terça-feira, 18 de maio de 2021

De minha pele

Alguns dias atrás um garoto bem mais novo me dizia que não gostava de usar roupa social, e eu disse que concordava com ele, que apenas usava esse tipo de roupa em momentos socialmente imprescindíveis e que, quando podia ser eu mesmo, me vestia bem mais à vontade, e que ele, que só me vira socialmente vestido, se assustaria se me visse como eu gosto. Poucos dias depois ele me viu numa palestra usando um poncho azul e uma bolsa transversal, me olhando surpreso. 

A carinha dele me fez sorrir, e eu pensei que estava bem daquele jeito, confortável e ainda assim conseguindo me destacar um pouco dentre tantos que se vestem de modo apagado, o que justamente me incomoda na roupa social, o fato de ser tudo muito comum. Branco, preto, azul  ou rosa, peças quase sempre com os mesmos cortes que se diferem apenas em elementos pequenos demais como se dissessem que tudo que é um pouco diferente é inerentemente ruim. 

Eu sempre reneguei toda e qualquer tentativa de ser normalizado, mesmo quando não fazia a menor ideia do que isso significava. Lembro-me de chorar, aos seis ou sete anos, por perceber que as possibilidades das roupas masculinas são bem menores do que as femininas e que, no meu caso, menos era sempre melhor; Eu usava jeans e sapato social enquanto minha prima podia usar saias, vestidos e sandálias de salto, brincos, pintar o cabelo e tantas outras coisas. Ainda hoje eu não me imponho limites, se quero sair na rua de pijama azul berrante, como fiz ontem, ou se vou usar um vestido verde ou um sobretudo vermelho. 

Não gosto de me esconder por trás de uma roupa que me deixa no mesmo nível que os outros, como se isso fosse o ideal, como se fosse bonito todos terem o mesmo pensamento pasteurizado por normas bobas ditadas por um sistema eurocêntrico num país onde faz calor em três das quatro estações do ano. Abomino quem anda de terno em plena Brasília. 

Isso, de algum modo, me faz pensar por outro lado: essas pessoas representam um papel com a ajuda das suas roupas, e eu não devia criticá-las por isso, afinal quem nunca representou um "Eu" que fosse mais apropriado a essa ou aquela circunstância, adaptando a quantidade de personalidade a ser liberada conforme o público? Não que isso seja em si mesmo um crime, todos fazemos o tempo todo e não consigo sequer imaginar um mundo em que não deixemos de dizer algo apenas para preservar o outro do choque ou até mesmo por pura preguiça de explicar as razões que podem, ou não, existir para tal ou qual comportamento. 

Quem não esconde do outro um transtorno de personalidade, ou simplesmente disfarça o tesão acumulado com euforia e drogas, quem nunca disse estar com dor de cabeça apenas para evitar dizer que não queria estar ali? E isso porque somos obrigados o tempo todo a fazer coisas que não queremos, e isso não é uma crítica ao universo, apenas uma constatação pura e simples que, se acompanhada de um sentimento negativo, vem das lembranças que essas palavras despertam em nós, como aquele dia insuportável de confraternização no trabalho ou aquela resenha que terminou um saco porque depois de uma ou duas garrafas de tequila a lembrança do ex, que é também parte do círculo de amigos, estava mais forte do que seria suportável.

Continuo renegando me vestir igual a todos, como se fôssemos obrigados a usar um uniforme de humanos. Minha pele é meu uniforme e isso basta, o que vem por cima disso é aquilo que, de algum modo, reflete o que os outros não conseguem ver. Não renego, por outro lado, que precise interpretar uma dúzia de "Eus" a cada novo relacionamento humano. Ninguém pode ser despido de todas as convenções o tempo todo, e não sei dizer o que está por trás disso. Vamos continuar escondendo a preguiça, a vontade de foder, vamos continuar escondendo a antipatia com aquela colega chato ou o conhecido que força intimidade, e tudo bem, contanto que nesse ínterim não nos percamos totalmente no personagem e acabemos nos perdendo. Precisamos nos permitir uma unha pintada de preto ou um  vestido verde de vez em quando para que, ao olhar no espelho, esses pequenos elementos consigam nos lembrar que por baixo daquelas roupas há uma pele e que, abaixo delas há ainda uma pessoa inteira. 

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