quarta-feira, 27 de outubro de 2021

O Pelicano

Gosto muito dos sinais que prenunciam a chuva, sejam os trovões ou os ventos fortes que balançam as folhas das árvores. Num dia como hoje, em que o céu estava claro, o calor no extremo de sua ousadia, castigando a todos os seres inferiores ao seu sol e, de repente, as coisas vão se transformando, a temperatura diminuindo e eles, os trovões, me lembrando o soar das trombetas divinas no Dies Irae de Verdi, um som magnânimo, colossal, que antecede um grande acontecimento, seja a fala do grande Rei ou o cair das águas que purificam essa terra de males. Depois de soarem por todos os cantos ela finalmente aparece, gloriosa em sua sinfonia do caos: a chuva e toda sua plenitude, graça, alívio, tormenta que antecede o apocalipse. 

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Somos feitos de contradições, e isso nos diferencia dos animais. Nossas ambivalências não encontram par no mundo natural. Uma árvore é uma árvore, ela não questiona a própria existência, ela não nega seu ser ao mesmo tempo em que busca incessantemente uma razão para existir. Tampouco um urso o faz, ele simplesmente é. Uma contradição a mais que notei em mim foi percebida durante uma aula de filosofia, a saber sobre o existencialismo, é o seguinte: ao mesmo tempo que eu duvido do meu eu a quase todo momento, questionando a verdade da existência, eu encontrei na liturgia romana um momento onde essas perguntas todas se calam, sobrando apenas o som dos sinos e as palavras do sacerdote. Daqui do meu lugar eu olho aquele altar e não preciso fazer nenhum esforço de imaginação sobre razões de existência. Quando retorno a minha casa, no escuro de minha alcova as dúvidas ressurgem. Concluo, portanto, que só naquele altar eu encontro uma razão para o meu ser. Isso não exclui todas as outras questões, mas talvez me sugira um norte para as respostas que, no meu âmago, eu busco com tamanho desespero. Talvez todas as perguntas, na verdade, percam a importância, quando eu digo enquanto caminho igreja a dentro: Introibo ad altare Dei...

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Já fazia algum tempo que me sentia assim, carente, dependente de um abraço, de um beijo. Já fazia algum tempo que me sentia necessitado de um carinho, uma demonstração de afeto. Mas eu disse que daria um tempo, que tentaria me compreender melhor primeiro, antes de buscar outra tragédia amorosa, eu disse que seria assim, mas não respondo pela parte do meu ser que deseja a presença do outro, ainda que esporadicamente e não com a mesma intensidade de antes. Antes eu não conseguia me reconhecer se não fosse no outro, hoje eu só quero um abraço. 

Ao mesmo tempo experimento um completo horror à presença do outro. Não quero sentir de novo a proximidade pois assim não sinto a traição que se segue. A carência que sinto é acompanhada de um horror pelo outro, o outro que é dor, que é inferno, que é punhal contra meu peito ardente. É mais uma das ambivalências, o querer sem querer, um não sei quê que pulula em meu peito dizendo que, embora seja bom ter alguém, estar assim sozinho é mais seguro. Criei um muro ao redor do meu coração, e mesmo me sentindo sozinho ainda acho que assim é melhor. 

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Certas experiências modificam completamente o panorama de nossas ideias, especialmente as que envolvem contato com dramas humanos profundos e verdadeiros, nos mostrando um mundo maior que a nossa mente costuma conceber e com isso enriquecendo o nosso senso das proporções: são os dramas humanos que dão o sentido da vida. Digo sentido como algo que tem a capacidade de transformar, de moldar, de dar novos significados as experiências comuns do cotidiano.

Tive contato hoje com uma mãe batalhadora, uma mulher que dá o sangue pelos seus filhos, tal qual o pelicano que se derrama arrancando da própria carne para alimentar aos seus com seu sangue. Ela, no entanto, estava prestes a colapsar e, de fato, desmoronou na minha frente. 

Ali eu percebi o peso que a maternidade tem na vida de uma mulher e, em choque, eu percebi um pouco do peso que minha mãe carrega por minha causa. Foi um tremendo golpe, e estou até agora sem palavras, com lágrimas escorrendo e sem saber como reagir. 

É um peso que transcende todo e qualquer sofrimento pelo qual eu já passei ou possa vir a passar, é o peso de uma vida que se abandonou em função dos seus, é o peso de quem vivendo já não vive mais senão para os seus, e morrendo já não morre pelos seus também, não desistindo muitas vezes porque alguém depende de você. 

É belo, é amor verdadeiro, mas também é brutal, como a imagem do pelicano. É também uma imagem da realidade. Assim como o bebê cresce se alimentando junto com a mãe passamos boa parte da vida na mesma relação, quase chegando ao nível parasitário. Me preocupo quando percebo o quão pesado pode ser o fardo que eu sou e, paralisado ante a contemplação do meu próprio obelisco eu me desespero em ver o quão distante estou de mudar essa realidade. 

Queria poder dar uma finalização bonita pra esse texto mas, assim como a realidade que ele fala, a verdade é crua e nem sempre pode ser adornada de bela métrica. O peso é real, e sua imagem também, assim como todo o sangue e suor derramado, por todas as mães do mundo em favor de seus filhos. 

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