terça-feira, 25 de maio de 2021

Venha


Pois eu vivo com o mesmo sem vontade com que rasguei o ventre à minha mãe, disse o poeta em seu cântigo negro, e poucas vezes eu me identifiquei tão profundamente com palavras quanto com essas que agora reverberam minha mente como um eco profundo do meu ser. 

É com esse sem vontade que eu vejo o mundo ao meu redor, que eu encaro todas as coisas com um filtro cinza, sépia, sem graça, vazio e sem contorno... É com esse sem vontade que tudo tem a mesma aparência de algo banal como um ar que passa, soprando sobre o rosto de um qualquer. E é com esse sem vontade que eu vejo as plantas serem causticadas pelo sol, que eu vejo os dias passarem, as folhas caírem, e as pessoas caírem também, com a mesma vitalidade daquelas folhas secas que já não podem cuidar de si. É com esse sem vontade que o dia após dia se tornou um suplício eterno, algo que eu só poderia existir nos versos de Dante, mas que agora experimento na minha própria carne, como aquele infeliz condenado por Zeus a ter seu fígado devorado por uma águia monstruosa apenas para se recuperar totalmente pela manhã para mais uma vez ter suas fibras rasgadas pelo bico forte da fera. 

Assim é cada manhã, assim é cada pôr do sol: uma condenação que se prolonga, um fera que me destrói sem nunca me matar, fazendo com que o desejo da morte seja algo doce na mente de quem já não pode imaginar uma vida que não seja dor e sofrimento. 

Deveria as cores das flores ou o beijo do vento no meu rosto ter algum significado pra mim? Tudo o que eu vejo é a decadência desse mundo, enquanto entoo baixinho os versos de Bach, dizendo a mim mesmo: Komm, süßer Tod, komm selge Ruh. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário