domingo, 17 de outubro de 2021

Clamor

Mas aqui nesse mundo, o mundo real, o amor não existe mais, as cenas fofas e os sorrisos são mentiras que criamos pra tornar mais fáceis a nossa existência nessa terra. E isso nem sempre funciona. Quando uma voz espreita no profundo do seu quase intangível, nos abismos da sua consciência e te conta a verdade as mentiras não fazem mais sentido. E então, ao contemplar o mundo verdadeiro, tem-se a constatação: a vida é inviável.

Gemendo tal qual réu ante o tribunal, a culpa me tornando rubra a face eu choro em horror, prostrado, clamando: e eu, pobre, que farei, que patrono invocarei quando tudo já está entregue diante do trono? Clamo por libertação. Lacrimoso aquele dia em que das cinzas ressurgia o homem, o réu para fazer sua última súplica, a prece final: 

Libertai-me, ó demiurgo, libertai-me ó mundo, de sua ânsia destruidora de carnes e devoradora de ossos, que consome os seres em desespero até o tutano. Libertai-me, deixai-me ir em frente. Deixai agora vosso servo ir em paz, pois meus olhos não vendo mais a face da salvação antevê a destruição de todas as nações. 

Me liberte, mãe, me deixe ir, me deixe morrer, sem dor, uma noite em que adormeça e que não terá fim, sem a tristeza da clara luz do sol invadir o meu quarto na manhã seguinte mas banhando não meu corpo ainda sonolento, mas tocando um corpo onde já não há vida, uma casca vazia, um corpo frígido. 

Me deixe ir, deixe que esse seja meu último sono, não me permitas acordar. Consegue entender o desespero em minhas palavras ao pedir essas coisas? Eu não quero voltar atrás, não quero regredir ao sub-humano, não quero ser um peso para vocês, não quero ser um incômodo. Por isso eu deveria partir. Não tenho missão a cumprir, ninguém depende de mim. Até meus amigos me abandonaram, tornei-me para eles motivo de riso e horror. Seria melhor que eu simplesmente desaparecesse não é? Você sabe que é verdade, não há porque insistir num ser que já atingiu seu limite, um limite medíocre, incapaz de realizar qualquer coisa.

É só o que peço: deixe-me ir, preciso andar, vou por aí, a procurar a verdadeira paz. Paz que não encontrei nesse mundo senão num arremedo, tentativas falhas. O que estou pedindo, com todas as letras mãe, é que me deixe morrer. 

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