domingo, 31 de outubro de 2021

Lampejo

Foi um lampejo,
um instante ínfimo e quase imperceptível
sem importância
mas algo se acendeu

Um átomo se levantou
uma pequena faísca piscou em meio a escuridão
e então tornou a dormir
mas seu calor ainda restou antes do dissipar-se

Tentei não dar atenção
é apenas coisa da sua mente
mas foi um quebranto
ou um simples encanto

Não há nem como descrever o que pode ter acontecido
mas aconteceu
num instante infinitesimal 
algo pulsou dentro do meu coração fechado

sábado, 30 de outubro de 2021

Despertar

Um outro ciclo se iniciou, e é tão estranho, sentir o meu corpo com energia de novo. Não importa quantas vezes as crises passem, a sensação é sempre estranhamente revigorante ver o meu corpo, que mais parece uma casca sem vida durante as crises, ganhar nova cor. É como se eu tomasse pra mim um novo temperamento, que deixasse de lado a melancolia e abraçasse o calor, o mesmo que eu não sentia mais. 

E eu consigo aproveitar, mesmo que um pouco, o barulho da chuva, o cheiro da terra molhada, as músicas ou até mesmo o silêncio. Ser tomado por uma inquietude que eu já nem me lembrava, será sempre assim? Cada crise que se vai um novo mundo que se abre, novas possibilidades, novas experiências e, até mesmo, um pouco de esperança. 

Sim, esperança. Uma pequena centelha se acendendo em meu peito, aquecendo em meio a noite escura, por causa de um olhar tímido, de um átimo de possibilidades, um instante tão ínfimo que nem parece ter realmente existido. E ele me acende, me faz crer que pode haver, senão ele, em algum lugar alguém para mim ou algum lugar a que eu pertença realmente. Será que eu poderia me atrever a...? Será que alguém como eu pode se dar ao luxo de voltar a sonhar? 

Dias como esse me fazem crer que sim, muito embora eu acredite que esses lampejos de sonhos, essas fagulhas de esperança, são mais uma oportunidade de vir a sofrer, mais uma chance de sentir a dor do abandono e da solidão. Por isso a parte que ainda me resta de bom senso me diz que é melhor manter uma distância saudável e desinteressada, não dar o primeiro passo, não tentar construir pontes, não tentar cruzar o rio irado. Deixar-me apenas curtir a brisa fresca, mas sem entrar na água, sem dar o passo que me pode conduzir ao abismo novamente. É melhor apenas correr pela praia, livre e feliz, aproveitando o que me resta de forças nos membros, que agora parece renovado, mas que eu sei que não vai durar para sempre. 

E, mais uma vez, é estranho me sentir assim, sem um grande peso, sem aquele vazio que consome... É, sem sombra de dúvidas uma boa sensação. E eu queria prolongar ela assim. Queria poder me sentir sempre eu mesmo, porque esse é outro diferencial. Nesses dias eu sinto que sou eu mesmo, que posso pensar por mim e consigo ver as coisas como elas realmente são, sem o véu da depressão anuviando minha visão. É como finalmente poder voltar a viver, depois de muito tempo adormecido. É isso, um despertar das trevas da depressão, de volta para as luzes de um dia ou dois um pouco mais tranquilo, sem carregar comigo todo o peso do pessimismo universal e do niilismo que habita o profundo da minha mente. 

É abrir os olhos depois da noite escura
é sentir o coração poder inflamar-se novamente
em ditosa ventura pelo poeta declamada
reacendendo a pequenina chama iridescente 

É estar vivo novamente
quem nos braços de Nyx adormecia
e da deusa cativo permanecia

Poder sentir meu respirar
controlar meu próprio corpo
a minha vontade de caminhar
e não simplesmente subsistir num grande oco

Tentar descrever é quase impossível
Pois a melancolia que lida com as palavras se foi
e aquela profunda experiência parece tão distante
como se tivesse sido vivido num outro eu

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Efeitos e Festas

Sentei-me de frente ao computador várias vezes, 
abri e fechei a página em branco, 
o interior inquieto, 
imagens que não consigo transformar em palavras 
mas todas querem sair de algum modo. 

Um grito abafado num dia quente, 
de tédio, 
de leituras que eu não terminei, 
de festas que eu não quero ir 
e de músicas que eu não consigo cantar. 

Minha menta vaga, 
meu corpo definha no calor, 
rolando na cama incomodado 
com cada peça de roupa. 
Minhas pernas tremem.

Ansiedade? 
O efeito dos antidepressivos me dando uma energia que desconheço? 
É caótica 
mas não é a aquela energia maligna, 
primitiva, 
animalesca, 
é apenas uma força que passa pelo meu corpo. 

E talvez por isso eu não consiga dizer, 
porque não há nada a ser dito, 
há apenas força para viver? 

X

Mas eu ainda não quero ir naquela festa, mesmo sabendo que pode haver um ou dois meninos bonitos, eu não quero falar com eles. Na verdade eu não quero falar com ninguém mais, não quero que ninguém mais entre nos recessos da minha mente e tenha o poder de me desestabilizar. Mas eu sei que preciso de novos amigos, preciso conhecer gente nova, mas essa perspectiva ataca o meu pânico social: até a ideia de sair com alguém me deixa em estado de alerta, como se fosse sofrer um ataque terrorista. E eu exagero até em não querer sentir nada, exagero nas vírgulas, nas reticências, nos melindres. 

Exagero nas preocupações, no pensar em problemas que não posso resolver, em pensar num futuro que não posso controlar de modo algum afinal meu poder sobre qualquer coisa desse mundo infindável é extremamente limitado e o que posso fazer é nada, comparado com a vastidão de coisas que esse mundo pode oferecer ou usar para me destruir. Exagero em prestar atenção nessas coisas, tão grandes e tão pequenas, capazes de doar e de tirar a vida. Exagero em dizer que a morte nos acompanha durante toda a vida e que fica a espreita? Isso, penso, já não é um exagero.

A pele envelhece e racha como o leito do rio seco, o cabelo perde a cor, as forças se esvaem ano após ano. Ser jovem e observar a própria morte é aterrador. Se a virem por aí, diga para que se apresse, mas eu sei que ela vai se demorar, ainda há muito que me fazer sofrer, ainda há muito que me fazer chorar de desespero pelo amanhã. Ela não deixaria que eu desistisse tão fácil assim. E eu exagero em dizer isso pois, na realidade, como para todos os homens o universo, e portando a morte, é absolutamente indiferente a mim e meus desejos. 

E agora, com o corpo cansado da festa que eu não queria ir, e o coração quente por falar com uma pessoa que eu não queria conhecer, eu vou dormir, com um sentimento misto de pânico e desejo ardente pelo próximo dia, por estar vivo mais um dia, por estar um dia mais próximo da morte, por (será?) ter mais uma oportunidade de me apaixonar. 

E eu nem pretendia soar demasiado dramático assim, apenas fluiu, e foi assim. 

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

O Pelicano

Gosto muito dos sinais que prenunciam a chuva, sejam os trovões ou os ventos fortes que balançam as folhas das árvores. Num dia como hoje, em que o céu estava claro, o calor no extremo de sua ousadia, castigando a todos os seres inferiores ao seu sol e, de repente, as coisas vão se transformando, a temperatura diminuindo e eles, os trovões, me lembrando o soar das trombetas divinas no Dies Irae de Verdi, um som magnânimo, colossal, que antecede um grande acontecimento, seja a fala do grande Rei ou o cair das águas que purificam essa terra de males. Depois de soarem por todos os cantos ela finalmente aparece, gloriosa em sua sinfonia do caos: a chuva e toda sua plenitude, graça, alívio, tormenta que antecede o apocalipse. 

X

Somos feitos de contradições, e isso nos diferencia dos animais. Nossas ambivalências não encontram par no mundo natural. Uma árvore é uma árvore, ela não questiona a própria existência, ela não nega seu ser ao mesmo tempo em que busca incessantemente uma razão para existir. Tampouco um urso o faz, ele simplesmente é. Uma contradição a mais que notei em mim foi percebida durante uma aula de filosofia, a saber sobre o existencialismo, é o seguinte: ao mesmo tempo que eu duvido do meu eu a quase todo momento, questionando a verdade da existência, eu encontrei na liturgia romana um momento onde essas perguntas todas se calam, sobrando apenas o som dos sinos e as palavras do sacerdote. Daqui do meu lugar eu olho aquele altar e não preciso fazer nenhum esforço de imaginação sobre razões de existência. Quando retorno a minha casa, no escuro de minha alcova as dúvidas ressurgem. Concluo, portanto, que só naquele altar eu encontro uma razão para o meu ser. Isso não exclui todas as outras questões, mas talvez me sugira um norte para as respostas que, no meu âmago, eu busco com tamanho desespero. Talvez todas as perguntas, na verdade, percam a importância, quando eu digo enquanto caminho igreja a dentro: Introibo ad altare Dei...

X

Já fazia algum tempo que me sentia assim, carente, dependente de um abraço, de um beijo. Já fazia algum tempo que me sentia necessitado de um carinho, uma demonstração de afeto. Mas eu disse que daria um tempo, que tentaria me compreender melhor primeiro, antes de buscar outra tragédia amorosa, eu disse que seria assim, mas não respondo pela parte do meu ser que deseja a presença do outro, ainda que esporadicamente e não com a mesma intensidade de antes. Antes eu não conseguia me reconhecer se não fosse no outro, hoje eu só quero um abraço. 

Ao mesmo tempo experimento um completo horror à presença do outro. Não quero sentir de novo a proximidade pois assim não sinto a traição que se segue. A carência que sinto é acompanhada de um horror pelo outro, o outro que é dor, que é inferno, que é punhal contra meu peito ardente. É mais uma das ambivalências, o querer sem querer, um não sei quê que pulula em meu peito dizendo que, embora seja bom ter alguém, estar assim sozinho é mais seguro. Criei um muro ao redor do meu coração, e mesmo me sentindo sozinho ainda acho que assim é melhor. 

X

Certas experiências modificam completamente o panorama de nossas ideias, especialmente as que envolvem contato com dramas humanos profundos e verdadeiros, nos mostrando um mundo maior que a nossa mente costuma conceber e com isso enriquecendo o nosso senso das proporções: são os dramas humanos que dão o sentido da vida. Digo sentido como algo que tem a capacidade de transformar, de moldar, de dar novos significados as experiências comuns do cotidiano.

Tive contato hoje com uma mãe batalhadora, uma mulher que dá o sangue pelos seus filhos, tal qual o pelicano que se derrama arrancando da própria carne para alimentar aos seus com seu sangue. Ela, no entanto, estava prestes a colapsar e, de fato, desmoronou na minha frente. 

Ali eu percebi o peso que a maternidade tem na vida de uma mulher e, em choque, eu percebi um pouco do peso que minha mãe carrega por minha causa. Foi um tremendo golpe, e estou até agora sem palavras, com lágrimas escorrendo e sem saber como reagir. 

É um peso que transcende todo e qualquer sofrimento pelo qual eu já passei ou possa vir a passar, é o peso de uma vida que se abandonou em função dos seus, é o peso de quem vivendo já não vive mais senão para os seus, e morrendo já não morre pelos seus também, não desistindo muitas vezes porque alguém depende de você. 

É belo, é amor verdadeiro, mas também é brutal, como a imagem do pelicano. É também uma imagem da realidade. Assim como o bebê cresce se alimentando junto com a mãe passamos boa parte da vida na mesma relação, quase chegando ao nível parasitário. Me preocupo quando percebo o quão pesado pode ser o fardo que eu sou e, paralisado ante a contemplação do meu próprio obelisco eu me desespero em ver o quão distante estou de mudar essa realidade. 

Queria poder dar uma finalização bonita pra esse texto mas, assim como a realidade que ele fala, a verdade é crua e nem sempre pode ser adornada de bela métrica. O peso é real, e sua imagem também, assim como todo o sangue e suor derramado, por todas as mães do mundo em favor de seus filhos. 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Dormir

Li num poema pela internet que morremos quando um vício é a melhor parte do nosso dia, ao que prontamente concordei já que, ultimamente, os únicos momentos em que me sinto não vivo, mas um pouco melhor, é quando desacordado, dopado, com a mente entorpecida de remédios, sem precisar encarar o tédio da realidade aqui fora. 

Aqueles pequenos comprimidos brancos e rosas, o seu efeito quando começa a turvar a visão e o tato, quando algumas coisas adquirem graça onde antes era cinza, eles têm sido meu único momento de alegria e o meu maior medo é o de ficar sem eles. Eu gosto quando a visão começa a titubear, e eu sinto que, se dormir, poderei ficar pra sempre ali, naquele mundo onírico, onde não há nada, nem dor e nem mudanças, nem retrocessos, nem o feio ou o imoral, só há o nada para qual retorna meu ser. É ali, naquele limbo existencial que eu consigo suportar o peso do ser. 

É uma fuga, evidentemente, mas o que há de errado nisso? Não sou um guerreiro, sou apenas alguém que caiu aqui por acaso e que agora sofre as consequências da indiferença do universo a minha existência. O sono profundo, que me faz perder o senso do tempo, me faz também esquecer as problemáticas de estar acordado, consciente de todos os problemas, de todas as obrigações, de todos os horrores. 

Por isso meu apego aquela pequena cartela de seres libertadores, de poções de torpor, de névoas comprimidas que tapam os abismos e encobrem o chão coberto de sangue, do meu sangue. 

Quando estou dormindo eu não preciso fingir que está tudo bem, não preciso responder mensagens, não preciso me incomodar com compromissos indesejados, relações infrutíferas, é apenas a delícia de não ser, um presente da indústria farmacêutica que só pode ter sido realmente inspirado por Hypnos ou Oneiros em pessoa. 

Seria isso uma romantização do vício? De certo modo sim, mas, comparado com a vida mesma acredito que um vício não é assim tão ruim se colocado do lado de todas as desgraças que podem acontecer. As coisas boas são fugidias, por outro lado, apenas acontecem de vez em quando, quando algo do indiferente universo acaba por satisfazer de algum modo o nosso desejo de prazer, no mais, é apenas uma mão de ferro que nos conduz a qualquer lugar, sem qualquer razão aparente. 

Gosto da forma que a luz passa pela cortina do meu quarto, dando ao local um tom verde amarelado, gosto dos sentidos irem aos poucos se esvaindo. Da pressão contrária que a cama exerce em meu corpo. Gosto como aqui parece o centro do mundo pra mim. Agora já se passou um dia inteiro que eu não precisei viver, e isso é maravilhoso. Agora as gotas de chuva me acordam lentamente, carinhosamente e isso é muito bom, não me lembro quando tive uma tranquilidade assim completamente sóbrio. A chuva vai ficando um pouquinho mais forte e o jazz que tocava acabou, só ficou essa doce sinfonia natural, a terra perfumando o ar, o doce beijo da brisa fresca. 

Minha única obrigação é a que tenho com o travesseiro e as cobertas, uma relação de simbiose onde elas mantém o calor que meu corpo emana, me mantendo também naquele mundo onde esse mundo não entra. Meu vício é meu melhor momento. E eu sei o que isso significa: que eu estou morrendo, pouco a pouco, a cada um desses momentos. 

domingo, 24 de outubro de 2021

Uma Tarde

O ventilador gira, lançando uma baforada de ar quente sobre mim. É uma tarde preguiçosa, minha cama é um lugar incômodo com todo esse calor, meu corpo suando e incomodando nos lugares em que o tecido toca. O tempo está abafado, e esses dias têm sido assim antes das chuvas que sempre vêm com muita força, vejo pelas notícias de casas destelhadas e árvores caídas que arrancam fios da iluminação pública por aí. Sempre antes da chuva fica abafado desse jeito, o calor praticamente carregando as pessoas por aí, entortando pedaços de ferro a olho nu, isso é um absurdo. Me sinto preguiçoso junto com o dia, e já devia estar encaixotando as coisas mas ainda não consegui encontrar disposição pra isso. 

Parece que dar início a arrumar as coisas pra mudança torna tudo mais real, e eu ainda não estou pronto. Mas a coisa já é real, as caixas já estão aqui, a mudança já começou. Só não começou ainda dentro de mim. Aqui dentro está uma bagunça só, e eu sinto que estou cada dia mais sugando pouco a pouco a vida dos meus pais, como um parasita que se alimenta da vida do hospedeiro até que ele morra. Eu vejo isso nas rugas e na pele flácida deles, no olhas cabisbaixo de quem já cansou de lutar mas ainda não pode parar. E eu aqui deitado, incomodado com o calor, com a mente paralisada sem saber como fazer para ajudar. 

Podia começar a me preparar para um concurso, deveria, mas é isso que eu quero? Bem, me parece a única oportunidade de assumir o posto que almejo de responsabilidade aqui dentro. Mas algo ainda me paralisa e me faz ficar aqui, incomodado com o tecido em contato com minha pele suada. 

Preciso cantar na missa de amanhã, a pasta de músicas está preparada e eu ensaiei nos últimos dois dias, e tenho certeza que minha companheira também, mas eu vou ter forças pra levantar e ir até lá? Meu corpo pesa como chumbo, como posso ficar de pé e cantar pra todas aquelas pessoas? De onde elas tiraram força pra estarem ali? De onde todo mundo tira forças? Onde foi parar a minha força?

Olho pra cima e vejo as folhas de um mamoeiro se agitarem, mas o céu está claro, de um azul brilhante, mesmo sendo fim de tarde, se for chover será só no meio da noite, ainda vamos ter de suportar o calor mais um pouco. O ventilador gira sem parar lançando o ar quente e pesado sobre mim. Queria ouvir a chuva, talvez me ajudasse mas, além da minha música (algumas sonatas pra piano obras pra coro e orquestra) tudo o que eu escuto é o som alto de algum vizinho que deve estar confraternizando com os amigos, a música meio disforme pelo espaço e pela minha própria música. 

Às vezes eu saio do quarto, dou uma volta pela casa e volto. Não me sinto bem em nenhum lugar, nem aqui, embora aqui ao menos seja mais cômodo pela música. Me sinto deslocado na minha própria casa, no meu corpo, na minha vida. E enquanto isso o ventilador gira, e um vício se torna o melhor momento do meu dia. Quando consigo me desligar um pouco, fugir um pouco, sentir o vento quente soprando sobre meu corpo. O ventilado gira e eu me pergunto: que é a vida? 

sábado, 23 de outubro de 2021

Resenha - Don't Say No

Contem SPOILERS, prossiga por sua conta e risco!

Aqui no Brasil o anúncio dessa série gerou reações bem diversas no fandom BL, por ser mais uma obra da MAME (mesma autora de TharnType e Love By Chance) algumas foram bem negativas, apontando que a escritora teria uma tendência a romantizar assuntos abusivos e até criminosos, outros não gostaram do personagem Fiat, que apareceu na segunda temporada de TharnType e fez muita confusão e que agora protagoniza essa série e outros, finalmente, ficaram felizes por ver que esse personagem teria mais destaque e desenvolvimento agora numa obra só dele, claro que isso gerou uma certa comoção, fazendo com que Don't Say No já nascesse aclamada. 

Nós já tínhamos sido apresentados aos personagens principais em TharnType - 7 Years Of Love, Fiat, filho de uma família disfuncional que se sentia abandonado pelo pai e que encontrou em Leo, seu amigo de infância, um porto seguro em toda tempestade emocional que o problema de sua família trazia. Aqui temos um aprofundamento desses personagens, contando o que aconteceu depois dos eventos da outra série. 

Fiat (First Chalongrat, de TharnType - 7 Years Of Love) é um garoto apaixonado pelo seu melhor amigo, que finalmente se tornou seu namorado, no entanto, muita coisa aconteceu para que a relação deles chegasse até esse ponto. Até que se entendessem, Fiat saía com muitos caras, não escondendo isso de ninguém, como forma de provocar Leo a ter algum tipo de reação e também de superar a carência afetiva que ele tinha pelo relacionamento com o pai. 

Leo (Ja Phachara Suansri, de Until We Meet Again) acolheu Fiat em sua casa desde que eram crianças e o amigo havia se desentendido com a sua família. Ele sempre cuidou do amigo, emocionalmente instável, e mesmo gostando dele, respeitava os relacionamentos de Fiat, por mais que isso o magoasse. Após os eventos de TharnType nós vemos que ele finalmente teve coragem de se declarar e assumir o posto de namorado. 

A história se divide então em 3 arcos, muito bem desenvolvidos em uma temporada: o primeiro é o período de adaptação entre Leo e Fiat que, depois de anos de amizade, passaram a ter um relacionamento amoroso, o que causa algum embaraço em ambos como, por exemplo, o fato de que Fiat teme que Leo o ache tarado por querer sexo a toda hora e Leo sem saber como chegar em Fiat ou em dúvidas sobre sua performance, já que o outro tem bastante experiência com outras pessoas. 

O segundo arco é o da mãe de Fiat, que retorna depois de anos desaparecida, trazendo a tona antigos problemas da família. Fiat acha que sua mãe o abandonou e que seu pai não o ama, preferindo sua nova esposa e filha e, por isso, o relacionamento deles é extremamente delicado. Mais uma vez Fiat vai precisar se apoiar em Leo para conseguir superar as dificuldades e finalmente sentir-se parte de sua família. 

O último arco traz mais problemas ao casal que precisa lidar com duas criaturas de pouca luz que decidem provocá-los. Punn, uma garota apaixonada (ou obcecada) por Leo e King, seu rival no basquete e que usa o fato de que já teve um caso com Fiat para atingir o outro. 

Além disso temos o arco do casal secundário, Leon (Smart Chisanupong), irmão de Leo que retornou a Tailândia e, tendo fama de pegador, acaba se apaixonando por Pob (James Pongsapak) um estudante tímido, amante de gatinhos, que tem uma personalidade completamente oposta a de Leon e parece não querer se envolver com alguém com tanta fama. Eles aos poucos vão se conhecendo melhor e Leon percebe que agora só tem olhos pra Pob, encantado por cada detalhe do veterano. 

Em linhas gerais a série trabalha muito como eles lidam com a adaptação da mudança de relacionamento, especialmente ao passado "obscuro" de Fiat que agora namora o filho de um importante político. A forma como Leo lida com o seu amor é digna de admiração: ele faz de tudo para proteger seu amado e não se importa com o que os outros dizem dele, sempre colocando Fiat a frente de tudo. Fiat também, se dedica completamente ao outro, abandonando de vez a vida de farras e se esforçando pra ser o melhor possível para estar ao lado de Leo, que ele reconhece sempre fazer tudo por ele. 

A forma como a maioria dos problemas são resolvidos por meio do diálogo é um grande avanço em se tratando de uma produção tailandesa, onde os personagens geralmente apenas brigam e passam a se odiar. Leo e Fiat não só conversam como confiam um no outro e isso garante, graças a amizade de anos, que eles não tenham algo superficial, mas um relacionamento sólido, que resolve suas dificuldades por meio do diálogo, e as vezes na cama também. 

Fiat é frágil, muitas vezes inseguro e não consegue segurar os rompantes de raiva, Leo por outro lado é comedido e consegue acalmá-lo e fazê-lo sentir-se seguro e amado. Nenhum dos dois pode se imaginar viver sem o outro.

Esse é outro ponto positivo. As séries tailandesas geralmente são muito tímidas em mostrar aspectos reais de um relacionamento gay. Mas aqui não, eles andam de mãos dadas, se declaram em público, se beijam e fazem sexo no banheiro da quadra de basquete (quem nunca?). Sem medo e com uma química incrível First e Ja deram um show nesse aspecto, com várias cenas de amor bem construídas e bonitas de se ver e Smart e James também não ficam para trás, mesmo que com uma cena só. Ponto pra atuação dos rapazes e pra direção e preparação de elenco, muito bem feita. 

Falando em atuação First está em excelente forma, em quase todos os episódios ele lidou bem com cenas cômicas e dramáticas, que exigem bem mais versatilidade. Ja também surpreendeu, especialmente no penúltimo episódio ao passo que Smart e James deram um show de fofura até pegar a gente de surpresa com uma revelação no final de partir o coração. 

Por fim, a série soube trabalhar bem cada um dos seus arcos, conduzindo lentamente ao ápice, provando o relacionamento de Leo e Fiat e mostrando que o amor pode superar qualquer dificuldade e aceitar qualquer passado. Tudo isso regado a muitas cenas fofas e românticas de encher os olhos.

Nota: 10/10

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Retorno

Eu queria muito trazer algo alegre pra variar, mas os últimos acontecimentos me desestabilizaram de tal modo que não, infelizmente não vai ser dessa vez. 

Dois foram os acontecimentos: o primeiro deles foi a notícia, dessa vez certa, de que, por razões financeiras, eu vou ter de voltar a morar na minha antiga casa, de onde fiquei muito feliz em sair. E a outra foi uma foto que eu vi nas redes sociais, sobre a qual eu não quero me deter tanto assim mas que me atingiu, como o segundo golpe fatal do grande martelo da 6° Sinfonia de Mahler, antes da grande apoteose e morte do herói. 

As razões para eu não querer voltar pra lá são muitas: a casa é péssima, sem as mínimas condições de comportar uma família do tamanho da minha, além de que a presença do resto dos meus parentes na vizinhança (o que inclui a amante do meu pai) deixa tudo num clima de eterna rivalidade insuportável. Eu sou um amante da beleza, aquela deformidade arquitetônica, uma aberração de concreto e cal, disforme, os fios aparente gritando a completa inabilidade do construtor. 

Mas essa inabilidade resultou na minha derrocada. Uma música antiga dizia que uma cadeira não é uma casa, e uma casa não é um lar* e, aquele lugar, é tudo menos uma casa, tampouco seria um lar. Na verdade eu enxergo aquele lugar como meu túmulo. É como se eu, retornando ali, fosse definhar até a morte, assim como meus pais, que eu vejo definhando a cada dia sem que eu possa fazer muito a este respeito. E é desesperador. Saber que a cada dia suas forças diminuem e as minhas não aumentam; Por isso a sensação de que, se voltarmos aquele lugar, ali será nossa sepultura, definhando até o fim. 

Mas isso justificaria esse meu colapso? Acontece que, pra uma mente fragilizada, o retorno ao local onde vivi tantos traumas me apavora. É isso, não quero reviver aqueles traumas pois, no meu estado atual, eu não posso manter nem o mínimo do meu equilíbrio. Estarei cercado pelo feio, pela injustiça, pelas brigas, pelo horror das disputas egoístas. 

O outro acontecimento caiu sobre mim como o peso de um grande golpe, que me matou. Eu não queria ter visto, saber que estão felizes e que minha presença nada significou na vida deles. Isso é o que chamo de golpe mortal. E ele me derrubou até o profundo lamaçal, me sujando com a vergonha que sinto de mim mesmo por não ser suficiente. Eu não queria vê-los juntos e, se tivesse o poder de voltar no tempo, jamais teria apresentado uns aos outros, só pra que me abandonassem no final.

Esses dois golpes do martelo do destino me acertaram em cheio, me derrubaram ao chão imundo, chafurdando na lama, e eu fui envolto por névoa, por desencanto e desespero. Catatônico passei horas contemplando a vastidão do nada, com pensamentos terríveis, desejando os piores sofrimentos aqueles que me fizeram sofrer, e eu não queria ser assim, queria perdoar a traição, queria não sentir nada. Queria enfrentar tudo de cabeça erguida, como minha mãe queria que eu fizesse, mas eu não consigo, não consigo me desvencilhar da melancolia, desse torpor, e do horror que é imaginar retornar aquele nada.

É tudo como o Eterno Retorno de Nietzsche, vivendo sempre as mesmas coisas, as mesmas dores, os mesmos sofrimentos e, agora, retornando aquela terra maldita. Onde fui tão infeliz e onde, parece-me, serei novamente infeliz a tal ponto, como sugerem as imagens em minha cabeça, de que aquele será meu túmulo. E é por isso que eu, todos os dias, peço a Deus, que seja o último dia.

~

Nota: *A musica referida é A House Is Not a Home, de Luther Vandross

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Seguindo

Todo mundo, em algum momento mais ou menos complicado da vida, já tentou se explicar a alguém que não queria ou não podia compreender o que dizíamos. A criatura olha de um lado para o outro sem conseguir foco no que estamos tentando mostrar. Acontece que, outras vezes, a coisa carece apenas de uma explicação mais simples que o sujeito, querendo ou não, vai entender algum dia ou, pelo menos, parar de fingir que não entendeu.

É isso, eu poderia fazer um esforço de amadurecimento e tentar aceitar, tentar me conformar, e até mesmo quem sabe fingir que tá tudo bem e que eu fiquei feliz. Seria bonito da minha parte, alguns até diriam que isso seria uma grande demonstração de amor ao próximo e maturidade mas sabe, eu não quero ser reconhecido pela minha grande inteligência emocional (em seja lá qual for a acepção desse termo), na verdade eu não quero ser reconhecido, eu só quero um pouquinho de paz comigo mesmo, isto é, com as vozes dentro da minha cabeça. 

Por isso me afastar foi o que eu consegui fazer. Eu vi ali o meu limite e decidi não ir além. Por ciúmes? Obviamente não há outro nome mais apropriado mas eu não acho que isso desqualifique a coisa. De minha parte eu já li livros o suficiente pra saber que o personagem principal se apaixona pela garota e não pelo melhor amigo. Acontece que eu não quero ser só o melhor amigo, não, eu quero ser protagonista da minha história, que com certeza não vai ser mais um romance desses, e eu me recuso a me apaixonar pela garota. 

E vida que segue, segue atropelando tudo e passando por cima, mas segue de algum modo. Vão seguir sem mim e eu vou seguir sem eles também. Nada fica parado esperando tempo suficiente pra que a gente cresça e consiga aceitar bonitinho. Isso é o que da pra fazer com a minha maturidade hoje, e com a minha necessidade de estar em paz comigo mesmo. Como diz a letra de uma das minhas músicas favoritas:

"Eu sei que nós não podemos esquecer o passado
Você não pode esquecer o amor e o orgulho 
e por causa disso eu estou morrendo por dentro."

E tudo retorna ao nada, dessa vez significando um novo começo, sem que nada me impeça de seguir em frente, de recomeçar como se nada tivesse acontecido, ou melhor, seguindo apesar de tudo que aconteceu, engolindo o amor e o orgulho, sentindo como se morresse por dentro mas seguindo, sem parar.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Duas Pessoas


Nota: Texto escrito sob efeito de fortes antidepressivos

T

Eu queria que ele saísse da minha vida, mas quando eu esqueço, quando finalmente seu rosto sai da minha mente aparece o seu nome numa notícia, aparece um story e parece que as redes sociais insistem que eu o veja como se fôssemos melhores amigos quando, na verdade, nunca passamos de estranhos. Eu, um estranho poeta buscando entender o meu lugar no mundo, ele, um aspirante a jornalista tentando mudar o mundo; Mas nunca fomos mais do que estranhos, apenas na minha cabeça, por um breve instante, eu vislumbrei que poderíamos ser mais do que isso. Mas não fomos, e ele me tratou da pior forma possível e depois me usou, me jogando fora quando eu não era mais necessário. E eu saí da vida dele, que agora frequenta seus círculos de "intelectuais", tomando vinhos e tratando-se uns aos outros por termos literários de alto padrão, comendo comida chique e rindo da grande transgressão ao protocolo que é usar meias coloridas num ambiente sério onde todos usam terno e gravata. Mas ele não saiu da minha vida, volta e meia voltando a me assustar, pálido como um fantasma e seu bigode a me rondar como quem deseja devorar. Mas ele não quer me devorar, e eu queria que o fizesse, ele só não quer ir embora, só não quer desaparecer, como desapareceu aquela imagem que, um dia, eu pintei de nós dois. Mas parece que ela volta a aparecer, mesmo turva, desbotada, e algo naquele maldito bigode me faz querer continuar vendo até onde ele vai chegar, sem mim, obviamente. 

J

Você me disse que se aproximaram num momento em que ambos estavam se sentindo solitários, vazios e que a companhia ajudou a superar as dificuldades, isso é muito bom, quando encontramos alguém em quem podemos nos apoiar, e apoiar também essa pessoa. Mas isso significa que, se você encontrou isso nela e não em mim, que sempre tentei estar ao seu lado, e ainda escondeu de mim, que eu já não ocupo mais um espaço no seu coração. Tudo foi tomado por ela. E que bom que ela te faça bem. Mas e quanto a nós? Você disse que dependia de mim decidir o que fazer da nossa amizade. Outra prova que confirma meu dito pois, se fosse uma prioridade a você, sequer cogitaria o fim da amizade. Mas eu acho que não precisamos nos odiar, não precisamos ser estranhos, não precisamos fingir que nada aconteceu, pois a sua amizade ficou marcada em mim, mas não podemos mais ser como antes, seria doloroso demais pra mim, portanto alguma distância há de ser necessária. Não seremos estranhos, tampouco há ressentimento, mas não seremos como era antes. 

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Para Simplificar

Não quero viver o dia de hoje, por alguma razão. Seja o tédio fruto do meu desemprego ou a crescente crise que se aproxima da minha família, eu não sei dizer ao certo. Já perdi a capacidade de dizer as coisas que vejo há muito tempo, tudo o que consigo fazer é descrever como me sinto. 

Parece que as coisas vão se complicar ainda mais, e as questões familiares quando se tem uma família tão grande e irritada são sempre complexas. Mesmo que eu não esteja à frente, mesmo que as principais consequências não recaiam sobre mim eu ainda sinto os efeitos das ondas batendo no quebra mar, isto é, ainda sinto o respingar de todo o ódio e de toda a ganância e me pergunto: como meus pais sobrevivem a isso? De onde eles tiram essa força pra continuar dia após dia mesmo absolutamente tudo dando errado? 

Eu queria experimentar dessa força, queria ser um guerreiro como eles são. Tudo o que eu consigo fazer é fugir e me esconder atrás da porta, estragar meu fígado com remédios e mais remédios e dormir quando eu deveria estar lá fora, lutando no lugar deles, lutando mais que eles, enquanto eles descansam em paz. Me sinto um lixo por isso, alguém que só consegue sentir pena de si mesmo sem realizar nada de substancial numa vida patética. 

Consegue ver? Isso é um dia bom pra mim. Eu só não queria viver o dia de hoje, não é como se eu estivesse em crise como estava dois dias atrás, não é como se sentisse que o mundo está desmoronando, embora ele esteja, eu só não queria viver esse dia, eu só não queria estar aqui, e é mais fácil fugir pro mundo dos sonhos do que esperar alguma coisa acontecer, quando tudo o que acontece acaba piorando todo o cenário de algum modo, o mundo tendendo ao caos, pairando sobre um fundo de ordem que, no entanto, nos é inapreensível. É, isso define bem as coisas, e o sentimento de ser incapaz de apreender qualquer que seja a ordem desse universo caótico me paralisa, me torna depressivo e me faz ter vontade de simplesmente desaparecer ou, para simplificar, não ser. 

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Daquele dia no abismo

Uma pessoa importante me disse que eu deveria aproveitar melhor a brisa fresca que toca meu rosto. Admito que, quando ouvi, não prestei a devida atenção mas, agora, percebo que, até no meio da tempestade é possível admirar alguma beleza. É um conselho de aproveitar as pequenas alegrias, mesmo que todo o resto esteja um caos. 

De certa forma é preocupante ver como muitos vivem sem perceber os problemas ao seu redor porque só focam nas pequenas alegrias, e falo das pessoas que parecem viver numa eterna festa mas, por outro lado, quando só se vê as coisas horríveis dessa existência, prestar atenção na pequena brisa do bater de asas de uma borboleta pode salvar uma vida. 

Tive uma crise complicada ontem, que resultou no último texto que publiquei e que, na realidade, tinha sido enviado à minha mãe, que prontamente entrou em pânico. Estava pronto pra naquele momento tomar uma quantidade letal de meus remédios, me despedir finalmente desse mundo mas hoje, passado aquela tormenta, todo aquele desespero, daquelas lágrimas, eu sinto uma brisa leve, sentado aqui na sala, e me sinto bem. 

O corpo cansado (crises sempre me deixam exausto e ainda tive atividade na igreja à noite e hoje a manhã toda) mas estranhamente tranquilo, uma tranquilidade que há muito eu não sentia e, principalmente, que eu achei que nunca mais ia sentir. Ontem, enquanto era engolido pelo abismo, eu achava que nunca poderia sentir nada parecido com tranquilidade, minha alma estava inquieta depois da notícia de que serei obrigado a me mudar novamente e, possivelmente, voltar para uma casa em que morei tempos atrás, um lugar inóspito e cheio de brigas que eu sinceramente não posso suportar. A perspectiva desse retorno foi o estopim pra uma crise que já se prenunciava durante todo o dia. Foi horrível, e eu nem consigo descrever o quão desesperador foi. 

Foi um assomo de trevas, como se meu coração fosse tomado pela escuridão, eu não via mais nada, só a destruição diante de meus olhos, a lembrança das discussões, o medo que eu sentia naquelas paredes descascadas pelo mofo. Foi como ser engolido pelo oceano, a torrente invencível, colossal me levando para o fundo, nenhuma luz, nenhuma mão por perto, a voz da minha mãe distante, sumindo assim como sumia a claridade da superfície. 

O abismo era frio e escuro, senti congelar a carne, cada fibra até o tutano, e olhava desesperado ao meu redor buscando ajuda. Mas naquele abismo não havia nada, e o nada era tudo que eu passei a sentir até acordar desse pesadelo, até sentir a brisa fresca no meu rosto...

domingo, 17 de outubro de 2021

Clamor

Mas aqui nesse mundo, o mundo real, o amor não existe mais, as cenas fofas e os sorrisos são mentiras que criamos pra tornar mais fáceis a nossa existência nessa terra. E isso nem sempre funciona. Quando uma voz espreita no profundo do seu quase intangível, nos abismos da sua consciência e te conta a verdade as mentiras não fazem mais sentido. E então, ao contemplar o mundo verdadeiro, tem-se a constatação: a vida é inviável.

Gemendo tal qual réu ante o tribunal, a culpa me tornando rubra a face eu choro em horror, prostrado, clamando: e eu, pobre, que farei, que patrono invocarei quando tudo já está entregue diante do trono? Clamo por libertação. Lacrimoso aquele dia em que das cinzas ressurgia o homem, o réu para fazer sua última súplica, a prece final: 

Libertai-me, ó demiurgo, libertai-me ó mundo, de sua ânsia destruidora de carnes e devoradora de ossos, que consome os seres em desespero até o tutano. Libertai-me, deixai-me ir em frente. Deixai agora vosso servo ir em paz, pois meus olhos não vendo mais a face da salvação antevê a destruição de todas as nações. 

Me liberte, mãe, me deixe ir, me deixe morrer, sem dor, uma noite em que adormeça e que não terá fim, sem a tristeza da clara luz do sol invadir o meu quarto na manhã seguinte mas banhando não meu corpo ainda sonolento, mas tocando um corpo onde já não há vida, uma casca vazia, um corpo frígido. 

Me deixe ir, deixe que esse seja meu último sono, não me permitas acordar. Consegue entender o desespero em minhas palavras ao pedir essas coisas? Eu não quero voltar atrás, não quero regredir ao sub-humano, não quero ser um peso para vocês, não quero ser um incômodo. Por isso eu deveria partir. Não tenho missão a cumprir, ninguém depende de mim. Até meus amigos me abandonaram, tornei-me para eles motivo de riso e horror. Seria melhor que eu simplesmente desaparecesse não é? Você sabe que é verdade, não há porque insistir num ser que já atingiu seu limite, um limite medíocre, incapaz de realizar qualquer coisa.

É só o que peço: deixe-me ir, preciso andar, vou por aí, a procurar a verdadeira paz. Paz que não encontrei nesse mundo senão num arremedo, tentativas falhas. O que estou pedindo, com todas as letras mãe, é que me deixe morrer. 

sábado, 16 de outubro de 2021

Um outro mundo

Os meus ciclos têm estado cada vez mais curtos ultimamente, isso significa que as crises estão mais próximas umas das outras o que, de certo modo, é bom pois eu fico menos tempo indisposto em cima da cama e posso oferecer um pouco mais, seja na igreja ou até mesmo em casa. Só de ter um pouco mais de animação pra assistir alguma coisa ou conversar mais tempo com um amigo já me deixa um pouco mais feliz. Espero conseguir estabilizar o meu humor com a nova medicação que meu psiquiatra me passou essa semana e, quem sabe, um dia me livrar de vez de todos os comprimidos que mexem na química do meu cérebro. 

É estranho sentir um pouco de disposição num corpo enrijecido, e também sei que é estranho dizer isso aos 26 anos, já com uma melancolia que só me seria apropriada depois dos 60. Mais estranho ainda é saber que, por conta disso, eu não posso fazer muitos planos, já que eu nunca sei com que humor vou estar no dia, hipomaníaco ou depressivo e, quando digo isso, o faço com uma força sugestiva muito frágil mas eu garanto que essa variação é 100% real. Se um dia eu estou completamente disposto a sentar e jogar conversa fora por horas enquanto bebo uma caipirinha, em outros eu só quero saber de dormir ou ficar quietinho na cama até me sentir disposto de novo. 

Algumas noites são longas, como se nunca fossem acabar, e outros dias as manhãs são terríveis por perceber que amanheceu mais uma vez. Mas alguns dias brilham, alguns dias eu levanto contente por conseguir levantar, por conseguir ter um motivo pra sair da cama, seja uma missa a servir ou uma série pra ver, é isso que ainda brilha lá no fundinho do grande abismo que eu enxergo nos outros dias. 

As séries têm aqui um papel muito especial, pois são as histórias que eu uso pra povoar a minha imaginação, são elas que habitam no fundo do meu mundo imaginário, seja o brilho daqueles sorrisos, seja o poder daquelas declarações de amor, a fofura de outras cenas... Enfim, são os personagens com quem eu sonho pois é neles que eu penso antes de dormir pois aquele mundo, onde ainda há amor, onde eles andam de mãos dadas e acordam ao lado de quem amam, aquele mundo é um mundo onde a doçura ainda existe, o mundo em que eu gostaria de viver. 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Conforto

Tantas obrigações, dormir apenas o essencial, nem muito e nem pouco, ingerir todos os nutrientes, beber água, cuidar da barba, cabelo, pele... Tudo tão difícil... Como pensar em fazer qualquer uma dessas coisas quando eu na realidade não queria nem mesmo sair da cama? Quando ficar parado esperando o tempo passar e torcendo pra eu não precisar fazer nada, pra nada vir perturbar o meu descanso porque meu corpo está exausto, simplesmente pelo fato de existir. Eu já nem sei que horas são ou em que dia estamos, o tempo eu conto pelas músicas que passam, muitas delas me trazendo lembranças ou apenas sentimentos distintos mas, na maior parte do tempo o que eu experimento é apenas um nada, um grande vazio e um grande cansaço, como se bolas de aço estivessem amarradas a mim me impedindo de levantar os braços ou dar um passo sequer. 

Pelo menos ouvir os temas de abertura de animes que assisti me fazem ter uma vaga lembrança de uma época que eu tinha energia pra fazer alguma coisa. Algumas cenas esparsas pululam na minha cabeça, ainda consigo cantar alguns trechos em inglês ou até japonês, e isso, esse passado, me faz pensar que um dia eu posso voltar a ser assim. Pelo menos preenchido dos valores e lições de histórias que vi, não apenas esse grande abismo escuro que há no meu peito agora. 

X

O homem tem um instinto territorialista engraçado, é como se tivesse medo de perder seu espaço e então agisse de modo a preservar o que é seu por direito. Me sinto assim ultimamente, na tentativa de me consagrar ainda mais como autoridade para não perder espaço e influência para um novo garoto que chegou. E é estranho sentir como se ele pudesse me substituir porque é mais do que simplesmente ocupar o lugar que, na minha cabeça, é meu por direito. 

É como se ele tivesse, em suas mãos de novato, o poder de desfazer os laços que criei para estabelecer o meu eu em relação a todos os outros. O faro de isso acontecer enquanto me afasto de um de meus amigos mais próximos coloca isso num patamar ainda mais elevado: o que faz de mim eu mesmo? São os laços que criei com aqueles que me rodeiam que definem quem eu sou!? Mas se isso é verdade esses laços podem ser desfeitos sem a perda do meu eu ou eles levam consigo o que definia meu eu? 

É bem mais do que território, tem relação com quem eu sou e o que eu faço pra definir meu eu, minha existência e como ela se relaciona com o outro. Uma questão complexa demais com perguntas que eu nem sei se sou capaz de responder. 

Está claro que minhas relações fazem parte da construção do meu eu, mas o fato de essas relações acabarem não desfaz o eu, senão que acrescenta nele um outro elemento, dessa vez de ruptura, mas que se soma, se assim se pode dizer, ao que antes fora de junção e crescimento. As pessoas trazem isso para perto de nós, elas chegam e somam e, depois de um tempo, partem e, de certo modo, somam e subtraem ao mesmo tempo. Somam com uma experiência a mais e subtraem a sua própria presença. Ao que me parece é algo próximo disso. 

Então mesmo partindo essas pessoas deixam algo em nós, e não desfazem o eu mas o refazem, em sua ausência dando um novo significado para sua presença ou ausência dela. Mas esse é um processo doloroso, como tudo que envolve o outro, num eterno dilema do ouriço, e é por isso que temos o instinto de proteger o que nos parece pertencer, por medo da dor que aquela perda pode causar, é um instinto natural de fugir da dor e buscar o prazer ou, pelo menos, a ausência de dor, um ponto de conforto. 

Conforto

Tem sido cada vez mais difícil achar um ponto de conforto. Meu psiquiatra receitou um relaxante muscular para me ajudar com as crises de pânico que eu tenho toda noite e, como um tipo de S.O.S também passou uma dose mínima de tarja preta, sem saber que eu já tomo dez vezes aquela quantidade para situações bem menos desesperadoras que uma crise de pânico real. Ou seriam minhas crises existenciais ainda mais desesperadoras e, por isso mesmo, é que eu fujo delas com tanta força? 

Parece que essas crises, e a atual depressão inclusa, parece estar acabando com meu eu. Ou melhor, já acabou, restando restos de um eu, a carcaça de uma fera que um dia gritou Eu no coração do mundo. Uma fera cujo rugido só afasta as pessoas que ela mais ama. Como encontrar no meio disso tudo algum conforto? 

Tenho buscado ficar cada vez menos sozinho, admitindo o que uma vez eu condenei: o medo do que pode se revelar na solidão. E mesmo assim tenho apreciado cada vez mais a solidão, ainda que seja nela que eu encontre meus maiores medos. É confortável mas, ao mesmo tempo, é um ambiente inóspito demais para sobreviver, e isso é tudo que eu posso fazer aqui: sobreviver. 

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Chuva e Poesia

Deve começar a chover em alguns instantes, o ar está abafado e os trovões se ouvem com frequência, o céu de azul acinzentado que mistura as nuvens pesadas com o entardecer, as primeiras gotas pesadas batendo nas folhas das plantas do quintal e na telha que dá para fora da janela do meu quarto. Foi um dia cansativo, horas esperando na clínica psiquiátrica pra voltar pra casa com um carregamento quase ilegal de antidepressivos. 

Mas, por algum motivo, mesmo sabendo que o que vem por aí é um temporal de primavera, pra aliviar um pouco o calor insuportável do centro-oeste e reestabelecer as centrais de captação hídrica, eu estou com um sentimento que, talvez, não tenha a ver com o clima mas com o meu coração. É que olhar esse céu cinza, ao invés de me inspirar numa doce melancolia, me trouxe uma estranha sensação premonitória do caos, como se algo ruim fosse acontecer. 

Talvez seja o efeito da minha abstinência de quase um dia dos meus remédios para dormir que está me deixando incomodado com o fato de estar consciente de minha posição retardatária nesse mundo mas algo realmente não vai bem e, no momento, a minhas percepção do simbolismo natural do céu nublado me deu hoje o sentir de algo ruim que se aproxima. 

Começou a chover, e como eu teimosamente me recuso a perder minha fonte de inspiração nesse momento insisto em ficar sentado mesmo sendo atingido por algumas gotas frias, e elas fazem um contraste interessante com a minha pele febril: estava tão preocupado instantes atrás que fui acometido de uma pequena alteração na temperatura corporal. 

Gosto de como a chuva permite tantas interpretações poéticas, desde a melancolia de uma tarde nublada até a violência dos raios e trovões, ou o caráter sombrio de um noite chuvosa que esconde mistérios e paixões, seus gritos e gemidos. Gosto do derramar-se, de como a água precipita-se sem rodeios do céu lançando-se ao chão, de como beija a terra e perfuma o ar, me lembra o derramar de mim mesmo, aquele amor incomensurável que tantas vezes eu devotei aos homens como que aos ídolos. Eu, que tantas vezes me derramei em corações fechados, como terra infértil. Eu, que tantas vezes me derramei em lágrimas, eu como a chuva, o destino imponente como raios e trovões. 

O mundo se derramando e eu aqui sonhando... Mas ele já tem um novo amor, o mundo se explodindo e eu aqui torcendo pra ele me salvar de mim. E ironicamente a minha cabeça deu uma volta completa e voltou justamente ao lugar onde eu não queria estar: pensando nele mais uma vez, mas é do profundo âmago que me questiono se ele sente minha falta ou me substituiu completamente em seu coração e suas noites. Uma pergunta cuja resposta eu já sei, mas prefiro não saber.

O que me resta então, já que agora já me derramei como a chuva, é derramar as lágrimas, enquanto ouço a sinfonia gloriosa, esse allegro maestoso, dos raios e trovões. 

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Túmulo

O tempo está fechado e, uma vez mais, meu eu reflete o que se passa na minha própria cosmovisão: meu coração também se fechou. Como o sol não pode ser visto por entre as grossas nuvens também não haverá mais raios de afeto partindo de mim, apenas um vento gélido e um silêncio sepulcral, uma vida onde apenas a solitude faz sentido. 

O recurso da inconsciência se repete, e eu nem sei mais o que fazer sem ele, como é ter de viver encarando a verdade sem estar dopado, nem sei se isso é possível, existir conscientemente nesse mundo sem sentir medo o tempo todo. As pessoas fazem mesmo isso? Não, cada uma delas foge da existência de uma maneira diferente, e eu prefiro estar dormindo do que vendo esse mundo horroroso com a crueza da visão sóbria. 

E eu não aguento mais, nem um dia, sendo tomando por um assomo de desespero, de horror, de dor, de confusão, como se minh'alma fosse apenas uma miscelânea das piores coisas que poderiam se abater sobre o ser de uma pessoa. Eu não passo de um saco cansado de tarja preta e ansiedade, a depressão deixando meu quarto cheio de poeira e com um cheiro forte de suor. A chuva ajuda a refrescar e abafar o meu choro no travesseiro sujo. É isso, eu estou vivendo chafurdando na lama, em completo desespero, sem conseguir nem mesmo encontrar as palavras que possam descrever meu estado. 

A única coisa que me ocorre é que estou morto, já há muito, e se consigo me comunicar o faço de dentro de meu túmulo, usando a imagem da grande poetisa emprestada já que as minhas são insuficientes. Onde está o ser? Onde está a essência? Onde está a vida? Isso é tudo que há para ver? 

Imagens rápidas passam pela minha mente, eu já não consigo acompanhar. Minha mãe diz pra eu não me entregar, eu só queria que ela percebesse que não há o que manter, tudo já foi entregue, ou melhor, tudo já foi tomado de mim, tudo o que sobrou foi essa casca vazia. Eu não sou mais nada, nem ninguém, e mesmo assim ainda dói.

Um adágio lamentoso toma o lugar do som do choro abafado, é o fim que se aproxima com a morte, ou o sono que antecede outro dia terrível. 

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Um pouco de chuva, ou lágrimas

Não quero ficar acordado, mas mais uma vez os remédios não fazem efeito e eu sou obrigado a encarar a realidade. Sim, é isso mesmo, eu sou só um covarde que queria sumir e nunca mais encarar a realidade, um pária, alguém sem lugar no mundo. E por qual razão eu deveria ficar acordado? Se tudo o que vejo é decadência? Vejo conquistas e novas oportunidades na vida das pessoas e, enquanto isso, me vejo afundando cada vez mais num buraco sem fundo, não conquistas mas derrotas em cima de derrotas. Desemprego, não posso almejar completar as coleções que iniciei, não consigo sequer me atrever a sonhar, meus pais cada vez mais velhos e cansados de tudo, isso é toda a mediocridade em que estou submerso, como porcos chafurdando na lama nós nos reviramos de qualquer jeito numa existência patética, privada de dignidade, de beleza, de grandiosidade. Ficar acordado para quê? Para contar os centavos pra próxima consulta psiquiátrica que nem se sabe se vai surtir algum efeito? E a vida não parece ser muito mais do que isso. Desgraça seguida de desgraça. Alguns poucos com sorte o suficiente para ter uma percepção diferente disso mas, no geral, é apenas decadência. E a esperança é um artifício dos tolos, que se apegam na possibilidade de um futuro melhor apenas para ignorar, fugir, da verdade que se apresenta dura como ferro e mármore a sua frente: as coisas nunca vão melhorar, exceto para alguns, todos os outros terminarão seus dias beirando a miséria, longe do que poderia ser uma vida digna. E vida é uma vadia sem coração, uma condenação, um inferno por si só. Então, como infelizmente o suicídio é um pecado,  eu só queria fugir desse inferno inconsciente por uns três dias. 

X

A chuva é apenas uma breve pausa no sofrimento diário que é o calor infernal dos meses de agosto, setembro e que já entram outubro adiante. Mas com ela também vem a melancolia, algo de reflexivo, como se o perfume da terra molhada despertasse em nossa memória afetiva aquelas coisinhas que estavam lá no fundo do baú de nossas mentes. Mas esse tempo também coincide com o simbolismo das lágrimas. Assim como eu choro ao escrever essas palavras o céu também parece chorar, lamentar-se por toda miséria que há debaixo de suas gotas. Ou ele se contenta com isso? Seria o universo masoquista a ponto de deleitar-se com nossa infelicidade. A este ponto já não duvido mais de nada. Apenas caminho, e penso se é possível me afogar em uma dessas poças de água, uma vez que já estou me afogando nas minhas próprias angústias, como se elas fossem um mar de águas impetuosas, já me afogo nas inúmeras constatações de minha incompetência. E logo as gotas cessam de cair. É irônico, uma vez mais o destino brincar com a esperança das pessoas, tolas, que ao primeiro chapinhar das gotas no telhado seco e nos vidros quentes pelo sol, pensar que as coisas iriam melhorar quando, na realidade, vão continuar ruins, se não piorarem ainda mais...

X

Eu te amei, te amei de verdade, mais do que achei que seria capaz de amar novamente. Isso porque não era algo grandioso, no sentido de que movia minha vida ao redor disso, mas no sentido de que era fácil. Era fácil porque como nossa amizade veio antes eu não precisava fazer nada, simplesmente vinha naturalmente, e daí o sentimento nasceu, e permaneceu, natural. Mas eu não soube lidar quando vi que, não só meu sentimento era irrealizável como até mesmo a minha amizade já não significava nada pra você, e essa é uma constatação que me corta fazer, mas que precisa ser feita. E eu não posso mais voltar atrás, não seria capaz, é como a chuva que cai nesse momento, e que não pode voltar ao céu nesse mesmo instante. Só sei que eu amei, mas não foi suficiente, e agora acrescento mais nomes aquela lista de grandes amigos, a quem mais via, e quantos deles eu ainda verei todo dia e quantos já não verei mais. Dos meus defeitos, alguns serão sanados com o tempo, mesmo sendo o melhor que eu tinha a oferecer: minha capacidade de amar, que me foi tirada de mim. E quem diria, o homem mais apaixonado do mundo incapaz de amar por ter sido traído, machucado e esmagado. Agora não se derrama mais em lágrimas, mas apenas observa a chuva. 

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Companheiro

"Eu vejo tudo perfeitamente; existem duas situações possíveis - pode-se fazer isso ou aquilo. Minha opinião honesta e meu conselho amigável é este: faça ou não faça - você vai lamentar ambas as escolhas.” (Søren Kierkegaard)

Talvez seja o momento de assumir uma outra virada na vida, uma daquelas em que mudamos nossa forma de ver o mundo ao nosso redor, e aceitar uma mudança abrupta, ainda que venha de um lugar inesperado. Talvez seja a hora de aceitar, de uma vez por todas, a solidão, aquela sorte de todos os espíritos excepcionais, como sendo a única realidade permanente na minha vida. Seja na companhia de muitos ou na escuridão do meu quarto a solidão é a minha única companheira inseparável. E é ao lado dela, de capa negra e eu de terno, que assisto ao enterro da minha última quimera, da quimera que criei em minha mente como se fosse perfeita, mas ela também se foi e a solidão, no entanto, continua impassível ao meu lado. 

É a figura de um homem alto, impávido colosso, magro e uma capa esvoaçante de um tecido fino, quase transparente e ele mesmo parece estar sumindo no ar, ao mesmo tempo que sua presença é mais real do que as pedras toscas que há sob nossos pés. Uma brisa fresca sopra sobre nós, o cheiro da terra revolvida se levanta junto com um aroma de morte que vem do meu companheiro. Talvez seja a hora de aceitar que ele, e apenas ele, estará ao meu lado pra sempre. 

Não faz diferença, então, se eu me humilhar e voltar atrás ou continuar e ficar sozinho. Ambas situações terá como resultado a solidão, ambas terminará comigo sozinho, ainda que às vezes rodeado de pessoas. Então não há razão para me esforçar ainda mais, para correr atrás do que já foi perdido, para impedir que um prédio já demolido se caia. Não há como consertar um cristal quebrado. 

Um coro entoa "It all returns to nothing, It all comes tumbling down" como se fosse o coro de toda cristandade, mas aqui é toda humanidade que caminha para seu fim, e uma orquestra psicodélica me faz ter a ideia de que já se abriram os portões de Guf e que as almas estão se dirigindo para lá. É o fim, mas também é um recomeço. Não faz diferença, no entanto, pois enquanto um ciclo se acaba outro início se dá, automaticamente, com novas possibilidades abertas, um novo futuro. A chuva fininha, que nem molhou o chão direito mas já perfumou o ar com o cheiro de terra molhada é prova disso: ao fim da temporada da seca vem um pouco de alívio, para dar início a outra seca logo mais. 

"Tornei-me opróbrio para todos os meus adversários, espanto para os meus vizinhos e horror para os meus conhecidos; os que me veem na rua fogem de mim." (Sl 31)

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Certame

De novo eu vou partir do princípio escolástico da amizade, idem velle et idem nolle, querer as mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas como sendo o fundamento articulador de toda amizade, sendo aquelas construídas em cima de outros princípios, como a simples busca de fuga da solidão, como um arranjo que não pode se sustentar por tanto tempo. 

O Dilema do Ouriço ensina que precisamos sobreviver as dificuldades da proximidade e da distância se quisermos sobreviver, seja ao frio ou aos espinhos, mas a capacidade de adaptação é de grande importância. De qualquer forma pra isso exige uma decisão: aproximar-se e suportar os espinhos ou afastar-se e morrer no frio, ou o meio termo. 

Minha busca pela minha casta me indica que devo ir atrás dos valores dos Brahmin, valores eternos de superioridade intelectual e espiritual e isso, aliado a definição escolástica, me mostra que a situação atual da minha vida deve ser a de optar pela solidão, temporária, própria do estado intelectual em germe, até que eu encontre verdadeira companhia nessa lida. 

O medo da solidão é o que deve ser superado, em nome dos valores maiores aos quais almejo. 

Então, quanto a questão prática, o perdão, o suportar uma situação desconfortável, me parece que estaria forçando a me encaixar num lugar que, por definição, atrasaria minha busca de crescimento intelectual e espiritual, e eu quero crescer, sendo esse aliás meu único objetivo de vida. 

Racionalmente a resposta vem clara como a água de um lago límpido, mas subjetivamente é como uma forte correnteza por debaixo dessas águas claras. O fator determinante, portanto, é o da coragem. Terei coragem de dar esse passo sozinho, pois a vida de estudos é, acima de tudo pessoal, assim como a salvação da alma individual. Tudo depende, portanto, do que eu quero realmente, e acima de qualquer companhia ou riso, por mais prazerosos que sejam: eu desejo conhecer e, para isso, preciso me atentar apenas aquilo que diz respeito ao conhecimento, sem me deter a questões menores que me cegam e me desviam do sentido do dever. 

Os laços que devo criar são laços firmes pautados na verdadeira virtude, como São Bento e Santa Escolástica, São Francisco e Santa Clara, não relações humanas tão superficiais que se deixam desmoronar por namoros e intrigas. O que devo almejar é o melhor que minha alma pode alcançar, não apenas aquilo que as porções inferiores da minha alma, desejam. 

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Aforismos e Pequenas Poesias II

Anoiteceu mais uma vez e, com o cair do véu da escuridão, me vem aquela esperança, aquela vontade na realidade, de que eles venham e de tudo não tenha passado de um sonho. Mas não foi um sonho e o anoitecer de hoje significa que terei de suportar mais pesadelos. 

O medo me faz querer voltar atrás, mas a dor, esse sentimento de traição que ainda trago comigo, não me deixa fazer isso. E eu então espero aqui, pela solidão e pelo desespero que, logo mais, vai me dominar como a escuridão apagou a claridade do sol e inundou tudo de tristeza e desesperança. Eu não consigo voltar atrás, talvez por orgulho, mas também não quero ficar sozinho, mas parece-me que ficar sozinho é a minha condenação. Não é o que eu queria, eu queria que nada disso fosse necessário, eu queria não me sentir assim, mas cada vez que penso no assunto sinto uma raiva crescente no meu peito, e essa raiva transforma meu sangue em veneno, coisa que eu não sentia há muito tempo. 

Racionalmente não deveria me sentir assim, claro, a vida continua, ciclos chegam ao fim e novos recomeçam, mas dói, dói demais deixar uma amizade ir assim, como fumaça se perdendo ao vento por entre os dedos. É realmente uma grande dor, e olhar pro céu escuro, sem estrelas pois as luzes da cidade as ofuscaram, me faz sentir ainda pior, como se esse véu caísse sobre mim, me sufocando, me oprimindo como um grande peso de metal, ao ponto de me esmagar completamente. 

De hoje em diante as noites serão ainda mais difíceis, oficialmente cada vez mais solitárias, até que eu mergulhe lentamente na completa loucura e demência por causa do desespero que todas as noites vem me visitar. 

X

Fico me perguntando se deveria abandonar o orgulho, se deveria voltar atrás, mas aí toda uma miríade de sentimentos vêm a superfície e eu me perco em pensamentos. Queria poder me inspirar completamente nos escolásticos e buscar amizade apenas com aqueles que buscam as mesmas coisas e que têm os mesmos valores que eu, mas o medo da solidão me impede de fazer isso, e esse é um medo que eu não queria ter, queria poder seguir a nobre trilha intelectual e assim me satisfazer, sem maiores demandas, sem a necessidade da presença do outro abafando os gritos desesperados do meu interior ferido. É uma escolha complicada, demasiado pesada para minha mente distorcida pelo medo das noites escuras de pura aridez espiritual. 

X

Olhar para dentro de si causa medo
Vejo demônios que lutam para sair 
e monstros que desejam entrar
vejo uma floresta escura 
pululante de criaturas malignas

Olhar para dentro de mim
é contemplar um imenso abismo
sem fim, mais escuro que a noite
e ver que nas suas profundezas há coisas que
mesmo estando em mim eu ignoro

Há uma criança chorando, 
um jovem tentando se equilibrar
há uma sombra se aproximando
há uma voz se distanciando
e um lobo rodeando

X

Cada dia sinto mais o peso do vício, nos ansiolíticos, que desejo a todo momento para fugir cada vez mais e mais do mundo que me cerca. Ao adquirir consciência acordando já me sinto crescer a vontade de voltar a perder a consciência, e muitas vezes apenas fechar os olhos e me obrigar a dormir não é suficiente. Eu desejo o torpor que a morfina me dá, o silêncio profundo e acolhedor do sono benzodiazepínico, aquela escuridão perfeita que faz as horas voarem sem os monstros do mundo real, tão diferente da escuridão que me assusta com os monstros reais. 

X

O amanhecer não se dá como o acordar, preguiçosamente voltando a consciência, ainda meio lento pela dormição. O sol vem com toda a força e instaura um verdadeiro império infernal onde o calor faz até o concreto se partir em lascas, a brisa fresca quase sem força nenhuma soprando sobre os corpos que andam empurrados pelo calor, essa claridade maldita deixando tudo desconfortável demais para se conseguir simplesmente fugir. Odeio essa época do ano, porque não há como mudar o calor, assim como odeio as situações em que não temos o menor controle sobre elas, ficando então a mercê do deus sol, do destino e das fatalidades que ele traz. 

X

Não sei o que tem sido mais dolorido, e o que tem demorado mais, se são os dias infindáveis de tédio e calor ou as noites de solidão e pesadelos. Se, antes, o dia era como um refúgio de todo o terror noturno, agora é, antes disso, uma longa tortura. O tempo passa de modo preguiçoso, como se quisesse que sentíssemos na pele cada instante desse maldito calor, como se quisesse que cada pequeno raio de sol filho da puta penetrasse na nossa pele causando desconforto e uma vontade demente de se atirar de uma ponte num lago congelado. E tudo é maximizado pra incomodar: o barulho inconveniente dos vizinhos, a louça que se acumula na pia, o chão empoeirado e os móveis cobertos por uma camada de gordura como se eles mesmos transpirassem, e como se até a madeira se incomodasse com tanto calor. 

sábado, 2 de outubro de 2021

Cristal

Quando um cristal se quebra não há como consertar. A dor que eu sinto por ter sido trocado é uma dor que só eu entendo e que, como já se provou, não pode ser ensinada aos outros, é minha dor, minha sina, é o resultado da minha roda da fortuna, que gira e gira e torna a lançar a espada de aço frio do destino em meu coração, rasgando não apenas as fibras cardíacas, mas também o meu ser, quebrando minha consciência. 

Minha dor não pode ser descrita, e eu já percebi que, quando dita, volta para mim em palavras duras, duras como o mármore, contra o qual bato com violência na tentativa de sentir um último abraço, aquele abraço que um dia eu defini como sendo o melhor lugar do mundo. 

Mas o cristal se quebrou, e a sensação que tenho de ter sido traído e abandonado, não vai passar, mesmo quando sinto vontade de me humilhar novamente, pedir perdão por sentir demais, apenas pra sentir aquele calor novamente, nos amplexos do amado. Mas eu não posso fazer isso. Não posso me humilhar mais uma vez dessa forma, quando minha presença claramente não é bem vinda, não é mais querida. Eu não posso mais. 

Eu não quero mais abraço pois os braços que me rodearam agora me lançam pedras, não quero mais beijos pois são esses lábios que escarram na minha boca, não quero mais proximidade , não quero mais essa intimidade, que parece divina na primeira dor mas, quando realmente se mostra, é causa de dor e sofrimento. Não quero mais tornar o outro tão importante pra mim a ponto de deixar que ele me machuque desse jeito mais uma vez.

Partilhou da minha comida, do meu afeto mais próximo, dos meus momentos mais íntimos e, no fim, me golpeou pelas costas, não com um simples punhal mas com uma lança, mais destrutiva que a própria Gungnir, mas que não destruiu reinos e sim apenas o meu ser, quem eu era e que, depois disso, nunca mais tornarei a ser. 

E enquanto isso a minha vida desmorona em minha casa. Meus pais dormindo em quartos separados já não se suportam mais. A infidelidade pôs fim a qualquer rastro de sentimento que um dia possa ter existido. A situação já não é mais viável. Mas eu não consigo reagir. Parece que o estoicismo se abateu sobre mim com a dor que já sinto, também por conta das obrigações na igreja, meu corpo se recusando a ceder sob outra dor, apenas observo, com olhos opacos e vazios, o mundo pegar fogo, sem reagir. 

Um cristal quebrou, e não há como consertar. Tudo desmorona. Tudo retorna ao nada.