No mais a minha existência está limitada pela dela, não vejo nenhuma razão para continuar aqui se não for por isso. 

E é por essa razão que clamo para que seja levado sem que eu intervenha propositalmente, afinal permanecer aqui ainda me é custoso, e não raramente, como nos últimos dias, me vejo no limite da tolerância de qualquer aspecto do ser. A essa altura o ser cansa. E eu só queria voltar ao nada. 

Vou, como num vídeo de alguma música melancólica genérica, olhando pela janela do ônibus mas com a mente distante, pensando nele, em outro estado, numa festa com outras pessoas, as mulheres e os homens dando em cima dele sem que ele perceba, todos com sentimentos libidinosos, e ele nem diferencia eles de mim, age como se fôssemos todos iguais, como se meu amor, esse amor que me dói até o tutano, fosse igual a atração que esses pervertidos têm ao olhar uma figura pura como a dele. Será que, ao fim de tudo, eu serei como eles? Por isso ele sequer olha para mim de outro modo?

Percebo então que continuo ouvindo os compassos desse meu requiem, a sinfonia final, ao notar que, nessa manhã fresca, em todas as infindáveis possibilidades do ser, eu me via apenas pensando em você. E sempre vou alternando as minhas narrativas como se falasse diretamente a você ou em frente a um espelho. E você disse que não merecia meu amor, não é a primeira vez que o diz, e entendo nas entrelinhas que, em verdade, era apenas uma tentativa de se desvencilhar de mim. Eu sei como é isso.

Seja rejeitado mais vezes do que é possível contar, seja abandonado e vire motivo de risos paras as pessoas que mais ama e de desprezo para aquelas que mais preza, e logo você começa a perceber com mais facilidade que a sua presença é dispensável, trivial e até mesmo incômoda. 

Droga, queria não ser tão patético assim.

Queria poder ser, como naquelas histórias, um assassino impiedoso que conserva sua força ainda depois de mil anos, ou um general brutal que traz de volta os mortos pela sua espada, aquecendo as suas cinzas e fazendo-os sentir novamente a euforia da batalha. 

Mas não, eu sou apenas uma pétala de flor, em singela aflita pela chuva fria, solitária, observando silenciosamente um largo e vasto campo onde, ao longe, duas crianças brincam sob o olhar carinhoso dos pais numa choupana quentinha sem que, no entanto, se deem conta da minha presença ou que possa deles me aproximar. Há diferença entre as cenas bonitas, as declarações românticas, os olhares carinhosos e as pessoas que fazem sexo nos banheiros sujos das estações, entre aqueles que traem em carros apressados. Há diferença entre a flor e a espada em chamas. Há diferença entre a primavera e a morte.

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