sexta-feira, 14 de maio de 2021

Lemas e Decisões

O homem é um caos total e, não raramente, conseguimos transportar o caos para fora de nós mesmos, ou o contrário, a caótica realidade se transmuta em algo não tangível e se fixa no profundo de nossas mentes, perturbando o já complicando fluxo do grande rio de nossas almas. Ao olhar o mundo ao meu redor e também para dentro de mim é essa a impressão que tenho. Provavelmente boba e supérflua, mas ainda assim é o tipo de coisa que eu consigo traduzir em palavras, algo como pegar com as mãos a água desse mesmo grande rio e lançá-la sob meu rosto. 

Tomei uma decisão que provavelmente foi a mais difícil que já tomei. Dado os últimos acontecimentos, crises depressivas e ansiosas frequentes que culminaram em episódios de automutilação e uma dose de morbidade quase letal me fizeram perceber que eu preciso fazer algo com relação a mim mesmo. Muito embora tenha sido obrigado a voltar a consultar com o psiquiatra, e que continue detestando o remédio que me faz sentir enjoo, eu também sou obrigado a admitir que ele está coberto de razão quando diz que a forma como eu me cobro e me culpo é injusta comigo mesmo. Muito embora seja bonito do ponto de vista evangélico sacrificar-se pelos outros a conta disso é um pouco alta demais quando eu já não tenho mais condições nenhuma de fazer isso. 

E é exatamente o que tem acontecido comigo. Eu já não tenho mais o que doar, não mais o que entregar. Como sempre digo aqui, é como se eu fosse apenas uma casca vazia, que já não tem mais conteúdo, como posso me doar então se estou completamente esgotado? Por isso tenho cometido tantos erros, na liturgia por exemplo, e se não consigo corresponder mais as expectativas que depositam em mim é porque em algum ponto lá atrás eu acabei me abandonando a ponto de não conseguir mais crescer e evoluir, conseguindo então acompanhar o que esperam de mim. 

A decisão foi que eu vou afastar de todos os meus serviços pastorais, por tempo indeterminado. E para alguém que passa tanto tempo na igreja essa foi, com certeza, a decisão mais complexa e com mais consequências que eu já tomei. Isso porque eu sei bem a bola de neve que isso vai gerar, tenho consciência da quantidade de responsabilidades que eu acumulo e, por isso mesmo, sei que não consigo mais. É como se essas responsabilidades tivessem se tornado exatamente essa bola de neve e me esmagasse completamente. Eu encaro meus afazeres não mais com o prazer de antes, mas com um sentimento profundo de que, não importa o que eu faça, sempre será errado de algum modo, nunca bom o bastante. 

Tive a confirmação disso na Missa de ontem, em que precisava me dividir em pelo menos cinco e conseguir resolver as diversas dificuldades dos vários pontos a serem preparados para a celebração. Precisava ensaiar, arrumar o equipamento de som de modo que não desse nenhum problema, como aliás sempre dá, precisava supervisionar os coroinhas, os leitores, os puxadores de procissão, precisava ver se conseguiram prender a imagem corretamente no carro, precisava ver se as velas estavam cheias de fluido e, mesmo já há poucos minutos da celebração começar, a equipe formada por pessoas quase tão experientes quanto eu ainda aguardava que eu fosse lá tomar decisões que diziam respeito somente a eles naquele momento. Isso num dia que eu nem conseguira sair da cama direito, repleto de dores e incertezas. 

Muito embora as músicas tenham ficado ótimas, aquela confusão toda me perturbou profundamente. A igreja cheia de gente, os fios dos microfones emaranhados debaixo dos meus pés, as pastas de letras e cifras, o calor, a voz desaparecendo conforme eu ficava mais nervoso e conforme se exigia mais e mais potência...   Aquele som lá no fundo, um tipo de alarme de incêndio, começou a ficar mais e mais alto, até se tornar ensurdecedor, mostrando que eu chegara no meu limite e que, a partir dali, precisava realmente tomar cuidado ou iria enlouquecer, e digo isso agora sem nenhuma carga poética, mas com a mais pura convicção realista que eu consigo ter. 

Os próximos dias não serão fáceis, e eu preciso ser forte para ver as coisas que, de algum modo, deixarei para trás. Eu não posso me dar ao luxo de largar apenas algumas obrigações, pois eu não consigo ver as coisas dando errado e não fazer nada para mudar, por isso eu preciso me afastar completamente, da atuação pastoral e não da igreja, para conseguir recuperar algo de mim, se ainda for possível. Também precisarei terminar, de algum modo, os projetos em andamento. Formações e investiduras já agendadas, mas que vão também marcar uma grande pausa no meu serviço.

Essa decisão me veio nos últimos dias após intensas reflexões que fiz ao som das composições de Sibelius, e o que pude apurar dele é que a forma como ele via a si mesmo impactava profundamente em sua obra, e sinto com uma força enorme o quanto ele se cobrava. O que me me marcou em suas sinfonias, por exemplo, é a extrema necessidade de cada pequena nota. Não há nada de supérfluo nas suas músicas, pelo contrário, cada nota é necessária e faz sentido, ainda que pareça de uma sutileza extrema, como no casos dos seus poemas sinfônicos. Mas essa cobrança extrema também custou caro, já que ele não mais escreveu quase nada e sequer falava sobre sua música nos últimos 30 de seus mais de 90 anos de vida. Quando olho pra face dele vejo, além da genialidade absurda de um grande mestre, as rugas de uma vida marcada por uma injusta cobrança, mas que ele ainda assim conseguiu se deixar na história. 

Espero que eu possa retornar algum dia, claro, mas espero que eu esteja bem o bastante pra conseguir fazer as coisas direito, como preciso é preciso ser. Até lá, espero que o pouco que eu consegui fazer seja de alguma serventia, afinal, sempre tive o adágio que tantas vezes eu cantei "meu cansaço que a outros descanse" como um tipo de lema pessoal. 

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