domingo, 24 de outubro de 2021

Uma Tarde

O ventilador gira, lançando uma baforada de ar quente sobre mim. É uma tarde preguiçosa, minha cama é um lugar incômodo com todo esse calor, meu corpo suando e incomodando nos lugares em que o tecido toca. O tempo está abafado, e esses dias têm sido assim antes das chuvas que sempre vêm com muita força, vejo pelas notícias de casas destelhadas e árvores caídas que arrancam fios da iluminação pública por aí. Sempre antes da chuva fica abafado desse jeito, o calor praticamente carregando as pessoas por aí, entortando pedaços de ferro a olho nu, isso é um absurdo. Me sinto preguiçoso junto com o dia, e já devia estar encaixotando as coisas mas ainda não consegui encontrar disposição pra isso. 

Parece que dar início a arrumar as coisas pra mudança torna tudo mais real, e eu ainda não estou pronto. Mas a coisa já é real, as caixas já estão aqui, a mudança já começou. Só não começou ainda dentro de mim. Aqui dentro está uma bagunça só, e eu sinto que estou cada dia mais sugando pouco a pouco a vida dos meus pais, como um parasita que se alimenta da vida do hospedeiro até que ele morra. Eu vejo isso nas rugas e na pele flácida deles, no olhas cabisbaixo de quem já cansou de lutar mas ainda não pode parar. E eu aqui deitado, incomodado com o calor, com a mente paralisada sem saber como fazer para ajudar. 

Podia começar a me preparar para um concurso, deveria, mas é isso que eu quero? Bem, me parece a única oportunidade de assumir o posto que almejo de responsabilidade aqui dentro. Mas algo ainda me paralisa e me faz ficar aqui, incomodado com o tecido em contato com minha pele suada. 

Preciso cantar na missa de amanhã, a pasta de músicas está preparada e eu ensaiei nos últimos dois dias, e tenho certeza que minha companheira também, mas eu vou ter forças pra levantar e ir até lá? Meu corpo pesa como chumbo, como posso ficar de pé e cantar pra todas aquelas pessoas? De onde elas tiraram força pra estarem ali? De onde todo mundo tira forças? Onde foi parar a minha força?

Olho pra cima e vejo as folhas de um mamoeiro se agitarem, mas o céu está claro, de um azul brilhante, mesmo sendo fim de tarde, se for chover será só no meio da noite, ainda vamos ter de suportar o calor mais um pouco. O ventilador gira sem parar lançando o ar quente e pesado sobre mim. Queria ouvir a chuva, talvez me ajudasse mas, além da minha música (algumas sonatas pra piano obras pra coro e orquestra) tudo o que eu escuto é o som alto de algum vizinho que deve estar confraternizando com os amigos, a música meio disforme pelo espaço e pela minha própria música. 

Às vezes eu saio do quarto, dou uma volta pela casa e volto. Não me sinto bem em nenhum lugar, nem aqui, embora aqui ao menos seja mais cômodo pela música. Me sinto deslocado na minha própria casa, no meu corpo, na minha vida. E enquanto isso o ventilador gira, e um vício se torna o melhor momento do meu dia. Quando consigo me desligar um pouco, fugir um pouco, sentir o vento quente soprando sobre meu corpo. O ventilado gira e eu me pergunto: que é a vida? 

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