segunda-feira, 31 de maio de 2021

O que esperar

O que pode diminuir essa angústia? O que eu posso fazer pra me sentir melhor, pra não me deixar ser consumido pela ansiedade que se abre debaixo de meus pés como um abismo, e me consome como um oceano de águas geladas e escuras sem fim? O que será de mim se, ao passar destes três ou quatro dias não restar nada de minha mente e nem de meu corpo? O que mais eu poderei fazer? 

Não dou conta, eu sei que fraco e um lixo, eu sei que não consigo fazer nada direito, e cada pequeno deslize é como se gritasse isso em meus ouvidos, é horrível, é como se fosse a pior pessoa do mundo, é como se fosse um desperdício de espaço, como se não devesse existir. E é assim que me sinto, encaro a minha vida como um grande erro, e apenas isso. Não vivo senão que apenas sobrevivo, um dia após o outro, um maldito dia após o outro, cada um sendo pior do que o anterior, e sem nenhuma perspectiva de melhora. 

Quando vou conseguir sair dessa cama? É como se meus ossos estivessem amarrados a ela, é como se ela me sugasse as forças, e todos meus músculos, cada fibra do meu ser, perde a capacidade de se desprender dela, e eu só consigo ficar aqui, vegetando, sem conseguir me mover, sem conseguir ser mais do que essa massa disforme que se lamenta de um lato para o outro a espera de alguma coisa, a espera de alguém, a espera de que algo aconteça. Mas eu mesmo não tenho ideia do que seja... Eu só fico aqui, e não é uma existência muito honrada, é apenas isso, uma existência, mínima, patética, deplorável, que muito bem poderia desaparecer sem prejuízo algum. 

Já não creio que alguém possa mudar isso. Já não creio no futuro. Já não sou tolo o bastante para ter esperanças de qualquer tipo. Agora tudo o que eu espero é o caos total, o erro, o findar, a morte... Agora tudo o que eu desejo é voltar ao nada, retornar a inexistência. 

sábado, 29 de maio de 2021

Do Enriquecer

Já havia dito que estou em processo de afastamento das minhas atividades mais complicadas para me concentrar numa possível recuperação, numa estabilização emocional do meu Transtorno de Personalidade Bipolar que, entre pressões e e crises tem me desgastado ao ponto de que já não consigo realizar as tarefas que antes me eram das mais simples. Claro que, para conseguir me acalmar um pouco, preciso de um divertimento que cumpra o requisitos necessários para alguém como eu, isto é, que corresponda as aspirações da minha alma. Não podendo ser simples demais, pobre, e não pode ser feio e, acima de tudo, precisa me ajudar a cultivar alguma virtude em mim.  

Tenho me dedicado com bastante afinco as séries e filmes nos últimos meses, na verdade já há alguns anos essas coisas, ao lado da música, representam o ponto alto do meu ser: são obras que me inspiram, de algum modo enriquecendo a minha experiência humana, me fazendo abrir para o mundo da possibilidade, tendo contato com experiências que jamais poderia ter por sozinho mas que, com o auxilio de tais obras eu me sinto um pouco mais próximo daquela humanidade que conhecia a Verdade e a Bondade por meio da Beleza. 

É assim quando posso horas e horas na frente da TV assistindo tantas obras que tenham esse caráter não só formativo mas também divertido. A doação dos médicos por aqueles que sofrem, sacrificando suas próprias vidas por desconhecidos, é belo ver como a bondade de se serve desses homens para vir ao mundo, principalmente um mundo em que a bondade já não aparece muito em nossas relações. Ver doutores e doutoras em The Good Doctor e Hospital Playlist se entregando, sorrindo quando algum paciente se recupera e se emocionando quando conhecem a história de uma família que passou por dificuldades, isso humaniza o ser por meio da bondade, da generosidade, da paciência, o ser que antes encontrava-se fechado nas próprias impressões mais imediatas. 

Os meus queridos BLs, me ensinando diversas formas de amar, de conhecer, de cuidar e de se conhecer a partir do contato com o outro. A grande maioria das pessoas enxerga apenas a superficialidade de relacionamentos de jovens bobos e confusos. Mas as coisas não são assim, elas mostram a complexidade dos sentimentos humanos, em relação as experiências mais diversas e contraditórias da vida: é o que se pensa de si mesmo que se confronta com um futuro incerto porém desejoso, o passado que oferece certa segurança e o amor que se mostra sempre como um polo magnético, que chega e domina como o Imperativo Categórico de um Mandamento Divino. Tem sido assim atualmente com FIsh Upon The Sky, e o complexo de inferioridade do personagem principal que se acredita indigno do amor do outro protagonista e que, justamente por isso, nega seu amor. Em Nitiman vemos o amor acontecendo por acaso, e depois alguém lutando para que esse mero acaso se torne algo mais forte e real. 

I Promised You The Moon lida com os sentimentos mais conflitantes que podem atingir um jovem apaixonado e inseguro de si e de seu futuro. É o ser e o que faz parte do ser, os sentimentos, as dores, os medos e as alegrias numa eterna tenção que não pode ser resolvida senão sem a ajuda de tal almejada criatura: a alma amada que, no amante, se purifica, isto é, perde aquilo que não lhe é essencial para perceber que o amor é o essencial, e não separado dele há a compreensão, a dedicação, o respeito, a comunicação. Não em separado, como o disse, mas como partes integrantes que não poderiam dele se desprender. O sorriso que desfaz a dor e o gelo de tantas noites frias, os sorrisos que são como pontos de luz em meio a escuridão total da mídia que nos apavora a cada nova manchete.  

Também nos oferecem contato com aquela beleza imediata, a que encanta os olhos e por isso se marca na alma. É a beleza dos homens e mulheres que, nos cativando, oferecem muito mais do que isso, nos arrastando ao verdadeiro após sermos cegados pelo brilho de sua beleza. Eu me encanto com sua beleza e, por causa dela, a beleza ainda tem em mim um apaziguador de todo o caos que cerca o resto. 

Essas histórias enriquecem a nossa alma, e nos oferecem meios de ação humana. Ao nos depararmos com uma situação em nosso cotidiano devemos buscar ali, naquele banco de dados, a experiência e a sabedoria para lidar com o que se apresenta, com aquela arcabouço que adquirimos com o contato de tantas experiências humanas possíveis: é o contato com o que poderia ser que nos faz entender aquilo que é agora. 

É, analogamente e mutatis mutandis, guardadas as devidas proporções, aquilo que os grandes mestres do passado fizeram, inspirado os grandes mestres de hoje. Assim foi com Shakespeare, Camões, Dante, que inspiram tantos outros que hoje contam histórias que enriquecem o ser: Miyazaki e seu espaço vazio repleto de significado, como um portão quem embora seja um espaço vazio, deixa a luz do sol entrar. Bergman e a intimidade da mente humana, Dostoievsky condensando tantos pensamentos numa obra máxima. Gerações diversas que, hoje, já encontram a possibilidade de se enriquecer com sua visões.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Venha


Pois eu vivo com o mesmo sem vontade com que rasguei o ventre à minha mãe, disse o poeta em seu cântigo negro, e poucas vezes eu me identifiquei tão profundamente com palavras quanto com essas que agora reverberam minha mente como um eco profundo do meu ser. 

É com esse sem vontade que eu vejo o mundo ao meu redor, que eu encaro todas as coisas com um filtro cinza, sépia, sem graça, vazio e sem contorno... É com esse sem vontade que tudo tem a mesma aparência de algo banal como um ar que passa, soprando sobre o rosto de um qualquer. E é com esse sem vontade que eu vejo as plantas serem causticadas pelo sol, que eu vejo os dias passarem, as folhas caírem, e as pessoas caírem também, com a mesma vitalidade daquelas folhas secas que já não podem cuidar de si. É com esse sem vontade que o dia após dia se tornou um suplício eterno, algo que eu só poderia existir nos versos de Dante, mas que agora experimento na minha própria carne, como aquele infeliz condenado por Zeus a ter seu fígado devorado por uma águia monstruosa apenas para se recuperar totalmente pela manhã para mais uma vez ter suas fibras rasgadas pelo bico forte da fera. 

Assim é cada manhã, assim é cada pôr do sol: uma condenação que se prolonga, um fera que me destrói sem nunca me matar, fazendo com que o desejo da morte seja algo doce na mente de quem já não pode imaginar uma vida que não seja dor e sofrimento. 

Deveria as cores das flores ou o beijo do vento no meu rosto ter algum significado pra mim? Tudo o que eu vejo é a decadência desse mundo, enquanto entoo baixinho os versos de Bach, dizendo a mim mesmo: Komm, süßer Tod, komm selge Ruh. 

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Ironia

É uma ironia ácida a percepção de que não podemos ser para o outro aquilo que esperam de nós, ainda que seja algo simples. Não podemos, de maneira alguma, corresponder as expectativas criadas, por menores que sejam, e muito menos esperar que correspondam aquelas que nós criamos, simplesmente por um olhar, ou por precisar de algo que, supomos, tal ou qual pessoa pode nos dar. 

A verdade é que não podemos ser para o outro mais do que motivo de decepção e desordem. Somos universos incomunicáveis, cujo alvorecer só pode ser visível dum ponto específico de nossa própria consciência, inexprimível a qualquer outro ser de outra galáxia distante, por mais que ele diga ser ou estar próximo. A verdade é que estamos distantes demais para sequer entender a distância que o outro está de nós. 

E a nossa realidade é essa, é perpetuar desumanidades e não acompanhar ninguém, vivendo com o mesmo sem vontade que a luz de um estrela já morta ainda brilha no céu, não sendo mais do que, no entanto, recessos de algo que já se foi. Muitos de nós vivem apenas assim, do brilho de algo que já não existe mais senão que nas areias do tempo percorre terras distantes para criar na mente de quem observa a ilusão de que aquela luz ainda vive. Vivendo na mente já não morre, senão que morto já se encontra em seu próprio coração, e vive assim, tão frágil, vazio e sem contorno.

Educação Humana

Minha família embarcou num conflito com os vizinhos da casa dos fundos nas últimas semanas. Acontece que eles vêm abusando do direito de serem inconvenientes e, considerando que as duas casas são grudadas, o mínimo de bom senso é necessário para uma boa convivência. 

O pessoa de lá só consegue se comunicar na base do grito, ninguém tem a capacidade de falar num tom normal, nós aqui de casa participamos passivamente de todas as conversas, não importando o quão íntima elas sejam. A mãe é a pior, ela grita das seis da manhã até altas horas da noite, isso quando ela não liga o som bem alto e tenta falar ainda mais alto do que ele, gerando uma situação profundamente constrangedora em que somos obrigados a ouvir o conversar pífio. Os filhos não se dão bem e brigam o dia todo, o que conta com a intervenção da matrona expansiva. 

Eles não têm a menor noção do que seja educação básica. A garota tem o vocabulário de um traficante de favela e o moleque, bom, ele só não tem a idade necessária pra isso, pois de resto... 

Minha mãe veio falar comigo sobre como se assustou com a frequência com que eles usam palavrões para falar uns com os outros. Ela ainda não percebeu que essa família não é a exceção, mas apenas uma demonstração bem clara do cidadão médio, que escuta as mesmas dez músicas sertanejas todos os dias, jogando dominó e bebendo cerveja barata enquanto conversa falando da vida dos parentes próximos ou distantes como se tivesse algo a ver com eles. A mesquinharia, a pequenez de espírito gritada em cada palavrão é apenas um mostruário da verdadeira pequenez que há neles, fruto de uma vida absurdamente longe da cultura. Minha mãe só não percebeu ainda que aqui em casa não é diferente, que a minha irmã tem todos os adjetivos negativos dos vizinhos e até mais alguns. A única diferença é que a gente não se expressa com tamanha veemência com frequência, mas que todos aqui são tão baixos e dignos de pena, são!

Essa é uma das perspectivas que mais me deprimem. Meu sonho é morar num lugar onde, pelo menos, o cidadão médio não seja tão baixo. Onde cultura seja ir ao teatro e ouvir música um pouco melhorzinha sem que esses patifes digam que é música de dormir, onde a beleza seja a regra e não a exceção, onde as paredes tenham ao menos reboco e a mente das pessoas o mínimo de cultura geral. 

Isso soa de uma arrogância tremenda, e eu sei disso, mas é a verdade, o mundo ao meu redor não me causa outra reação a não ser a de completo nojo e desprezo absoluto de quem olha para seres que já não chegam mais ao status de seres humanos, mas apenas que parecem com humanos, pois nem falam mais como humanos. Alguns animais não receberam o benefício da educação humana, dizia Satie. 

domingo, 23 de maio de 2021

Ária

Eu me odeio nesses dias em que sou tomado de súbito pela carência, odeio o quanto fico vulnerável, odeio me sentir incompleto, como se alguém fosse justamente a parte que falta em mim, odeio me sentir insuficiente, e odeio como o vazio do meu quarto e da minha cama gritam exatamente isso: que eu sou insuficiente, que eu nunca serei o bastante para ter alguém comigo, nem mesmo uma simples companhia para deitar ao meu lado e ouvir uma música, ou contar algum aleatoriedade. 

Lembro bem que, há pouco mais de um anos, meus amigos mais chegados se revoltaram ao ler que, mesmo com eles ao meu lado, eu ainda me sentia sozinho no mundo. Pois bem, acontece que o tipo de companhia que eu almejo não é a mesma que se obtêm numa amizade, ainda que não acreditem nisso, ainda que pensem o contrário. A companhia que almejo é a da alma, aquela capaz de tapar esse imenso vazio, de completar de algum modo a imperfeição fundamental que há no âmago do meu ser. 

Por isso eu me sinto tão sozinho aqui no meu quarto escuro, com a voz solitária de alguma cantora de ópera cantando uma triste ária ao fundo, quanto numa festa, rodeado de amigos, sorrindo e brincando ao som de algo mais animado. A diferença é que aqui a solidão se manifesta de modo quase palpável, doendo no meu corpo, ela é a minha única companheira inseparável e ela, só ela, está ao meu lado ouvindo essa música, esse lamento barroco repleto de sentimentos, assim como o violino faz companhia a voz da cantoria solitária. 

É horrível sentir-se só o tempo todo, e ainda pior nesses momentos em que a dor da solidão prostra o homem completamente, marcando a fogo cada fibra de seu ser, macerando seu coração até extrair a última gota refinada de agonia que escapa dos olhos como uma última súplica aos céus: oh, até quando viverei a solidão? 

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Trabalho em vão

Eu já esperava que as coisas dessem errado, já esperava que a palavra que me deram não valesse de nada. Acontece que, atualmente, tenho tomado como metodologia geral para o convívio com o próximo nunca confiar em ninguém. Mesmo que já tenha colocado uma data de entrega suficiente para que eu conseguisse dar conta de preparar todos os detalhes da celebração com tempo hábil as coisas ainda desandaram. 

Dois dias antes da cerimônia a costureira me avisa que as vestes dos coroinhas não estão prontas, o que torna praticamente inviável que eu consiga fazer a cerimônia conforme planejara, e que significa também que não poderei me afastar nesse fim de semana, conforme planejara. 

Isso destruiu meu dia, e minha ansiedade atacou com brutal violência. Eu precisei fazer longas ligações com o padre, me desculpar com duas dúzias de pessoas e explicar a mesma coisa uma centena de vezes. Foi horrível. E eu havia me preparado tão bem para isso. Organizei um belo rito, comprei as cruzes, encomendei crucifixos, mas as vestes que eu encomendara antes de tudo isso destruíram meus planos.

A irresponsabilidade foi tremenda, eu contava com isso, precisava que, ao menos na minha despedida as coisas funcionassem como deve ser. É horrível pensar que todo meu trabalho foi em vão, e eu estou absolutamente devastado. 

Tomei uma quantidade absurda de calmante, mas só consegui dormir por duas horas, restando apenas um gosto horrível na boca, amargo, do remédio e da sensação de completa incapacidade de conseguir realizar as coisas como devem ser, de fazer as coisas como gostaria, de dar as celebrações a dignidade que elas necessitam. 

Mais uma vez é como se tudo o que eu faço não servisse de nada, é como se eu perambulasse ao vento como farrapo, sem rumo e sem razão de ser, já que meu esforço não consegue nada, já que eu não consigo nada...

X

Claro que depois não poderia deixar de ser tomado por uma profunda sensação de incompetência, com a incerteza do futuro se apossando de mim como se tentáculos me apertassem e espreitassem a minha mente. Já tinha um plano traçado, iria descansar depois desse fim de semana, agora eu não tenho mais certeza de nada além de que já ultrapassei meus limites, de que não há nada mais que consiga fazer e pior, que serei obrigado de algum modo a permanecer ainda não sei por quantos dias assim... E eu preciso, mais do que qualquer coisa, me desligar, conseguir me reconectar comigo mesmo, conseguir algum equilíbrio. 

Isso, como era de se esperar, fez com que outras tantas coisas viessem à minha mente: a percepção de que estou sozinho e deprimido numa sexta-feira à noite, enquanto muitos saem, se divertem ou simplesmente estão na companhia de quem amam. 

Me vem nesse momento a sensação de completa solidão. Estou sozinho na apreensão desse problema, estou sozinho preocupado enquanto os outros ocupam suas mentes com outras coisas... Mas por qual razão comigo tinha de ser assim? Só comigo? É lamentável e minhas lágrimas de nada servem pra resolver isso. Eu sou um inútil que, mesmo fazendo meu melhor ainda consegue falhar de modo miserável. Eu sou um inútil que nunca conseguiu cativar ninguém, eu sou um inútil que devia ter a decência de sumir do mundo e assim, ao menos facilitar as coisas para mim. Não consigo sequer escrever algo descrevendo o quanto me sinto péssimo nesse momento... Pff, eu sou patético e digno não de pena, mas do mais profundo desprezo. 

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Resenha - A Caminho do Céu (Move To Heaven)

Contém SPOILERS, prossiga por sua conta e risco!

Um dos objetivos mais bonitos da arte, sem sombra de dúvidas, é a forma como ela nos aproxima das experiências humanas que não poderíamos viver por nós mesmos, fazendo com que tenhamos uma visão melhor, cada vez mais abrangente do possível e, assim, nos tornando pessoas mais capazes de lidar com aquelas experiências que somos obrigados a lidar. Dentre todas a experiência comum a todos, que mais cedo ou mais tarde se apresenta sem exceção, é a perspectiva da morte, e o impacto dela sobre a vida dos que tem contato com ela é modificada de uma vez por todas. 

Move To Heaven conta a história de Han Geu-ru, um jovem com Síndrome de Asperger, que trabalha na Caminho do Céu como Auxiliar de Trauma, cuidando de separar os pertences de pessoas já falecidas e os entregar aos seus parentes quando, por algum motivo, a família não pode ou não quer fazê-lo. Inicialmente ele trabalha com seu pai mas, após o falecimento deste, ele precisa se adaptar ao estilo irreverente de seu tio, Sang-gu, que se torna seu guardião legal. 

O trabalho deles parece estranho, num primeiro momento, se livrar de tantas coisas que alguém acumula em vida e escolher alguns objetos como lembrança. Geralmente uma tarefa difícil que, não raramente, as pessoas se recusam a fazer. Acontece que os objetos de uma pessoa fazem parte de sua história, e muitas vezes ajudam a contar essa mesma história, mesmo para aqueles de quem somos mais próximos. Logo começamos a entender a importância do que eles fazem: eles ajudam as pessoas a entenderem melhor aqueles que se foram e, dessa forma, conseguem ajudar no processo complicado que é o luto, algo que todos devem vivenciar em algum momento da vida. 

Acontece que nossa existência é repleta de ciclos, de rotinas, de sonhos, todos temos uma história. Quando alguém morre, muito embora aquela história seja interrompida, a dos que vivem ao seu redor continuam, e tanto a vida quanto a morte tem impacto naqueles que nos cercam. O serviço de auxílio de traumas ajuda as pessoas a compreenderem isso. 

Geu-ru (Tang Joon-sang) é jovem mas tem muita consciência da importância do seu trabalho, e o executa com zelo total. Por conta da Síndrome de Asperger (um estado do espectro autista que dificulta as pessoas a se adaptarem a diversas interações sociais mas que possui uma grande adaptação funcional e grande capacidade de ação em áreas específicas do saber) ele não é fácil de lidar, perde o controle das situações com frequência e pode irritar as pessoas ao seu redor, ou ficar irritado com alguma situação e acabar se machucando por isso. Após a morte do pai ele encara com muita seriedade o serviço, tomando a frente das solicitações feitas a empresa. Ele sempre termina um trabalho, não importando o quanto seja difícil, e sempre ensina as pessoas como é importante prestar atenção as histórias dos nosso entes mais próximos, mesmo que eles não queiram ou não entendam muito bem a razão disso. 

Sang-gu (Lee Je-hoon) é um ex-pugilista de rua e tio, praticamente desconhecido de Geu-ru, tendo um passado complicado envolvendo um antigo parceiro e também uma delicada relação familiar com Jeong-woo, seu irmão que o deixou como guardião de Geu-ru. Ele é esquentado, grosseiro e despreocupado, assustado com frequência pelos fantasmas do passado e agora precisa aprender a lidar com o sobrinho e ainda ajudar no trabalho do seu falecido irmão.

Pouco a pouco vamos entrando mais no passado, tanto dos clientes da Caminho do Céu quanto dos protagonistas, e a relação entre eles vai se estreitando. Sang-gu inconscientemente vai se tornando paternalista e desenvolvendo sentimentos pelo sobrinho, que é a única pessoa que restou de sua família, ao passo que Geu-ru também vai observando o esforço dele enquanto continua o trabalho do pai. 

Eles contam com a ajuda de algumas pessoas pelo caminho, especialmente da vizinha Na-mu (Hong Seung-hee) e melhor amiga de Geu-ru, que assume a responsabilidade de cuidar dele quando o tio parece ser tão displicente em seu trabalho. Ela implica com ele de início mas aos poucos vai ajudando-o a cumprir sua missão. 

Com o passar da rápida temporada nós nos apegamos facilmente a cada um dos casos, sempre delicados e envolvendo uma grande carga dramática, que foi muito bem dosada pra não se tornar um dramalhão mas ainda emocionar na medida em vários momentos. Lágrimas são inevitáveis, e a lição que elas trazem também. A reflexão acerca da morte, algo que muitas pessoas evitam a todo custo, se mostra como algo não romantizado, mas necessário ao crescimento humano, bem como do fortalecimento dos laços que temos com aqueles que amamos. 

A atuação de Tang Joon-sang é primorosa e ele trata o personagem com bastante delicadeza e habilidade, levando em consideração que Asperger afeta principalmente o contato social, algo que é extremamente importante para um ator, é de se impressionar que ele consiga interpretar tão bem alguém que tem uma personalidade necessariamente oposta as suas habilidades mais importantes como figura pública. Além disso ele é um fofo e é praticamente impossível não querer apertar as bochechas dele em todos os episódios. 

O desenvolvimento de Sang-gu também é incrível de assistir. Desde o começo ele parece ser bem mais do que aparenta e, conforme vamos entrando no mundo obscuro do seu passado, vamos entendendo melhor a sua atitude grosseira, como uma casca para se proteger dos que o cercam e proteger os que o cercam dele mesmo. 

Há um equilíbrio muito bom entre a apresentação dos casos atendidos pela empresa, o impacto disso nos protagonistas e a exploração do passado, o tecido da trama fica bem feito e as resoluções do roteiro não são óbvias e nem simplórias, se encaixando bem com a complexa trama das nossas vidas, surpreendendo, despertando sentimentos conflitantes como alegria, raiva, saudades, medo... Enfim, enriquecendo e aprimorando a forma como lidamos com as nossas próprias experiências, inclusive as mais difíceis, já que se aqueles que amamos fazem parte da nossa história eles continuam a existir, em nossos corações, mesmo depois da morte.

"Só porque você não vê não significa que não está ao seu lado. Enquanto você lembrar nunca vai desaparecer."

Nota: 10/10

Curiosidade: para aqueles que, assim como eu, gostam de Kpop, é grata a presença de rostos conhecidos, como Hongseok do Pentagon e Soo-young do Girls' Generation

terça-feira, 18 de maio de 2021

De minha pele

Alguns dias atrás um garoto bem mais novo me dizia que não gostava de usar roupa social, e eu disse que concordava com ele, que apenas usava esse tipo de roupa em momentos socialmente imprescindíveis e que, quando podia ser eu mesmo, me vestia bem mais à vontade, e que ele, que só me vira socialmente vestido, se assustaria se me visse como eu gosto. Poucos dias depois ele me viu numa palestra usando um poncho azul e uma bolsa transversal, me olhando surpreso. 

A carinha dele me fez sorrir, e eu pensei que estava bem daquele jeito, confortável e ainda assim conseguindo me destacar um pouco dentre tantos que se vestem de modo apagado, o que justamente me incomoda na roupa social, o fato de ser tudo muito comum. Branco, preto, azul  ou rosa, peças quase sempre com os mesmos cortes que se diferem apenas em elementos pequenos demais como se dissessem que tudo que é um pouco diferente é inerentemente ruim. 

Eu sempre reneguei toda e qualquer tentativa de ser normalizado, mesmo quando não fazia a menor ideia do que isso significava. Lembro-me de chorar, aos seis ou sete anos, por perceber que as possibilidades das roupas masculinas são bem menores do que as femininas e que, no meu caso, menos era sempre melhor; Eu usava jeans e sapato social enquanto minha prima podia usar saias, vestidos e sandálias de salto, brincos, pintar o cabelo e tantas outras coisas. Ainda hoje eu não me imponho limites, se quero sair na rua de pijama azul berrante, como fiz ontem, ou se vou usar um vestido verde ou um sobretudo vermelho. 

Não gosto de me esconder por trás de uma roupa que me deixa no mesmo nível que os outros, como se isso fosse o ideal, como se fosse bonito todos terem o mesmo pensamento pasteurizado por normas bobas ditadas por um sistema eurocêntrico num país onde faz calor em três das quatro estações do ano. Abomino quem anda de terno em plena Brasília. 

Isso, de algum modo, me faz pensar por outro lado: essas pessoas representam um papel com a ajuda das suas roupas, e eu não devia criticá-las por isso, afinal quem nunca representou um "Eu" que fosse mais apropriado a essa ou aquela circunstância, adaptando a quantidade de personalidade a ser liberada conforme o público? Não que isso seja em si mesmo um crime, todos fazemos o tempo todo e não consigo sequer imaginar um mundo em que não deixemos de dizer algo apenas para preservar o outro do choque ou até mesmo por pura preguiça de explicar as razões que podem, ou não, existir para tal ou qual comportamento. 

Quem não esconde do outro um transtorno de personalidade, ou simplesmente disfarça o tesão acumulado com euforia e drogas, quem nunca disse estar com dor de cabeça apenas para evitar dizer que não queria estar ali? E isso porque somos obrigados o tempo todo a fazer coisas que não queremos, e isso não é uma crítica ao universo, apenas uma constatação pura e simples que, se acompanhada de um sentimento negativo, vem das lembranças que essas palavras despertam em nós, como aquele dia insuportável de confraternização no trabalho ou aquela resenha que terminou um saco porque depois de uma ou duas garrafas de tequila a lembrança do ex, que é também parte do círculo de amigos, estava mais forte do que seria suportável.

Continuo renegando me vestir igual a todos, como se fôssemos obrigados a usar um uniforme de humanos. Minha pele é meu uniforme e isso basta, o que vem por cima disso é aquilo que, de algum modo, reflete o que os outros não conseguem ver. Não renego, por outro lado, que precise interpretar uma dúzia de "Eus" a cada novo relacionamento humano. Ninguém pode ser despido de todas as convenções o tempo todo, e não sei dizer o que está por trás disso. Vamos continuar escondendo a preguiça, a vontade de foder, vamos continuar escondendo a antipatia com aquela colega chato ou o conhecido que força intimidade, e tudo bem, contanto que nesse ínterim não nos percamos totalmente no personagem e acabemos nos perdendo. Precisamos nos permitir uma unha pintada de preto ou um  vestido verde de vez em quando para que, ao olhar no espelho, esses pequenos elementos consigam nos lembrar que por baixo daquelas roupas há uma pele e que, abaixo delas há ainda uma pessoa inteira. 

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Vislumbre

Já começo a lidar com as primeiras consequências da minha decisão me afastar da pastoral, tomada após muita reflexão nos últimos dias. Já distribuí avisos, como se minha saída fosse algo extremamente importante e as pessoas fossem sentir minha falta de verdade e não apenas o desconforto de não poderem mais jogar um monte de coisas nas minhas costas. De qualquer modo eu gosto muito do que faço, e me dói pensar em deixar, mas me dói mais ainda pensar em continuar levando essa situação adiante. 

Por um lado sinto uma crescente ansiedade, que eu vou precisar administrar nessa reta final, já que alguns compromissos importantes estão marcados e ainda tem algumas coisas que preciso resolver, como lidar com a costureira que não me entregou as vestes dos coroinhas ainda e o medo que tenho de que ela não dê conta de fazer a tempo. Também sinto já algo como um certo alívio, em não precisar pensar em nada para além dessa data. Minha vida sempre foi de constante pensamento no futuro. Já começava o ano pensando na quaresma, começava a quaresma pensando na semana santa, as primeiras semanas da páscoa pensando na festa da padroeira e daí em diante, eu sempre estava ocupado preparando algo. Quando a data se aproximava as pessoas se assustava duas vezes: uma porque não tinham ideia de que as coisas acontecem sucessivamente e obrigatoriamente todos os anos, como se fossem assistentes passivos e não agentes ativos desatentos demais pra saber de suas próprias obrigações, e outra por verem que eu já tinha ideias prontas para serem colocadas em prática, fruto de uma obsessão pela perfeição e por uma ansiedade que me impedia de relaxar igual a eles. 

O que me espera agora é o charme de alguns meses vivendo em dopada candura, sendo alimentado periodicamente por comprimidos brancos e gotinhas azedas que, depois de trinta ou quarenta minutos, me fazem ter doces delírios de alegria antes de me fazerem adormecer profundamente, sem direito a sequer sonhar. Talvez a minha depressão diminua e eu consiga voltar, lentamente, e assumir algo de novo, ou talvez eu tenha de viver um pouco, me sentindo livre dessa corrente depressiva constante que fora amarrada aos meus ossos e posta ao redor do meu corpo, antes de conseguir encarar de novo uma responsabilidade de frente. 

É claro que meus dias precisarão ser preenchidos de algo, como hoje, em que depois de uma aula e de algumas horas de sono eu me absorto em tédio e, devo dizer, tesão acumulado, mas sei bem que é só um efeito colateral dos remédios que tentam me afastar da névoa depressiva injetando no meu corpo algum ânimo, e eu bem sei também que este se esvairia na primeira tentativa, não restando outra opção além de ler ou ocupar a minha cabeça com séries e vídeos na internet, já um pouco melhor daquele abismo em me encontrava quando, ao contrário de hoje que vislumbro um futuro incerto porém um pouco mais claro, tudo o que via era a noite escura e vazia de uma vida sem sentido que, no entanto, me obrigava a lutar constantemente. 

Justamente esse cansaço advindo de tantas lutas, que me fez pedir por um tempo sozinho, um tempo pra tentar conseguir equilibrar um pouco meu organismo depois de tantos anos de ansiedade e depressão, depois de tanta coisa, passando por cima de tudo sem conseguir lidar da melhor forma possível, ignorando e esperando passar sozinha, e funcionando pela simples aglutinação de problemas, deixando que eles se acumulassem no fundo da minha alma e se agitando periodicamente, conforme as águas se tornassem revoltas lá em cima. 

domingo, 16 de maio de 2021

Resenha: HIStory 4 - Close To You

Esse post contém SPOILERS, prossiga por sua conta e risco. Comentários desrespeitosos serão excluídos e denunciados. 

Não é de hoje que as pessoas são rápidas demais em julgar tudo aquilo que lhes pareça um pouco fora do seu mundinho, com essa temporada de HIStory não foi diferente: dividindo opiniões desde os primeiros episódios o arco Close To You foi cancelado e aclamado por parcelas opostas da comunidade BL, mas será que precisava de tanto?

A franquia HIStory, que conta com antologias ligadas por pequenos elementos, havia sido praticamente cancelada na última temporada, com os arcos Trapped e Make Our Days Count, após a saída de vários produtores e troca de nomes nas empresas responsáveis,  mas qual não foi a nossa surpresa quando anunciaram que ela ganharia uma continuação, HIStory 4 - Close To You pegou a onda da popularidade das temporadas anteriores e fez uma estreia até barulhenta, mas o impacto das críticas foi misto, tendendo ao negativo, e isso acabou ofuscando um pouco o brilho dessa temporada.

Esse arco com a história de Xiao Li Cheng (Charles Tu) que, para conquistar sua antiga amiga de infância Liu Mei Fang (Cindy Chi) decide fingir que gosta de séries BLs, já que ela é uma fujoshi de carteirinha e, como ele fazia bullying com ela na infância esse era o único jeito de ele conseguir se aproximar sem que ela o recusasse. Nessa empreitada ele começa a fingir que gosta de seu colega de quarto e parceiro no trabalho, o sério e cuidadoso Teng Mu Ren (Anson Chen). Eles trabalham numa empresa que organiza casamentos, e eles moram juntos com Ye Xing Si (An Jun Peng) que trabalha em outro departamento. Os três são grandes amigos e costumam fazer tudo juntos. O quadro muda um pouco quando aparece Fu Yong Jie (Lin Chia Wei) que é filho da madrasta de Xing Si e está mais do que determinado a conquistar o irmão de consideração para fazer com que ele volte pra casa dos pais e eles possam viver juntos como uma família.

A primeira coisa que não agradou muito os fãs foi a aura mais comédia da série. Ela traz um clima bem mais leve e despretensioso pra tudo e, em comparação com o plot geral das temporadas anteriores que exploraram temas bem delicados (abandono, traição, quadrilhas, morte) realmente pode parecer que essa temporada não se deu o respeito devido, mas eu discordo desse ponto de vista. Exatamente pela forma trágica que terminou Make Our Days Count é que precisávamos de uma história um pouco mais otimista, pra equilibrar e dar uma continuidade agradável, ainda que a proposta seja a de uma antologia, mesmo que pela primeira vez os arcos tenham se ligado de um modo nada discreto, o que eu também achei um ponto bem positivo. 

Li Cheng é super confiante e não pensa duas vezes em fingir que está interessado no amigo, ele tira fotos, se aproxima de modo íntimo em público e ainda mostra ciúmes, tudo isso faz com que Mei Fang abaixe a guarda um pouco mas, a essa altura, Li Cheng já esta realmente apaixonado e agora precisa lidar com o medo de perder a amizade e não deixar passar o sentimento forte que surgiu entre eles. Ele afora implicar com o outro, que por ser sério acaba se estressando e perdendo a paciência, mas não demora muito pro sorriso contagiante dele começar a quebrar um pouco o gelo do coração de Mu Ren, que também sente medo dos novos sentimentos e precisa lidar com essa descoberta. 

Eles dividem muito bem a tela com o outro casal. Xing Si é aplicado, sensível e inteligente, chegando a ficar doente de tanto se dedicar ao trabalho, não tendo tempo pra se relacionar, mesmo sendo seguro de sua sexualidade ele não busca ninguém para não decepcionar os pais, e decidiu morar com os amigos justamente para que os pais não tivessem contato com sua verdadeira personalidade. Isso fez com que seu "irmão" (que, lembrando, é só filho da madrasta dele) sentisse muito sua falta e, como no passado o carinho que um tinha pelo outro acabou se transmutando em amor, ele achou que a melhor abordagem para trazer o irmão de volta fosse justamente se tornar ele o seu namorado. Ele se lembra de como se sentiu de coração partido ao descobrir o antigo namorado dele e então parte pra cima. 

Claro, esse foi o ponto mais controverso da temporada. O pessoal achou estranha demais a temática de de Fu Yong Jie ser tão obcecado pelo outro, ao ponto de fazer uma chave secreta do apartamento e invadir a casa sempre que sentia vontade, atacar Mu Ren por ciúmes e, convencer o outro a irem numa viagem sozinhos e lá embebedá-lo para poder gravar um vídeo dos dois na cama e assim forçar a família a aceitar o relacionamento. A abordagem dele é absolutamente questionável, muito embora a intenção fosse boa e o seu amor genuíno. Até mesmo Xing Si se enfureceu com isso, e ele é um dos personagens mais pacientes e compreensivos que eu já vi. Mas as coisas aos poucos se encaixam e nem tudo tem a dimensão que fizeram parecer ter. 

Fu Yong Jie é confuso e não sabe expressar bem seus sentimentos, ele simplesmente diz e faz tudo o que pensa, sem filtros, e se deixa levar pelos seus sentimentos com facilidade, embora diga ser frio e calculista por conta da faculdade de medicina. Mas a verdade é que ele é só um rapaz jovem, verdadeiramente apaixonado, que sente falta do irmão e quer estar junto do homem que ama. Como eles na verdade não tem nenhum laço de sangue e nem o nome compartilham não há nada, além dos pais, que possa ficar entre eles. 

Isso me leva até a temática central da série que só pode ser vista sem o véu do julgamento dos haters: Ambos os casais mostram que os sentimentos podem crescer e, acompanhando o crescimento das próprias pessoas, fazer parte do amadurecimento de cada um. Li Cheng precisou encarar Mu Ren de modo sério, este precisou aceitar seus próprios sentimentos e vencer o medo que tinha de uma relação gay. Xing Si precisou confiar que as investidas do outro não eram apenas saudade interpretada de forma extrema e sim amor de verdade, e Fu Yong Jie é só um bebê confuso que precisou entender que para se conquistar alguém a sinceridade precisa vir acompanhada de uma boa dose de carinho e compreensão. Essa é a jornada de Close To You: a proximidade com o amor nos muda, ela nos faz crescer e aceitar coisas antes impossíveis, mas ele também ajuda a superar. 

A conexão com o arco de MODC fica por conta de amizade de Li Cheng com Bo Xiang (Wilson Liu), que está em vias de se casar com Zhi Gang (Thomas Chang), o casal secundário do arco anterior que, muito embora tenham tido um final digno ali, acabou sendo ofuscado pela tragédia que acabou com o casal principal. O casamento deles é preparado pelo trio de protagonistas e, na festa, temos um fechamento perfeito pra ambos os arcos, com direito também a participação de outros personagens secundários do arco anterior, como os gêmeos (lindos) Xia De e Xia En

A dinâmica da série continua: as cenas são rápidas e os diálogos diretos, o que parece ser um traço marcante das produções taiwanesas. A comédia é realmente engraçada, sem forçar, e as cenas de drama, um pouco mais intensas, bem dirigidas e distribuídas. Nenhum episódio é completamente triste ou bobo, o equilíbrio foi bem executado. A fotografia é linda e bem colorida, alegre e fresca. Os personagens são um deslumbre, e como trabalham com arte e moda, se veste absurdamente bem, as empresas que investiram em merchan com as roupas se deram muito bem. A trilha sonora é também deliciosa, especialmente as duas faixas cantadas pelo Andrew Tan, que são sensacionais.

Agora o meu veredito, polêmico: a série foi ousada, soube amarrar bem as histórias com o arco anterior, deixando bem interessante e tem uma dinâmica muito gostosa de se assistir. O carisma dos personagens é cativante, Li Cheng é um homem e tanto, que se responsabiliza e protege quem ama, Mu Ren é cuidadoso ao seu modo, preocupado com os amigos e um bom ouvinte, Xing Si é simplesmente um sonho e, se uma chance, Yong Jie também cativa com sua forma dura de ser fofo. A amizade deles é bonita de se ver, além do crescimento visível, equilibrando comédia, drama e romance (até mesmo cenas um pouco hot) com maestria. 

Ao fim da série Fu Yong Jie diz que não acreditava no amor ou no casamento mas, pelo que sentia por Xing Si ele estava disposto a acreditar, isso é claro uma declaração de que ele já acreditava, e que acreditava justamente porque era impossível negar que o que ele sentia era amor. 

Nota: 10/10

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Lemas e Decisões

O homem é um caos total e, não raramente, conseguimos transportar o caos para fora de nós mesmos, ou o contrário, a caótica realidade se transmuta em algo não tangível e se fixa no profundo de nossas mentes, perturbando o já complicando fluxo do grande rio de nossas almas. Ao olhar o mundo ao meu redor e também para dentro de mim é essa a impressão que tenho. Provavelmente boba e supérflua, mas ainda assim é o tipo de coisa que eu consigo traduzir em palavras, algo como pegar com as mãos a água desse mesmo grande rio e lançá-la sob meu rosto. 

Tomei uma decisão que provavelmente foi a mais difícil que já tomei. Dado os últimos acontecimentos, crises depressivas e ansiosas frequentes que culminaram em episódios de automutilação e uma dose de morbidade quase letal me fizeram perceber que eu preciso fazer algo com relação a mim mesmo. Muito embora tenha sido obrigado a voltar a consultar com o psiquiatra, e que continue detestando o remédio que me faz sentir enjoo, eu também sou obrigado a admitir que ele está coberto de razão quando diz que a forma como eu me cobro e me culpo é injusta comigo mesmo. Muito embora seja bonito do ponto de vista evangélico sacrificar-se pelos outros a conta disso é um pouco alta demais quando eu já não tenho mais condições nenhuma de fazer isso. 

E é exatamente o que tem acontecido comigo. Eu já não tenho mais o que doar, não mais o que entregar. Como sempre digo aqui, é como se eu fosse apenas uma casca vazia, que já não tem mais conteúdo, como posso me doar então se estou completamente esgotado? Por isso tenho cometido tantos erros, na liturgia por exemplo, e se não consigo corresponder mais as expectativas que depositam em mim é porque em algum ponto lá atrás eu acabei me abandonando a ponto de não conseguir mais crescer e evoluir, conseguindo então acompanhar o que esperam de mim. 

A decisão foi que eu vou afastar de todos os meus serviços pastorais, por tempo indeterminado. E para alguém que passa tanto tempo na igreja essa foi, com certeza, a decisão mais complexa e com mais consequências que eu já tomei. Isso porque eu sei bem a bola de neve que isso vai gerar, tenho consciência da quantidade de responsabilidades que eu acumulo e, por isso mesmo, sei que não consigo mais. É como se essas responsabilidades tivessem se tornado exatamente essa bola de neve e me esmagasse completamente. Eu encaro meus afazeres não mais com o prazer de antes, mas com um sentimento profundo de que, não importa o que eu faça, sempre será errado de algum modo, nunca bom o bastante. 

Tive a confirmação disso na Missa de ontem, em que precisava me dividir em pelo menos cinco e conseguir resolver as diversas dificuldades dos vários pontos a serem preparados para a celebração. Precisava ensaiar, arrumar o equipamento de som de modo que não desse nenhum problema, como aliás sempre dá, precisava supervisionar os coroinhas, os leitores, os puxadores de procissão, precisava ver se conseguiram prender a imagem corretamente no carro, precisava ver se as velas estavam cheias de fluido e, mesmo já há poucos minutos da celebração começar, a equipe formada por pessoas quase tão experientes quanto eu ainda aguardava que eu fosse lá tomar decisões que diziam respeito somente a eles naquele momento. Isso num dia que eu nem conseguira sair da cama direito, repleto de dores e incertezas. 

Muito embora as músicas tenham ficado ótimas, aquela confusão toda me perturbou profundamente. A igreja cheia de gente, os fios dos microfones emaranhados debaixo dos meus pés, as pastas de letras e cifras, o calor, a voz desaparecendo conforme eu ficava mais nervoso e conforme se exigia mais e mais potência...   Aquele som lá no fundo, um tipo de alarme de incêndio, começou a ficar mais e mais alto, até se tornar ensurdecedor, mostrando que eu chegara no meu limite e que, a partir dali, precisava realmente tomar cuidado ou iria enlouquecer, e digo isso agora sem nenhuma carga poética, mas com a mais pura convicção realista que eu consigo ter. 

Os próximos dias não serão fáceis, e eu preciso ser forte para ver as coisas que, de algum modo, deixarei para trás. Eu não posso me dar ao luxo de largar apenas algumas obrigações, pois eu não consigo ver as coisas dando errado e não fazer nada para mudar, por isso eu preciso me afastar completamente, da atuação pastoral e não da igreja, para conseguir recuperar algo de mim, se ainda for possível. Também precisarei terminar, de algum modo, os projetos em andamento. Formações e investiduras já agendadas, mas que vão também marcar uma grande pausa no meu serviço.

Essa decisão me veio nos últimos dias após intensas reflexões que fiz ao som das composições de Sibelius, e o que pude apurar dele é que a forma como ele via a si mesmo impactava profundamente em sua obra, e sinto com uma força enorme o quanto ele se cobrava. O que me me marcou em suas sinfonias, por exemplo, é a extrema necessidade de cada pequena nota. Não há nada de supérfluo nas suas músicas, pelo contrário, cada nota é necessária e faz sentido, ainda que pareça de uma sutileza extrema, como no casos dos seus poemas sinfônicos. Mas essa cobrança extrema também custou caro, já que ele não mais escreveu quase nada e sequer falava sobre sua música nos últimos 30 de seus mais de 90 anos de vida. Quando olho pra face dele vejo, além da genialidade absurda de um grande mestre, as rugas de uma vida marcada por uma injusta cobrança, mas que ele ainda assim conseguiu se deixar na história. 

Espero que eu possa retornar algum dia, claro, mas espero que eu esteja bem o bastante pra conseguir fazer as coisas direito, como preciso é preciso ser. Até lá, espero que o pouco que eu consegui fazer seja de alguma serventia, afinal, sempre tive o adágio que tantas vezes eu cantei "meu cansaço que a outros descanse" como um tipo de lema pessoal. 

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Resenha - Lovely Writer

Quando um BL foi anunciado numa das maiores emissoras do país é claro que o hype foi lá em cima, e logo depois, quando anunciaram que seria protagonizado por Kao, que vinha numa onda de popularidade por causa de Until We Meet Again, todos os olhares se voltaram pra série que poderia vir a rivalizar com outros grandes nomes do meio. E não foi pra menos, Lovely Writer é um marco dos BLs!

Gene (Up Poompat) é o escritor de uma novel que vai ser adaptada pra televisão, ele acaba participando das audições pra escolha do elenco e lá conhece Nubsib (Kao Noppakao), um ator novato, atrevido e metido a sincerão que logo deixa bem claro que tá interessado no autor e dá um jeito de fazer seu agente, antigo conhecido de Gene, arrumar uma desculpa pra ele se mudar temporariamente pro apartamento do jovem escritor, sob o pretexto de ficar mais perto das gravações. Não demora muito para as coisas começarem a esquentar, com ambos se ajudando a preparar para as cenas mais quentes da série ou pra ilustrar as passagens mais apimentadas do novo livro do autor. 

A produção é simplesmente primorosa. A fotografia é colorida e alegre e consegue combinar perfeitamente com a linguagem da série que, além de um belo romance, também explorou muitos temas dificilmente abordados nas séries, como a invasiva relação entre fãs e seus favs e a pressão que os atores sofrem para fazer fanservice sacrificando a própria vida pessoal se for necessário por exigência das empresas que, visando o lucro acima de tudo, não pensam duas vezes antes de explorar a imagem dos atores como achar melhor. 

A forma como essa crítica se amarrou ao plot principal faz dessa série o marco que eu citei no início. Ela não só entrega um romance com personagens bem construídos, que evoluem visivelmente, como também mostra um mundo pé no chão, onde os contos de fadas dos livros são esmagados pela dinâmica da vida que não tem piedade de ninguém só porque ela tem boa vontade ou sentimentos verdadeiros. Aliás, também não empurram goela abaixo a história de que o amor supera tudo, pelo contrário, mostra que o amor ajuda sim mas que as consequências da ganância podem ser devastadoras. 

Gene é um típico nerd, inclusive seu pseudônimo é Wizard, tímido e com o horário de sono completamente desregulado porque ele escreve quando dá na telha, indo dormir com o dia já claro e ficando de mau humor por causa disso. Sib já é o oposto, parece que está sempre disposto e, por ser ator, consegue ser educado com qualquer um por convenção, mas quando está com Gene sua personalidade muda completamente e tudo que ele faz é mimar o autor e deixar bem claro que gosta dele a cada cinco minutos. Ele também é ciumento e protetor, enquanto Gene é desconfiado e não consegue confiar completamente de primeira. 

Além deles também temos Aey (Bruce Sirikorn), o parceiro de tela de Sib, que é um jovem simpático com um passado complicado mas que tenta a todo custo conseguir o que ele quer e Mhork (Chap Suppacheep), um antigo amigo que tem sentimentos por Aey e tenta manter ele longe de problemas, mesmo o garoto parecendo odiá-lo. 

Os agentes de Sib e Aey também formam um casal secundário. Tum (Ken Prarunyu) é delicado e fofo, entende de maquiagem e costura, enquanto Tiffy (Zorzo Natharuetai) é segura de si, anda de moto e sabe consertar um carro. Essa dinânima é bem interessante de se ver. 

A química de KaoUp em tela é sensacional, e a série entrega muito justamente por conseguir fazer ambos se mostrarem completamente à vontade, seja nas cenas mais íntimas quanto nas cômicas e até nas dramáticas. A atuação de ambos está no ponto ideal e isso prende o espectador que nem vê passar os doze episódios de pouco mais de uma hora cada. São várias as cenas que mostram o potencial deles sendo explorado ao máximo e isso é excelente, já que os BLs ainda carregam a fama de terem péssimas atuações, já que costuma ser apenas a porta de entrada para novos atores. 

A trilha sonora é uma graça e eu desafio qualquer pessoa a assistir sem ficar cantarolando o tema principal. A forma como a direção consegue equilibrar as cenas cômicas com aquelas com mais carga emocional é sensacional e o resultado final é uma série muito bem equilibrada, que entrega de tudo um pouco: ótimas atuações, crítica e, claro, até mesmo ótimos beijos!

Nota: 10/10

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Saltar

Dizem que quando olhamos muito tempo para um abismo, ele olha de volta. Tenho me sentido assim. Hoje, mais do que nunca, eu chorei pedindo sinceramente a Deus que me levasse, que me tirasse daqui, pois eu não consigo mais, mesmo que meu fardo não seja tão grande comparado ao dos outros, ainda é demais para mim, eu já passei do meu limite, eu já não vivo mais, eu estou apenas aqui, e não sei o que estou fazendo, tentando de algum modo, mas não sobrou muita coisa. Eu só queria partir, em paz, só queria descansar. 

Sei que é um grande pecado dizer isso mas eu não queria ter essa vida, eu não queria. Os últimos dias têm sido apenas uma longa meditação sobre o suicídio que eu sou covarde demais para cometer. Eu fico pensando em me atirar na frente dos carros ou do alto de um prédio, em cortar os pulsos no quarto trancado e sangrar até a morte. É nisso que eu tenho pensado, mais do que qualquer outra coisa. 

E eu continuo sendo obrigado a ouvir e responder por problemas que não são meus. Obrigado a lidar com pessoas que não estão nem aí pra nada, obrigado a ser paciente, responsável, eficiente quando, na verdade, eu estou colapsado, quando não consigo mais aumentar minha imunidade, sem dormir ou comer direito, e ninguém, nenhuma das pessoas que depositam sua confiança em mim parecem notar que, até mesmo o mais simples dos pedidos tem sido demais pra mim. 

Tem sido demais pra mim cuidar dos coroinhas, tem sido demais correr atrás de tanta coisa pra formação e investidura, tem sido demais preparar novena, publicar nas redes sociais, ser comunicativo, organizar escalas, cumprir escalas, fiscalizar escalas, preparar músicas, ter paciência com as pessoas que não conhecem as músicas, ter paciência com as pessoas que não querer fazer as coisas do jeito certo e não se importam em aprender. Tem sido demais pra mim lidar com a solidão no meu peito, enfrentar a rejeição, o fato de não ser querido, amado. Tem sido demais saber que ele já tem outra pessoa, um outro amor. Tem sido demais conviver numa casa apertada com tantas pessoas, tem sido demais ter de conviver com a minha irmã que faz escolhas tão terríveis na vida, tem sido demais ter que aturar tanta mediocridade, tem sido demais suportar a miséria humana, tem sido demais ter de responder tantas perguntas idiotas. Tem sido demais pra mim, e eu sei que é patético dizer isso porque é o que qualquer um deveria fazer mas eu não consigo, eu não consigo mais... 

Por isso eu só queria que Ele me levasse, que eu não acordasse amanhã, que pudesse colocar minha cabeça em seu colo e repousar, sentir a brisa suave sob a pele e não os ventos rápidos das obrigações gritando em meus ouvidos. Eu só queria finalmente alcançar aquele jardim fechado, secreto, onde pudesse finalmente descansar. 

É, eu acho que olhei demais para o abismo, pois a cada minuto contemplando o vazio que há dentro de mim ele me convida a saltar.

Céu Azul

Noite fria e você sozinho, de novo. Inveja da voz, do talento, da companhia. Inveja do que não pode ter, do que não pode ser.

Talvez a sua missão seja observar o céu estrelado, o movimento dos astros, mas sozinho. Do alto de uma ravina o vento bate no seu rosto e faz seu cabelo farfalhar como as folhas das açucenas. 

O bater dos sinos ao longe cessou. A montanha continua intacta no mesmo lugar pelos séculos. Algumas coisas nunca mudam, outras demoram tanto a mudar que uma vida humana é incapaz de perceber a mais sutil transformação. 

Assim como você não avança, apesar de estar sempre andando você está andando em círculos, como um macaco na palma da mão de Buda, você não segue em frente, apenas dá continuidade a toda da fortuna, ao círculo infernal de renascimento de cada dia, essa samsara que te aprisionou como um ouroboros

Talvez você só devesse olhar as estrelas, sem querer voar próximo delas e sem querer a companhia delas. Apenas olhe, para as estrelas.

O dia, no entanto, não é mais claro do que a noite, e os pesadelos também aparecem enquanto os olhos permanecem vigilantes. Ele partiu, se foi bem de frente a você, e te deixou sozinho, seu mundo a desmoronar. Explodiu os próprios miolos, despedaçou seu coração, destruiu a si mesmo e a você também. Deixou apenas no chão as marcas do sangue enegrecido e no seu corpo a lembrança daquele abraço forte, das mãos que o conduziam por aí, do beijo apaixonado da única noite em que passaram juntos.

Você não aguenta mais, já chegou no seu limite e nem sabe por qual razão continua tentando, nem sabe por qual motivo você continua lutando, conversando, tentando resolver todos os problemas sendo que você está aos trapos, frangalhos, um arremedo de ser humano, uma casca vazia. 

E talvez esse pesadelo seja ainda pior que o da noite, pois tem o poder de escurecer o próprio sol, de levar o horror da escuridão ao dia mais claro. O corpo se contorce de medo, de saudade, de desejo, e ele, você, simplesmente olha para cima tentando enxergar mais uma vez o céu azul, a luz do sol, que era o que via cada vez que olhava para os olhos dele, mas agora, tudo o que você é a mais completa escuridão.

domingo, 9 de maio de 2021

Da Beleza

"A beleza é a única coisa preciosa na vida. É difícil encontrá-la, mas quem consegue descobre tudo." (Charles Chaplin)

A beleza conquista, ela encanta e atrai para si. Mas a beleza, não enganando, pois a beleza não pode ser má jamais, ela pode aprisionar. Não por si, mas pela fraqueza do mundo que nos rodeia podemos ficar presos a beleza, sem querer olhar pra mais nada que não sejam seus lábios doces e avermelhados, sua pele macia, seu olhar profundo. A beleza pode escravizar o homem, na única acepção positiva possível para escravidão. Tão difícil é encontrar beleza nos dias de hoje que quem a encontra não solta ou esquece jamais. O Belo é universal, o belo é tão verdadeiro quanto o Bem e a Verdade, e a bem dizer, são a mesma coisa. Os universais não podem ser ignorados, estão acima de tudo e a tudo abarcam, seja por conterem em si mesmos ou pela dinâmica de se mostrarem por contraposição, como quando um quadro feio nos faz amar ainda mais a beleza pelo desagrado que ele nos provoca.

"A beleza é realmente um bom dom de Deus; mas que os bons não pensem que ela é um grande bem, pois Deus a distribui mesmo para os maus." (Santo Agostinho)

Enquanto escrevo me vem a mente tantos rosto de ímpar beleza, tantas obras de arte que cativam e até mesmo tantos elementos da natureza que, por sua beleza, são como um imã para nossa atenção, um alento para o coração, um refúgio para a escuridão dessa selva de concreto em cores e deformidades em que vivemos. O mundo ao nosso redor nos repele pelo horror, o mundo da beleza é o mundo da perfeição, que nos atrai, é o próprio Deus, que imprime um pouco de sua beleza na beleza de sua criação e, permite aos homens participar em parte dessa mesma criação, fazendo com que suas obras contenham em si algo mesmo de sagrado. E todos são chamados a contemplar essa beleza, essa que conquista até os mais corruptos de alma e coração. Por ser divina a beleza a que me refiro não é puramente estética, que tem um fim em si mesma, mas é a beleza que conduz o coração a contemplação, que leva o homem a desejar ser melhor para melhor contemplar, para melhor aproveitar a beleza, para melhor dela se aproximar. 

"A música é celeste, de natureza divina e de tal beleza que encanta a alma e a eleva acima da sua condição." (Aristóteles)

Não consigo deixar de pensar em Deus ao ver uma pela pintura ou escultura, como aquelas reproduções de véus feitas em pedra por Strazza, ao ouvir uma sinfonia de Mahler ou Brahms, um soneto de Shakespeare, alguns versos de Camões... Até mesmo ao ver uma foto de um Fluke Natouch ou Tay Tawan, homens cuja beleza são capazes de arrebatar os corações mais frios e desiludidos. Eles me inspiram quando minha mente se esvazia, e olhar seu sorriso aquece novamente o coração que tantas vezes parece ter sido destruído por uma espada de aço frio. A beleza é, nesse mundo de caos e horror, a única coisa que nos faz querer seguir em frente, e beleza é a única coisa pela qual vale a pena viver. É quando acordo, desanimado, amaldiçoando o dia por cada raio de sol que se atreve a entrar pela janela, que uma música consegue acalmar meu coração, que um sorriso tailandês consegue me fazer sorrir também, mesmo nos dias mais escuros, em que minha alma se encontra absorta em trevas, até mesmo nesses dias a beleza me salva. 

"Quem possui a faculdade de ver a beleza, não envelhece." (Franz Kafka)

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Fugindo

O nojo era tudo que eu conseguia sentir enquanto voltava pra casa, torcendo para que o vento frio tirasse aquele cheiro horroroso do meu corpo, era como se aquilo tivesse se impregnado em mim, eu ainda tremia, e andava rápido como se sentisse que ele estivesse atrás de mim, mesmo tendo me virado várias vezes para ter certeza que o que me perseguia não era outra coisa senão meus próprios pensamentos. 

Estava assistindo um filme quando um desconhecido me mandou mensagem, um convite nada discreto num aplicativo destinado a convites nada discretos. Bom, os últimos dias têm sido especialmente cheios, tenho me encontrado no limite da paciência e da disposição, sem me dar muito bem com a medicação que o psiquiatra passou na última consulta e tentando ainda elaborar alguns fatos novos que não digeri muito bem. Mesmo que estivesse com preguiça, na verdade total indisposição, e minha libido tenha sido podada ao mínimo, achei que algum contato com alguém poderia me animar um pouco. 

Tomei um banho rápido e combinei de me encontrar com ele na frente de sua casa. Desci rápido algumas ruas, passando por alguns bares que já encerravam o expediente. Continuava desanimado, mas algo me fez ir mesmo assim. Dessa vez não fora motivado pelo tesão, apenas pela vontade de sentir alguma coisa, de me fazer despertar daquele torpor, daquela anestesia que não me permitia sentir nada além das dores espalhadas pelo meu corpo, mas a mente vazia, ao mesmo tempo conturbada.

Percebi que tinha sido uma péssima ideia assim que vi a silhueta dele, encostado num portão de ferro, escondido na escuridão da noite, longe da luz da rua. 

Subimos depois de um cumprimento tímido, ele me disse que podia ficar à vontade no quarto grande, com uma porta que dava pra rua, de onde podia ver um terreno vazio de frente pro prédio, a luz amarela do poste em cima das folhas do mato que não deve ser cortado há vários meses. Mas eu não queria estar ali, e não devo ter conseguido disfarçar em nada a minha cara de descontentamento ao me sentar sem jeito na cama, tentando me concentrar em algo que não fosse o cheiro forte de cigarro vindo daquela pessoa asquerosa na minha frente. 

Ele começou a me beijar e eu tentei retribuir, fechando os olhos e mentalizando qualquer outra pessoa, mas o cheiro era forte demais e logo me subiu uma ânsia, uma ojeriza crescente que, num ímpeto me fez afastar. Queria ir embora naquele momento, sair correndo dali. Enquanto ele tirava a roupa eu tentava me concentrar em outra coisa mais uma vez, mas não conseguia tirar aquela impressão do meu corpo, aquele gosto dos meus lábios, o cheiro cada vez mais forte quando ele se aproximava pra me beijar. 

Longo me afastai de novo, e tremi quando pensei que ele poderia ficar violento quando percebesse que não iria acontecer nada. Tive medo de colocar o casaco novamente e ficar sem visão por um ou dois segundos. Mas ele só se levantou e abriu a porta, eu me segurando com força no corrimão, ainda com um milhão de pensamentos passando rapidamente. 

Quando finalmente cheguei a rua eu andei rápido, olhei para trás uma duas vezes e, quando tive a certeza de não estar sendo seguido tentei correr para que aquele cheiro saísse de mim conforme transpirava ou algo do tipo. 

Joguei a roupa de qualquer jeito quando cheguei em casa, com nojo delas também mas, principalmente, com nojo de mim por ter saído, por tê-lo encontrado, por ter me sujeitado a tamanha humilhação para me sentir menos sozinho, menos vazio. E só conseguia me arrepender daquela decisão, só conseguia sentir ainda aquele cheiro repulsivo no meu corpo, aquele gosto amargo na minha boca, uma memória que, ao que parece, vai demorar a desaparecer. 

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Do que tem medo?

"Quanto mais o tempo passa, menos eu significo pras pessoas e menos elas significam pra mim." (Bukowski)

Seis meses de mentira, ou de omissão. Como eu deveria me sentir? Eu já não sei mais, se deveria ficar triste, por mais uma vez ser obrigado a enfrentar a verdade de que não sou bom o suficiente pra ele ou feliz, por saber que ele pode estar com alguém que o faz bem. 

É sempre assim, eu vejo aquilo que eu mais quero ser tirado de minhas mãos, ir embora, sem que eu possa fazer nada. Mas eu já sabia, havia dias, e já tinha aceitado, acontece que ouvir isso dele faz tudo parecer mais real. Não sei nem mesmo como dar um nome ao que estou sentindo. 

Tristeza? Traição? Raiva? Humilhação? Um sinal de que preciso seguir em frente? Confirmação de que devo viver sozinho? Mais uma mostra de minha insuficiência? Mais um que me trocou por outra pessoa? Mais um que me mostrou que não sou bom o bastante? 

Não sei o que é isso. É estranho, é vazio, é frio e tenho vontade de chorar. Queria um abraço, queria poder ouvir música sob seu peito, queria sorrir, queria não ter descoberto a verdade, queria... É só isso, minha vida é só um querer, querer sem poder, querer sem nunca alcançar, um eterno desejar que se finda em si mesmo, ou melhor, que se finda na companhia da solidão, minha única companheira inseparável. 

Acho que posso me dar o direito de não sentir nada. É uma situação confusa, é verdade. Ele é mais que um amigo pra mim. Eu não posso ser mais do que isso para ele. Ele não soube como me dizer, eu não soube como reagir. Vida que segue. É só mais um que não me quer, não é como se já não tivesse acontecido uma dezena de vezes ou mais...

Ansiedade

- Tem certeza que foi certo? 

Obsessão

- Eu não entendo. O que eu vou fazer? O que eu devo fazer? 

Do que tem medo?

- O que foi isso?

Do que tem medo?

- Tenho medo de mim mesmo?

Do que tem medo?

- Medo de ser odiado?

Do que tem medo?

- Mas, porque?

Do que tem medo?

- Quem é ele?

Do que tem medo?

(Neon Genesis Evangelion)

Resenha - Second Chance The Series

Histórias de amor sempre vem acompanhadas de conflitos, é a tensão presente entre dois corações, muitas vezes confusos e isso pode adiar aquele final inevitável que, tendo sido escrito pelas mãos do amor verdadeiro não poder deixar de acontecer de um modo ou outro, surpreendendo muitas vezes, já que o amor pode vir de onde menos esperamos. Ou não. 

Second Chance The Series conta a história de três casais, amigos ou colegas, que perguntam no íntimo de si se o amor merece uma segunda chance em sua vida. Paper (Tong Thanayut de TharnType) é presidente do conselho estudantil e bastante popular, além de ser um prodígio nos estudos. Ele perdeu sua família ainda muito jovem, o que o obrigou a ser muito maduro pra sua idade. Tongfah, seu melhor amigo, perdeu o pai recentemente e conta com a ajuda do outro para superar essa grande dificuldade. Tem também Chris (Mawin Tanawin, de TharnType) , amigo de ambos, que decide se aproximar de Jeno (Run Kantheephop, também de TharnType) um antigo amor não correspondido que é traumatizado com relacionamentos devido ao seu último namoro abusivo com Arthur, um rapaz violento e grosseiro e que, por isso, se fechou para o amor, não conseguindo mais confiar em quem dele se aproxima. 

O casal de suporte é Near (Games Nanthipat de With Love) e M (Nine Theepop), que trabalham juntos num café. Near é tímido e inseguro, e mantém um relacionamento online com um rapaz que ele não conhece pessoalmente, que na verdade é M, que por insegurança não contou a ele a verdade. Quando descobre, Near se afasta, com medo de que o outro tenha mantido o relacionamento em segredo por vergonha de sair com alguém como ele, que tem uma autoestima baixíssima. 

A série trabalha muito bem o tema principal apresentado no próprio título, uma segunda chance para o amor, mesmo depois de grandes decepções. Nossa primeira reação é a de erguer muros, desacreditar no amor, mas acontece que se a felicidade bate a nossa porta não há como resistir, principalmente quando somos confrontados com com a iminente presença da morte, isto é, do tempo que passa e não volta, dos momentos que não podem ser desperdiçados. 

A forma como trataram a descoberta do primeiro amor, e as incertezas que isso traz, o companheirismo que supera as dificuldades e a chance que se dá para um recomeço foram o destaque da série que, mesmo em apenas 6 episódios, consegue cativar. As atuações não são perfeitas, mas conseguem dar conta da proposta. Tong e Mawin estão especialmente incríveis, a química entre eles é ótima e o beijo foi simplesmente lindo. A minha ansiedade em ver o Tong como protagonista finalmente foi atendida. 

A direção também é mediana, a série perde o ritmo em alguns pontos, especialmente na transição do drama para a comédia, que fica forçada e desnecessária. É possível inserir um alívio cômico sem ser caricato demais. A trilha sonora não me chamou a atenção, deixando meu foco na trama em si e no imenso carinho que os personagens tem uns pelos outros. 

Gostei ainda de alguns detalhes, como os pôsteres nos quartos dos personagens, com títulos como Hoje Eu Quero Voltar Sozinho e Me Chame Pelo Seu Nome, o que indica uma maturidade maior em lidar com a sexualidade, sem ser algo escondido. Os personagens convidam uns aos outros para ir ao baile sem vergonha alguma e isso é algo de se orgulhar, afinal, amor é amor. 

A lição que fica é, se o amor for verdadeiro, vale a pena lhe dar uma segunda chance antes que seja tarde demais!

Nota: 07/10