sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O véu do céu

Um poeta como eu encontra inspiração até mesmo quando não o quer. Saía de casa há alguns minutos, para uma ida rápida a farmácia, e por acaso olhei para o céu enquanto passava a chave no portão. Pronto, estava dada a inspiração.

O céu estava de um azul profundo, mais escuro conforme se aproximava a linha do horizonte e o centro, o lugar para onde olhava ao erguer a cabeça, parecia um veludo salpicado de estrelas. Os pontinhos brilhantes se misturavam com as nuvens compridas, que por sua vez estavam de um roxo escuro. Que belo quadro esse, certamente pintado pelos anjos, servos do deus do Amor que especialmente inspirados pela sua divindade o pintaram como um presente a humanidade. Esse véu do céu me encantou, e meus olhos brilharam! O azul está entre minhas cores favoritas, e tem um significado especial para mim. 

O azul é a cor favorita de uma pessoa, e talvez por isso eu disse que não queria essa inspiração. Ao menos não essa que me fez pensar nele no exato momento em que elevei meus olhos ao céu. Onde será que ele está, embaixo desse mesmo véu? 

Caminha por alguma estrada de terra com sua bicicleta, enquanto sente a brisa fria em seu rosto, brisa que ele tanto ama? Ou será que está em aula, com a mente distante de mim e o olhar fixo em alguma garota? 

Não há como controlar o fluxo de pensamentos que vem dessa paisagem. A valsa das flores que aleatoriamente começou a tocar também não ajuda. O player precisava indicar uma música romântica logo agora? Mas sob o compasso dessa dança o meu coração pula, e meus olhos se fecham enquanto suspiro, suspiro de amor, e sorrio, mesmo sabendo que não há motivos para sorrir se ainda penso nele. 

Mas de qualquer forma o céu tinha uma beleza ímpar, e isso aqueceu meu coração, e independentemente do calor que está fazendo isso é uma coisa boa!

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Do bom senso que se foi

O mundo está cheio de pessoas baixas. O mundo está cheio de pessoas idiotas e eu estou cercado por elas. A cada dia eu vejo mais gente se afundando em suas próprias opiniões estúpidas e eu, que tenho convicções, sendo obrigado a fingir que nada disso me atinge profundamente, para não ferir o orgulho delicado de almas tão frágeis. 

Onde foi parar o bom senso? Se perdeu em meio ao concreto das fundações de nossas relações, pautadas no egoísmo e no puro desejo de não conhecer nada? Onde foi parar o bom gosto, onde foi parar o belo, onde foi parar o justo? Parecem ter se perdido em meios ao livros de história da arte, que trazem estampadas em suas páginas o retrato de um povo distante, que um dia foi capaz de amar o que é bom, o que é belo e o que é justo, mas que hoje ama apenas a miséria da própria humanidade.

A lixeira da podridão humana está estampada nas paredes dos museus como se fosse o que de melhor temos a oferecer. E talvez não seja o melhor, mas é provável que seja a única coisa que temos a oferecer. A voz do homem é mais importante que as cores que Deus pintou no mundo.  A confusão que veio do homem que se colocou no lugar de Deus e nem percebeu é notável. O sorriso de descaso é a véspera do escarro. A mão que te afaga é a mesma que apedreja, disse Augusto dos Anjos, e até ele se colocou no lugar de Deus. Os poetas foram os primeiros a colocarem suas palavras no lugar de Deus, fazendo de seu discurso a única ordem da existência. A eles se seguiram os cientistas, os políticos, e por fim, o homem mais baixo e comum, o provinciano, que pensa que o mundo se mede pela sua província, mas que Deus se mede pelos padrões de sua mente distorcida.

O homem não é mais capaz de levantar o olhar ao seu redor e perceber que deve voltar-se para o céu que o horizonte nos aponta. O homem abaixa sua cabeça para assim contemplar os próprios pés, e assim saber para onde vai. Vai para longe de tudo quanto deveria se aproximar! E se assim se esvaziam, e no vazio se angustiam, disse Pe. Zezinho, mas até ele colocou as próprias opiniões no lugar de Deus.

Eu vejo isso, e isso me revolta, me faz subir o sangue. Mas eu vejo que as coisas que eu digo, são como as deles, e que coloquei os meus pecados no lugar de Deus. Não tenho o direito de condenar a ninguém, antes disso, tenho de lutar para não ser eu mesmo condenado.

Não me refiro a condenação dos homens, oh não, dessa não poderei escapar. Desses eu serei presa fácil. Dos pobres que não enxergam um palmo do mundo a sua frente, desses eu ouvirei a risada, rindo-se de minha busca pela verdade, mas tudo bem, em vista do mundo que agora se abre para mim sua risada não passa de palha a queimar no vento, logo se esvai.

Esse pensamento faz com que eu me acalme, e isso é bom. Fecho os olhos, contemplo paisagens distintas, medito uma ou outra obra de fato digna de apreciação e de atenção, coisa que não posso dizer das pessoas boçais que me cercam. As vezes funciona, mas admito ainda distante de uma meditação eficiente. O meu sangue ferve, e eu sonho com cabeças rolando ante meus pés. O silêncio daqueles que um dia me feriram com palavras, suas adagas afiadas.

O que me consola é saber que buscarei o que sonho almejar, enquanto eles caminham para um morte silenciosa e que em nada contribuirá para o mundo senão com o peso de seus cadáveres podres, um simbolo perfeito de suas existências podres, provocando em mim uma convalescença leve e demente em fazer xixi em seus túmulos. 

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Resenha - A Brief Inquiry Into Online Relationships

O texto a seguir é a resenha, ou quase isso, de um álbum. Não é bem uma resenha porque eu coloquei aqui mais do que a minha opinião, mas fiz uma incursão, uma imersão no universo que a música me propôs. Talvez seja mais correto dizer que o que eu escrevi foi o registro da experiência de apreciação de uma obra, sim, isso me agrada mais. Como o texto foi copiado de uma conversa de WhatsApp pode parecer que as vezes estou falando com alguém, mas é porque de fato estava, isso é só pra justificar uma possível aura esquizofrênica aqui e ali. Enfim, é isso:

Sobre a obra trata-se do álbum A Brief Inquiry Into Online Relationships da banda inglesa The 1975. 

Quanto a intro e a primeira faixa eu gostei muito. Realmente a guitarra deu um certo desconforto. Mas eu teria achado isso se você não tivesse comentado? Nunca saberemos. De qualquer forma gostei da sensação nostálgica que senti com a melodia, aliás, senti que essa será a proposta aqui. Foi uma viagem a uma noite escura, mas brilhante pelas luzes dos postes na estrada e barulhenta pelo som do carro que corria estado a fora. Sabe quando estamos com alguém que nos faz perder a noção do tempo e do espaço? Isso.

Se a primeira foi uma viagem na estrada a segunda quase foi uma viagem lisérgica. Mas não chegou a tanto. Diria que é uma viagem na cerveja, quando o álcool entorpece as extremidades, e o riso vem espontaneamente sozinho. Gosto disso, gosto como uma companhia pode nos fazer sentir bêbados assim, e posso dizer que também gosto de lembrar que já me senti assim, o que acho que foi a impressão principal aqui.

How to Draw/Pretrichor - Também ficou no quase lisérgico, e eu estou encarando isso como um cenário. Agora estamos parados numa caminhonete, em algum lugar, deitados. As estrelas nos levam ainda mais longe, o que é isso que vagamente se delimita no horizonte? Imagens do passado, sonhos do futuro, se mesclam misturando suas cores. Lágrimas escorrem, a batida disfarça os gritos que vem da verdade pintada no coração. As mentiras não podem se repetir.

Eu comecei a ler agora o que você mandou, e a primeira linha de Love It If We Made It confirma que acertei em minha interpretação.

A verdade que se revelou a nós na música anterior agora se deixou marcar profundamente em nosso corpo. A agulha da heroína é uma boa imagem pra mostrar a verdade que entra e que transforma. E qual a verdade? Olhamos ao redor e vermos que estamos próximos uns dos outros, mas isso só serve pra mostrar o quanto somos ruins, de que adianta contemplar de perto um quadro que só nos causa arrepios? Assim é se aproximar do outro. Seria um sonho conseguir ver algo de bom não seria? Eu adoraria se conseguíssemos.

By My Mistake mostra a solidão. Alguém se sentou na traseira na camionete, pegou o violão e olhando pra fogueira pensou nos erros que cometeu, das lembranças boas que teve ao lado de alguém. Ele lamenta pelo futuro que foi apagado pelos seus erros, e se entristece até pelas piadas que não mais vai ouvir. 

A ironia está na primeira frase e em toda a aura da faixa seguinte, Sincerity Is Scary. Gostei da forma como o instrumental nos deu a sensação de uma cara compreensão. É uma pessoa que com humor ri das próprias desgraças. Mostra um grau elevado de dor, o homem que já não vê saída senão no desespero que é usar a própria desesperança como força de seus objetivos. 

I Like America & America Like Me - Voltamos a viagem lisérgica, já beirando a sobriedade quem sabe, ou a completa loucura. É difícil de precisar se estamos drogados, loucos, desesperados ou se isso já é a antessala da morte, cujo contemplar nos transcende a capacidade descritiva por meio de meras palavras.

Já não sabemos mais quem somos, o que somos. Isso é fogo? Eu sou só um mentiroso? As vezes os conceitos são imprecisos demais pra mostrar qualquer coisa além da completa falta de compreensão do mundo que nos cerca. 

Agora percebemos que até aqui a viagem que fizemos foi um caminhar para a morte. Já estava prenunciado? Estávamos num sonho, mas não um sonho qualquer, um sonho do passado que se mesclou num sonho do futuro no prólogo da morte. Inception. Sozinho em seu quarto, abandonado pelos seus amigos imaginários (online) ele morreu, na parte mais afastada do mundo.

De que adiantou tudo isso? De que adianta ter a mente aberta ao mundo, se ninguém pode compreendê-la? De que adiantou você ter compartilhado com o mundo todo se isso ainda não nos faz entender o que se passa dentro da sua mente? 

Ponto pacífico que até aqui compartilhamos as impressões sobre um mundo, com um mundo que não pode nos entender. A percepção dessa verdade se culminou nessa faixa It's Not Living (If It's Not With You). Ele disse com todas as letras o que antes estava dado subjetivamente ma non troppo. Me fez questionar todo o tempo que fiquei aqui, de frente pra uma tela com a figura do mar, enquanto as ondas se quebravam as minhas costas.

Nem todos morreram, alguns ainda lutam, mesmo que isso signifique que outros ainda cairão e que teremos de assistir. Alguns ainda tem de ficar de pé. Quantas pessoas travam suas batalhas diárias, à beira da desistência ou da morte, à beira da derrota. Muito embora seja um tipo de canção de reabilitação, Surrounded by Heads and Bodies mostra o campo de batalha do ponto de vista da fraqueza.

Que bela imagem Mine nos mostra. Um bar, na madrugada vazia, onde o som nos remete a realidades distantes, quase etéreas. As notificações chegam, o passado volta no acender de luzes de um celular. A beira da praia o ar salgado entra pela porta e se mistura com o gosto amargo da bebida abandonada. O sax nos faz derramar uma lágrima, a lembrança nos faz desejar jogar longe o celular, ou chorar amarga e silenciosamente enquanto na superfície a expressão séria contempla a escuridão de um ponto qualquer da parede.

Somos levados logo a próxima parada com I Couldn't Be More in Love. Alguém subiu no palco, e com extrema destreza disse em voz alta tudo o que estávamos escondendo no íntimo. A bebida acabou, a alegria também. O gosto amargo se mescla ao sangue. As notificações acabaram. Só nos resta fechar os olhos e assentir com o que ouvimos. Mas e então, o que fazer com esses sentimentos que há em nós?

E chega a hora de ir embora. Já vimos o quanto alguém destruiu a si mesmo iludindo-se com a sensação de aproximação que não aproxima realmente. Já vimos alguém lutar apenas com a força de um espírito partido. E nos perguntamos se queremos seguir o mesmo caminho, ou se não, que caminho queremos? As vezes só queremos morrer. É o que a constatação desse mundo frio nos faz desejar. O dia amanhe, e o sol quente aos poucos inunda o bar em que dormimos. Na rua, sentimos o calor, mas nada que possa voltar a aquecer a alma. E então há uma batalha, a última, entre a escuridão que brota no íntimo e a esperança que nos é impelida pelo sol. Qual haverá de ganhar?

The end, I guess.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Sacrifícios e desejos

Vamos falar sobre a insanidade nossa de cada dia? Sobre isto que nos foz olhar ao redor e perguntar se todos que nos cercam estão loucos, ou se na impossibilidade desta, os loucos seriam nós?

Eu vejo o quanto me distancio das pessoas, mesmo daquelas que sou mais próximo, e a cada dia parece que estamos em planos de pensamento completamente distintos. Enquanto eu passo horas e horas animado com uma aula sobre as Categorias de Aristóteles, as operações do intelecto e uma crítica a ciência moderna, vejo que não tenho com quem partilhar as experiências que aos poucos vou adquirindo. E se compartilho de alguma forma das descobertas que fiz, seja pelo estudo aplicado ou pela mera observação, sou tomado como louco e potencialmente ofensivo. A convivência com os outros me obriga a sacrificar o que há de mais especial em mim, e como não posso fazê-lo me obriga ao menos a supressão do que sou e de quem sou no âmbito público, para então ser eu mesmo apenas quando outros não estiverem por perto.

A incapacidade de comunicação, a insuficiência de linguagem, o inferno são os outros. Cada vez mais essas expressões se deixam profundamente me meu ser, e cada vez mais a solidão deixa de ser uma inimiga assustadora, se tornando lentamente numa amiga, a única capaz de compreender o que eu quero. 

Não se pode fazer omelete sem quebrar alguns ovos. O progresso não é obtido sem algum tipo de sacrifício. Para obter algo, outra coisa de valor equivalente deve ser oferecido. Mas como fazer pra calcular o que vale a pena ser sacrificado pelo que vale ser conquistado? 

Talvez eu esteja na antesala da questão ética mais antiga dos homens: o que me é permitido e o que me convém? Pra ser sincero não sei se essa é bem a questão essencial para mim. Indo um pouco mais fundo no meu pensamento percebo que a pergunta verdadeira é: o que eu quero para mim? 

As vezes, quando fico absorto numa aula ou leitura, sinto que desejo a vida intelectual, e que anseio o conhecimento mais do que a qualquer outra coisa. A sensação de compreender, ou de me deparar com uma questão que pode render anos de investigação me deixam excitado antes as possibilidades. Elas me deixam perplexo, o que, segundo Aristóteles, é o primeiro passo pro conhecimento. 

Mas ao mesmo tempo eu me vejo naquele cenário, onde o mundo vazio e sem ninguém é meu maior pesadelo. Esse cenário de horror me faz buscar uma companhia humana, alguém que nesse mundo frio possa me oferecer o calor de sua companhia. Mas essa companhia é feita não sem muitos espinhos, e a dor me faz querer o afastamento, que por sua vez me coloca novamente ante ao conhecimento que posso adquirir sozinho. Me sinto preso no ciclo infernal, no ourobouros do meu peito. 

Se fechar os olhos e pensar no que desejo, às vezes quero uma coisa, e às vezes quero outras. Infelizmente essa dualidade ainda batalha ferozmente dentro de mim, como dois animais brigando por um pedaço de carne. 

Desejo a sabedoria do céu ou a companhia da terra? Busco no campo a força merecida ou no alto a sabedoria da vida? 

domingo, 25 de novembro de 2018

Laranja

Nós andamos com nossos ombros lado a lado
Rindo de coisas que não importavam enquanto olhávamos adiante para o mesmo sonho
Se eu escutar cuidadosamente, ainda posso ouvi-la
Sua voz, tingindo a cidade de laranja

Quando você não está por perto, fico tão entendiado
Mas quando digo que estou solitário, você simplesmente ri de mim
Eu só fico conferindo as coisas que ainda tenho
Que brilham reluzentes e nunca desaparecerem

Como o céu depois que a chuva passa... como se limpasse o coração
Me lembro do seu sorriso; ele aparece em meus pensamentos e não consigo deixar de sorrir
Certamente, assim como éramos naquele dia... como crianças inocentes
Vamos correr através das estações se passando, vendo cada um dos nossos muitos amanhãs

Sempre que eu estava sozinho e começava a me sentir incomodado
Em noites que eu não queria dormir, nós ficávamos conversando

Me pergunto para onde você olhará a partir de agora
E o que eu vou ver daqui
Vou tentar confiar minhas lágrimas
A esta cidade onde o sol poente tinge tudo de laranja

Esse único amor nasceu em meio a milhões de raios de luz
Mesmo que você nunca mude... mesmo que você acabe mudando... você é você, então não estou preocupado
Algum dia, nós dois vamos virar adultos e conhecer pessoas maravilhosas
Neste momento, espero que consigamos trazer nossas famílias insubstituíveis e nos encontrar aqui novamente

Como o céu depois que a chuva passa... como se limpasse seu coração
Me lembro do seu sorriso; ele aparece em meus pensamentos e não consigo não sorrir
Esse único amor nasceu em meio a milhões de raios de luz
Nós corremos através das estações se passando, vendo cada um dos nossos muitos amanhãs
Escolhendo de cada um de nossos muitos sonhos

(Tradução de ORANGE do 7!! Seven Oops)

Um novo lugar

Ah o cansaço, nem mais pergunta se pode e já vai entrando em minha vida, como um velho conhecido. Já se deita em minha cama, e me impede de levantar antes da completa recuperação. Acontece que meu cansaço físico não pode passar enquanto o cansaço mental não se for, e esse meus amigos, ah, esse parece que nunca vai embora. 

Claro que os longos momentos deitado são uma fonte rica de reflexões, mesmo quando o que eu mais queria era que não o fosse, afinal, eu só queria descansar. 

Me recordo de um momento de descontração ontem, em meio um compromisso e outro. Consegui deitar por alguns minutos depois de um banho quente e ficar sentindo a brisa fria da chuva pela janela, enquanto ouvia uma playlist especial. Fechei os olhos e minha mente estava em paz. A imagem mental de uma praia num dia nublado, mas não triste, apenas tranquilo, sem a força da tempestade e a realeza do sol. 

Esse momento se rompeu com a chegada de um certo alguém, que por alguns instantes fez com que eu me sentisse bem. Ele ficou ali, com o violão de nosso amigo, arriscando algumas notas. Reconheci uma música ou duas, e tentamos cantar juntos algumas vezes. Eu fechei os olhos, e a paisagem continuou, bela e intacta. 

Mas tudo isso mudou com a adição de uma terceira figura, e depois uma quarta, e depois outra e mais outra... E a minha presença desapareceu. Em uma noite a minha história se repetiu, minha figura se apagou. Mas isso foi um erro de raciocínio. Minha figura não se apagou, ao menos não completamente, mas foi ele que deixou de vê-la, e eu por pautar minha percepção na dele, também deixei de perceber. 

Os outros me mostraram que era diferente. Eu continuava existindo, e continuava sendo importante pra eles, ainda que não o fosse pra ele. Qual é o meu lugar? Eu me localizei em relação a ele, e por isso estou sempre no canto, à margem, mas e quando os outros me mostram que meu lugar é ao lado de todos, e não atrás como ele me mostra ser? 

Isso revela que preciso mudar a forma como me vejo em relação ao mundo que me cerca. 

E assim termina a percepção de hoje, seca como uma folha que caiu no chão e se quebrou, mas que um dia se transformará em outra vida, crescendo novamente e se tornando ainda maior do que o que era. 

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Com carinho, Biel

Minha mente não quer se concentrar em nada. Passei o dia inteiro procrastinando em meio ao caos, sem conseguir fazer isso ou aquilo direito. Passei o dia buscando alguma coisa, procurando um sentido, uma razão, algo que me prendesse a atenção e nada, nada fez com que eu conseguisse pensar numa só coisa por mais de alguns minutos. 

Como resultado: fiquei impaciente. E quando isso acontece, eu acabo descontando em quem mais amo. Minha mãe não merece a forma como eu a trato. Ela mesmo cansada, com fortes dores, ainda faz o que pode pra me ajudar. Costura o que eu preciso, se preocupa com minha alimentação, lava e guarda minhas roupas... E eu, como um inválido de corpo perfeito mas de mente destruída assisto a tudo isso como se não tivesse nada a ver comigo. 

Eu sou um lixo. Não mereço as pessoas que me cercam. Não mereço um pai que tanto se esforça pra me dar tudo que preciso, não mereço os amigos que largam tudo pra ficar ao meu lado quando num surto eu penso em tirar a vida, não mereço a mãe carinhosa que pensa em mais do que pensa em si mesma. Não mereço nenhum deles.

Isso me destrói. Eu queria ser bom pra eles também. Queria saber e poder fazer mais do que o nada que faço. Mas eu não consigo, estou paralisado antes meus próprios medos, esmagado pelos minhas paixões, acorrentado em minha própria casca de  existência patética. Eu sou um peso morto, pra todos eles. E seria ainda melhor se estivesse de fato morto. Mas não o faço, e não o farei, pois sei que seria apenas mais um incômodo, a minha morte não traria nada de bom a eles, que tanto fizeram por mim. 

Mas eu gostaria que cada um deles soubesse, que se hoje estou aqui, e que se ainda sou capaz de acordar a cada manhã e sorrir, é porque cada um deles está ao meu lado! Se ainda consigo ficar de pé e cantar, ou cerimoniar uma Missa, é porque eles não me deixaram desistir. São aquela luz no fim do túnel, quando tudo parece escuro e frio. São o sorriso em meios as lágrimas. São a cor em meio ao arco-íris cinza. Eles são presença de Deus na minha vida, são um presente que nunca poderei pagar senão com meu mais puro e genuíno abraço eterno. Todas as vezes que eu achava que nada mais podia dar certo, vocês me mostravam que já tinha dado certo, vocês estavam comigo, e eu os amo infinitamente por isso!

Muito obrigado Mãe, muito obrigado Pai, muito obrigado família Kadosh/Bellfa! 

Com carinho, Biel. 

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Convite

Eis o melhor e o pior de mim
O meu termômetro, o meu quilate
Vem, cara, me retrate
Não é impossível
Eu não sou difícil de ler

Será que você tem coragem, de me encarar de frente, e ver o que há em mim, de mais belo e também de mais torpe? Você não se assustará, ao ver que a aparência doce esconde uma víbora perigosa, que minha boca é cheia de veneno mas que meu coração ainda tem muito amor? 

Faça sua parte
Eu sou daqui, eu não sou de Marte
Vem, cara, me repara
Não vê, tá na cara, sou porta-bandeira de mim
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular

Cuidado, muitos se assustaram ao ver o que não queriam. Eles se foram, fugiram de mim, e de meus gritos. Mas eu garanto, que se olhar de perto, as paisagens do meu eu vão te fascinar, mais do que qualquer coisa nesse mundo. O meu mundo, é maior, mais brilhante e mais fascinante que qualquer mundo!

Em alguns instantes
Sou pequenina e também gigante
Vem, cara, se declara
O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder
Olha a minha cara
É só mistério, não tem segredo

Sinto-me como um livro que nunca foi aberto, que nunca foi lido como deveria. Muito de mim ainda está por ser descoberto. Quem ousará transpor os umbrais de minhas consciência? Quem se atreverá a romper o selo do meu peito e ver o meu coração? 

Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular

Eu te convido, a me abrir, a me contemplar, a ver o que há dentro de mim. Posso me derramar em você? Você pode ver quem sou e o que sou, sem se assustar?

Cansaço e metamorfose

Eu preciso de um porre, de pelo menos uns dois dias. Na boa, aguento mais não. Fisicamente exausto e mentalmente destruído. Sei bem que algumas épocas na Igreja são mais pesadas do que outras, mas sinceramente, esse meu fim de ano está absurdamente complicado, minha agenda nem é mais organizada por dias e sim por horas, e toda hora vai me aparecendo algo novo pra fazer. 

As pessoas exigem demais de mim. O mundo exige demais de mim. Eu sinto que não consigo atender as expectativas de todos. Não consigo planejar todas as missas do mundo, não consigo pensar com antecedência todas as reuniões do mundo. Não consigo conferir a documentação de todas as crianças da catequese do mundo. 

Sinto como se aos poucos fosse chegando ao fim. Digo, tenho me doado tanto, e me entregado tanto a tudo que faço e a todos que me cercam que parece que logo não terei mais nada para dar. E quando isso acontecer me tornarei o quê? Um inválido que não será mais do que um peso pra todos? 

Terminei a leitura de A Metamorfose, de Kafka, ontem pela manhã. Um amigo queria conversar sobre e então me dispus a ler para que pudéssemos refletir juntos. No livro, o personagem principal que antes sustentava sua família se vê transformado num inseto gigantesco, ao que sua família reage isolando-o no ostracismo. O homem passou a ser um fardo, um incômodo aos seus familiares que chegaram a desejar que ele tivesse o bom senso de ter ido embora por conta própria. Ele foi condenado no exato momento em que deixou de ser útil, e sinto que o mesmo vai acontecer comigo, se deixar de servir aos caprichos de todos quanto em mim se apoiam. 

Eu não posso dormir, não posso apagar, porque algo acontece e alguém precisa de mim. Mas se isso continuar eu vou ficar doente e aí, nem que eu queira poderei ajudar. Claro que ninguém vê isso, e claro que quando viram e me avisaram, eu ignorei. Então não é como se eu pudesse dizer que estão jogando tudo em cima de mim, eu fiz todo mundo se acostumar com isso. 

Por isso tô precisando de um mega porre de Rivotril. Pelo menos uns dois dias dormindo sem saber nem o meu nome! É disso que eu preciso... Descansar. Descansar das pessoas, do mundo que me cerca, de todas as obrigações, de todo o peso que me aprisiona, que me faz infeliz. 

As vezes eu olho pra minha vida e me pergunto, quais os motivos que me levam ser assim? E talvez a resposta esteja no fato de que, quando estou na correria, eu consigo ficar sem pensar. Sem pensar nos meus fantasmas, sem pensar nas coisas que me assustam, nas verdades que me machucam. Talvez seja um lugar seguro, onde possa fugir de tudo quanto ameaça a minha existência. Mas isso funciona? 

Acho que nem sempre, visto que não raramente eu entro em crise mesmo com a correria. Nem mesmo quando tudo parece me oprimir eu ainda encontro lugar para pensar, naquilo e naquele que não deveria. 

E então isso acontece: eu fico cansado demais pra escrever alguma coisa de realmente útil e só derramo essas impressões aqui, na esperança de que isso faça algum sentido um dia. Ou não né, sei lá!

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Paz genuína

Que noite agradável! Quase não escuto nenhum ruído vindo da rua, ou da minha família. Meu quarto é iluminado só pela lâmpada amarela da rua e pelas luzinhas do notebook na minha mesa. O efeito é uma luz indireta belíssima. Não estou na completa escuridão, mas também não estou sob a luz. Decidi que gosto da penumbra. 

Uma brisa fresca entra pela janela, não é fria e nem quente demais. O tempo é delicioso. A música toca baixinho no player, as guitarras e baterias do tecnobrega country tailandês que estou ouvindo. Quem diria que essa combinação poderia dar certo? A música tailandesa é cheia de efeitos na guitarra, e a voz é sempre muito tremida, como se fizessem um trinado no final de cada nota longa. O teclado sempre dá um ar meio melancólico, mesmo que a música seja animada, e eu não sei como conseguem esse efeito, mas é fantástico.

Gosto de ficar assim, refletindo, ainda que minha cabeça não esteja se fixando em nada em particular. Isso é bom. Pra quem ta sempre ligado na alta voltagem mental, esse descanso é mais do que merecido. 

Os últimos dias foram extremamente cansativos. Muitos compromissos, muitas saídas, muitas tarefas, muitas cobranças. Quase não tive tempo de me silenciar e de ouvir meu coração. 

Meus pais viajaram no feriado prolongado. Foram na quarta a tarde e voltaram no domingo. Meus amigos me fizeram companhia todo esse tempo. Na quinta vieram dormir aqui, e fizemos uma festa do pijama, com direito a chilli com carne, limpeza de pele e Netflix até as 4h da madrugada. Acho que foi uma das melhores noites que já tive.

Aliás, acho que tenho os melhores amigos do mundo. Eles sabem que passei por dias difíceis, e mesmo que eu não tenha dito isso a eles, sabem que eu pensei em coisas para quando ficasse sozinho. Eles não deixaram, e a companhia deles me encheu de vigor, um vigor que me tinha sido roubado.

Na sexta, quando acordamos, fomos a casa de uma amiga e lá fizemos o almoço. Depois fomos ao apartamento de outros amigos e mais tarde voltamos para cá para um ensaio da banda. Já a noite fizemos outra resenha, dessa vez com um jantar improvisado e até narguilé, coisa que aliás meus pulmões repudiaram veementemente. 

No sábado eu dormi boa parte da manhã, e outro amigo veio passar a tarde comigo. Assistimos anime, fizemos almoço e quase parecíamos um casal na cozinha, foi engraçado. A noite fui para Águas Claras acompanhar um amigo que ia levar a namorada num chá de lingerie e por isso queria companhia. Voltamos bem tarde, depois de assistir alguns episódios de uma novela infantil do SBT e de ouvir música sertaneja raiz, recordando de tempos que não vivemos. 

Quando finalmente me deitei, morto de cansaço, um amigo me ligou. Tinha terminado o namoro e queria companhia. Meia noite saímos em direção a Brasília, fomos pro Lago Sul e lá eu tive a minha amada visão do lago, brilhando na noite escura sob o reflexo das luzes da orla. É uma das minhas visões preferidas, no mundo todo. A brisa fresca, a água se mexendo lenta e vagarosamente e aquele céu gigantesco se abrindo sobre nossas cabeças.... Tudo aquilo me fez pensar o quanto somos pequenos, o quanto nossos problemas são pequenos ante a imensidão do mundo. 

Sabe, ali, olhando aquele lago e aquele céu cheio de nuvens, em me perguntei: como pude deixar que alguém tão pequeno quanto um outro homem mexesse tanto comigo, se há um mundo tão infinitamente maior além do que eu podia enxergar? A terra se tornou pesada sob meus pés, e enquanto caminhava eu sentia que o chão ficava mais e mais firme. Era a presença do ser. Eu me tornara consciente do meu pequeno lugar no universo. E a imensidão não me esmagou, antes disso, estendeu sua mão gentilmente me convidando a conhecê-la. 

Dormi apenas três horas naquela noite, pois tinha de acordar cedo pra Missa de domingo. Com a cabeça explodindo e as pessoas querendo conversar logo cedo, foi uma manhã bem difícil. Não sei lidar com a privação do sono, e ainda hoje (terça) estou cansado. 

Mas sabe, gosto do cansaço físico. Ele passa quando durmo, ele pode ser diminuído com um relaxante muscular ou um banho quente, ou até mesmo com um momento como esse, sozinho com minhas palavras. O cansaço mental não, nada o afasta, nada o cura, apenas o tempo o faz adormecer para mais tarde retornar. 

Meus amigos me tiraram o cansaço mental. Fizeram essa proeza, e essa noite tranquila não seria possível sem eles... Sinto uma paz genuína dentro de mim!

De rótulos e definições

Apenas um Garoto, de Bill Konigsberg, é um livro autoconhecimento. Rafe é um garoto que se assumiu gay tão logo entendeu o que isso significava, mas o tempo passou e ele notou que as pessoas faziam tanto alarde sobre ele ser gay que o rótulo acabou por ofuscar quem ele era de verdade. Sentia que os outros o viam apenas como o garoto gay que saia por aí dando palestras sobre aceitação nas escolas, e por isso decidiu entrar numa escola para garotos do outro lado do país, onde poderia omitir o fato de ser gay e assim viver sem a obrigação de ser um ativista em tempo integral. 

É um romance delicado, e Rafe tem um senso de humor muitas vezes ácido e cruel, de uma franqueza brutal, e quando acabei me vi em completo pânico. Não percebi que chegava no fim do livro, e o devorei em dois dias, sentindo-me incompleto agora que acabou e já desesperado pela continuação, que não sei se já foi lançada em português.

Mas isso aqui não é uma resenha, senão que uma reflexão que fiz sobre mim mesmo. Rafe se incomodava com o fato de ninguém vê-lo como algo mais do que um garoto gay. Daí sua alegria ao ser aceito no grupo dos atletas, que nem sequer pareciam desconfiar dele. As vezes também sinto que me olham se que me vejam de verdade, e as vezes, quando penso nisso, sinto que nem sequer sei o que gostaria que vissem. 

Afinal, quem eu sou? Eu sou capaz de responder a essa pergunta e ouvir o conselho de Delfos "conhece a ti mesmo"?

As pessoas me enxergam como alguém com um gosto peculiar, um mau gosto. Escuto músicas que a maioria não escuta e que consideram estranhas, mas há quem goste. Quantas horas passo ouvindo as músicas que meu ex me envia, e quantas vezes conversamos sobre esse ou aquele lançamento? Assisto séries que ninguém nunca ouviu falar, mas quantas pessoas começaram a ver por sugestão minha e hoje são tão apaixonadas quanto eu? Tenho um amigo no Espírito Santo que simplesmente é apaixonado por Waterboyy e My Bromance, além de ter visto My Tee todinha comigo também. Eu não sou mais uma aberração cultural, mas acho que eu gostava de ser, me dava uma aura de autenticidade. 

Mas se não sou mais um extraterrestre que só gosta do que a maioria não gosta, o que eu sou? O que me define?  

As minhas responsabilidades não são mais do que um amontoado de coisas malfeitas que eu assumi para mim com o objetivo de reorganizá-las ao meu gosto para que não me incomodassem mais. Simples. Também não quero que me vejam como alguém que se defina pela responsabilidade, me soa burocrático demais. 

Não sou como Rafe, rotulado como o menino gay e ponto. Muito embora eu tenha que admitir que isso tem um peso enorme na minha vida, como no presente momento que vejo algumas pessoas terem certa precaução em se aproximarem de mim. Medo talvez? Repulsa velada? Prefiro não pensar nisso.

Eu não sou o cara com gosto pra música ruim. Não sou o cara que faz mil e uma coisas na Igreja. Não sou o cara que estuda um monte de coisa que ninguém liga. Não sou o cara gay que por conta da carência excessiva está sempre solteiro. Não sou.  

Poderia dizer que sou a soma de todas essas coisas, e mais algumas que não me lembro agora. Como diz o adágio "o Todo é maior que a soma das partes". Eu sou o todo, mas o que é esse todo? Eu, evidentemente. Mas com o que esse todo se parece? 

As vezes me olho no espelho e não me reconheço. Em outros dias eu me acho fabuloso. E em outros dias eu não suporto me olhar, tamanha ojeriza de minha aparência. Então não posso dizer que me pareço com minha figura, porque ela mesma é desconhecida por mim. Ou talvez a fluidez da minha imagem seja um reflexo da fluidez de minha alma, e portanto de minha personalidade? Talvez eu queira que me vejam como uma metamorfose ambulante, mas isso não seria perigoso? Afinal eu não gosto da inconstância, mas do mesmo modo eu não gosto da vida estática. Talvez goste daquilo que resulta da combinação entre os dois: a realidade! 

A realidade tem em si algo de mutável, cambiante, e algo de estável. Talvez em mim haja um círculo de latência entre o que sou, o que era e o que posso vir a ser, e tem algo que ainda faz com que eu seja eu mesmo. Minha essência? Sou um ente. Sou Gabriel. Mas o que os outros veem quando me olham? 

Talvez não vejam muita coisa. Talvez não vejam nada! Talvez eu seja apenas um garoto. 

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Do que aconteceu

Nada aconteceu. 
Ela não deixou que nada acontecesse. 

Mas ainda assim eu sofro, ainda assim eu choro, e ainda assim meu sangue se derrama como se tivesse lutado contra mil demônios. Mas o demônio que enfrento é apenas um, embora tenha muitos nomes. O demônio que eu enfrento é a ansiedade, que me corrói a carne até o tutano, é a depressão, que me enche de vazio, é o destino, que reserva para mim as desgraças de uma irônica existência patética. O demônio que eu enfrento é apenas um, e ele se mostra a mim como um espelho, cuja imagem eu não consigo reconhecer senão de outra forma que não seja imaginar o meu futuro eu despedaçado pelo meu próprio peito, aberto por uma lança que eu mesmo entalhei na pedra e na madeira. 

Mas nada aconteceu. 
Ela não deixou que nada acontecesse.

Mas mesmo assim a minha respiração falhou, e me esqueci como fazia para encher com o ar os meus pulmões. Mesmo assim meu coração bateu rápido como se quisesse saltar de dentro de mim. E ele realmente queria. Meu coração não queria habitar outro lugar senão que queria habitar um outro coração, e ali com ele se encontrar. Mesmo assim as minhas pernas tremeram, como se ainda fosse uma criança. Mesmo assim a dor tomou conta de meu corpo, como se estivesse perto do fim. 

Mas nada aconteceu. 
Ela não deixou que nada acontecesse. 

E ainda assim eu corri, mais do que podia, para alcançá-lo, e quanto mais corria, mais ele se afastava, me dando as costas, me largando as traças. 

Mas nada aconteceu. 

E aí a chuva passa, o sol se abre novamente. E depois uma alegria delicada vai surgindo no meu peito. O ritmo muda, a respiração volta, o coração se aqueta e eu adormeço com um sorriso doce no rosto. E eu me esqueço de tudo que passou, mesmo que nada tenha acontecido. 

Mas aconteceu. Dentro de mim, mas aconteceu. Ainda que nada tenha acontecido, porque ela não deixou que nada acontecesse.

domingo, 18 de novembro de 2018

Resenha - Love By Chance

Às vezes o amor acontece por acaso, e que atire a primeira pedra quem nunca desejou que um amor desses durasse para sempre! Essa talvez seja a mensagem delicada de Love By Chance, a série que todos desejavam que durasse para sempre: o amor verdadeiro pode aparecer quando e onde menos esperamos!

Sem dúvida uma das melhores séries, talvez a melhor, dos últimos anos, coisa que não ouso afirmar para não despertar ódio nos críticos, o fato é que seja amando ou odiando Love By Chance deu o que falar nesse ano de 2018.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Torrente

Se o dia ontem se marcou por um silêncio quase sepulcral na minha cabeça, hoje ela me recompensou com um turbilhão de pensamentos que estão me levando a completa desolação. O sentimento de abandono retomou o seu lugar de costume, e já não vejo mais a sombra decidida que ontem eu dizia ter para me desapegar. 

Agora aguardo o efeito lisérgico de um Lexotan, na esperança de que o sono por ele provocado possa me aliviar um pouco a angústia. A música de Corelli tenta me conduzir a perspectivas mais elevadas que as de minha carne, apodrecida em pecado. A chuva cai forte, e uma torrente estranha quebra ruidosamente no chão bem a minha frente graças a uma calha malfeita que o meu pai improvisou. As gotas pesadas machucam as folhas e massacram as flores, enquanto massageia a terra, que a recebe de bom grado. 

Sinto-me como aquelas folhas, agitadas sem escolha por um temporal infinitamente maior do que minha capacidade de resistir. E tento resistir a um vendaval de sentimentos, que rodopiando me faz desejar até a exaustão. 

Meus músculos estão tensos como se estivesse sob forte pressão, e eu sei que isso é meu corpo ardendo em desejo. E bem sei também que isso é meu coração pedindo um basta, pedindo que eu largue dessa paixão. 

O que me entristece é saber que o efeito será passageiro. Primeiro a doçura da tontura, depois o sono, o sonho e horas depois, a dor de saber que ao acordar, tudo vai continuar igual. 

Tudo tão igual, buscando algo irreal. Nisso não sou como as flores, cujas raízes estão muito bem firmes na terra, e mesmo que cresçam em direção ao sol, não almejam voar no céu inacessível, senão que se contentam em florir o mundo, alimentando a alma de pobres poetas como eu. 

Reencontro

O vento passava rapidamente pelo meu rosto numa velocidade que teria cortado a pele de uma pessoa normal. A noite sem nenhuma estrela era silenciosa, como se todo o universo tivesse se retirado para preparar-se para a guerra. A calmaria antes da batalha era sufocante. Acelerei o salto, cobrindo centenas de quilômetros a cada passada, e já podia ver meu destino, bem como um inimigo que pairava acima das cabeças de meus subordinados e das pessoas que deveríamos proteger.

O pássaro de aparência quase titânica voava violentamente, e o bater de suas asas destruiria uma casa com facilidade. Suas garras, do tamanho de lanças, se abriam perigosamente na intenção de capturar e ferir num único movimento. 

Os dois guerreiros que estavam no chão já perceberam a sua presença, e preparavam-se para o ataque, já começando a desembainhar suas espadas, mas eu fui mais rápido e num só salto saquei a longa espada de minha cintura, que num movimento certeiro se transformou numa enorme maça de ferro com longas de pontas que acertaram o corpo do enorme animal, provocando uma deslocamento de ar tão violento que jogou todos ao chão. O choque da criatura com uma rocha a vários metros dali foi igualmente violento, destruindo tudo num grande raio e lançando destroços no ar como uma bomba. 

Assim que meus pés tocaram o chão, nossos olhos se encontraram, e eu rapidamente virei o olhar, calculando o dano causado na paisagem depois de meu ataque, com a espada já de volta a sua bainha.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Contato

Eu não sei como deveria me sentir. Acredito que tenha alcançado algumas conquistas, ou no mínimo pude dizer algumas coisas que há muito me sufocavam. 

Nós conversamos, eu e ele, por algumas horas e eu tentei dizer tudo aquilo que mais pesava dentro de mim. Esclareci o meu sentimento conturbado e obsessivo, disse como me sentia quando ele parecia procurar outras pessoas ao invés de mim, quando parecia preferir a companhia de outros amigos. Disse o quanto aquela noite meses atrás, em que chorei em seus braços mas ainda assim ele só consegui falar dela, foi dolorosa, e como aquela ferida aberta parece que nunca irá cicatrizar. 

Ele disse que me tem em alta conta. Disse que tenho um lugar especial na sua vida. Disse que sou um de seus melhores amigos. E senti sinceridade em sua voz. Mas algo em mim ainda acha insuficiente. Disse que não sabia como me ajudar, mas que ainda se preocupava, e que minha cegueira não me deixava perceber. 

Ele me ouviu. Não me julgou. Me apoiou. Mas não creio que ele tenha me entendido, afinal as minhas palavras são incapazes de expressar a força do meu próprio sentimento. E foi isso, eu disse o que meu coração queria dizer, e ele me ouviu pacientemente, mas não me compreendeu. Pensava que talvez o meu sangue derramado o fizesse entender, mas parece que me enganei nisso também. 

Tenho consciência que a maior parte das coisas que me deixam triste só acontecem na minha cabeça. Mas também sou capaz de ver que muitas das coisas que me cortam e me machucam também são reais. 

Me sinto leve por ter esclarecido algumas coisas. Isso me fez bem, desobstruiu alguns canais que me paralisavam. Mas também me sinto triste pela verdade, que não pode ser mudada pela força das minhas palavras, ou do meu sangue. Me sinto um pouco mais tranquilo, bem menos angustiado, mas igualmente vazio. Eu não sei como deveria me sentir. 

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Um nada na multidão

Eu vou ter de matar você. Não queria, mas será necessário. Eu preciso matar você dentro de mim, antes que esse sentimento acabe me matando. 

Isso porque o que eu sinto por você não é normal, é doentio, obsessivo. Isso porque o que eu sinto por você tem me sugado tanto que logo não haverá mais nada em mim além disso. Isso porque a cada dia que mantenho você vivo dentro de mim é como se você me matasse, me envenenasse aos poucos.

Sinto como se você apertasse meu pescoço, como se aos poucos me tirasse a respiração. Mas não sinto falta do ar no meu peito, não sinto falta do oxigênio no meu cérebro, sinto falta do seu corpo no meu, sinto falta do seu coração junto ao meu. 

Como é, ser o ar que eu desejo respirar? Como é ser mais importante pra mim do que eu mesmo? Como é ser mais para mim do que eu mesmo?

Você não tem resposta pra nenhuma dessas perguntas. Porque eu não sou nada pra você. Talvez um número na agenda, talvez uma sombra distante de algo que um dia possa ter significado. Mas nada além disso, nada além de um estranho, um nada na multidão, que hoje te olha com olhar de admiração, mas que não significa pra você mais do que um mendigo que te olha com ambição. 

Eu vou ter de matar você. Não queria, mas será necessário. Eu preciso matar você dentro de mim, antes que esse sentimento acabe me matando

Retrato da paisagem

O piche do asfalto brilha em contraste com a luz âmbar das lâmpadas e das gotículas de água que lenta e delicadamente beijam o chão num encontro delicado. Da minha janela vejo os muros inacabados de meus vizinhos, tudo feio e já vandalizado. O poste do outro lado da rua é torto, e isso me incomoda. O emaranhado de fios arrumados grosseiramente acima de minha cabeça me incomoda. 

A música que toca no player me transporta pra uma paisagem diferente. Uma praia, no meio da noite, com a brisa fresca no rosto balançando meu cabelo e a água morna me acariciando as pernas. Há alguém do meu lado?

Já deu a hora, e eu não me conformo. O horizonte se perdeu em meio a escuridão aveludada, e mais uma noite caiu sem que ele viesse, mais uma noite que volto meu rosto para a cama atrás de mim e constato que dormirei sozinho, sem o seu sorriso de boa noite. 

Um som ao longe me indica que há pessoas por perto, mas não próximas o suficiente para me verem chorar silenciosamente, abafado pela música e pelos carros que hora ou outra passam.

O barulho da chuva aumenta lentamente, e vai abafando os meus gemidos. As lágrimas que caem aqui dentro são mais quentes que as que estão la fora. As de lá escorrem rapidamente pela rua, enquanto aqui elas escorrem lentamente pelo meu rosto.

A imagem de um homem andando sozinho ainda é forte na minha mente. Eu sou esse homem, que anda sem ter pra onde ir, que anda sozinho porque foi abandonado pelo seu amado. 

Esse é apenas um retrato, superficialmente capturado daquilo que vejo e sinto nesse momento. Reflexo de uma alma melancólica que tenta encontrar no vazio sem contorno do meu peito um motivo para continuar...

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

O que sobrou

Travo em meu peito uma batalha contra o niilismo que aos poucos tenta me arrastar para o seu nada. O desencanto, a desesperança, a desilusão, a cada dia ocupam mais o espaço que antes era da luz. E luz? Bem, eu não sei direito para onde ela foi, mas sei que não está mais aqui.

Acontece que o que tinha aqui dentro de mim foi dado de bom grado a alguém que jogou no lixo tudo o que tinha a oferecer. E agora, não sobrou senão o vazio deixado por aquilo. Esse vazio agora grita em resposta aos meus gritos. O abismo do meu ser olha de volta para aquele que o olha, buscando um fim. 

Aqui cabe uma digressão àquele adágio que diz "somente quem sente uma dor é capaz de compreendê-la" pois eu praticamente consigo ver o olhar de julgamento daqueles que conhecem a causa disso tudo. Eles não veem senão a superfície do lago, sem imaginar o que se passa no interior. Eles não imaginam o fluxo de águas impetuosas que existem abaixo das ondas que se quebram na margem. 

Um amigo disse que eu não deveria me prender em meus sentimentos, nem tampouco entregá-los a qualquer um. Não há como evitar o primeiro, mas o segundo já não creio ser possível que eu um dia faça. Não penso que possa me entregar novamente, não vejo alguém quebrando a barreira que eu ergui a minha volta. Isso porque não desejo que ninguém mais veja o meu lado mais sincero e vulnerável, sem que antes eu tenha certeza que dele não vai se aproveitar disso para me ferir de alguma forma. E no momento tenho estado tão ferido que dificilmente alguém conquistaria minha confiança novamente.

Minha capacidade de confiar foi destruída, bem como minha capacidade de amar foi diminuída. Mas se essas eram as únicas duas coisas que eu sempre soube fazer, o que sobrou de mim?

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Turbilhão

Impaciente. Meu pensamento voa a mil por hora, e dá dez voltas a cada palavra que me dizem. Não consigo ouvir, não consigo entender, não consigo sequer olhar nos olhos de alguém sem que com isso se siga um impulso da vandalismo ou agressão. 

É claro que as pessoas não entendem isso, apenas me julgam com seus conceitos pequenos, incapazes de abarcar a totalidade da minha existência de forma que suas mentes consigam compreender e me decifrar. Mas eles não podem. "Decifra-me ou te devoro". Sinto como se eles fossem envolvidos pela minha raiva. 

Raiva. Um fogo impetuoso sopra de dentro de mim, e me consome em chamas, mas estas diferentes daquelas que me consumiam em desejo. 

Acho que é raiva de mim mesmo. Raiva por não ser bom o bastante pra ele. Raiva por não ser inteligente o bastante pra calar a boca de todos quanto se colocam diante de mim. Raiva pela incapacidade dos outros em percebem a ausência de bom gosto e bom senso. Raiva por não conseguir fazer as coisas do jeito que eu queria. Raiva, muita raiva. Minha boca espuma e sinto sangue em meus lábios.

Parece que me tornei uma criancinha birrenta, rolando no chão por não ter conseguido o brinquedo que queria. Uma criança movida pelos seus sentimentos mais espontâneos, quase um animal. 

Eu sorrio sem razão aparente. E fico irritado no minuto seguinte, só pra chorar logo ali na frente, e começar a falar sacanagem daqui 5 minutos. E estou assim, nessa montanha russa de emoções. Sentindo tudo e nada ao mesmo tempo. 

Em meu peito florescem todas as cores. Azul, amarelo, vermelho e até o cinza. 

Eu disse, há alguns dias, que tinha sobrevivido a uma das piores crises dos últimos anos, e que não sabia se isso era uma coisa boa. Agora, vendo o turbilhão que se agita dentro de mim, vejo que não foi mesmo nada bom. Vejo que a qualquer momento essa roda da fortuna pode acabar explodindo em minhas próprias mãos e, pra alguém que já se encontra em pedaços, não sei o que uma explosão pode fazer comigo. 

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Do feio que entristece

Alguém como é fascinado pela beleza, e hoje, andando por lugares bem distantes de minha casa, me deprimi pela opressão que a feiura do mundo ao meu redor me proporcionou. Me fez recordar do motivo de não sair de meu quarto: coisas feias me deixam triste! 

Como as pessoas não se sentem incomodadas, com construções que se erguem em meio a paisagem sem nenhuma harmonia? Os fios expostos, as pichações, a "arte" urbana, as construções contemporâneas... Atentados violentíssimos ao bom gosto. 

Desde uma Igreja que mais se parece com um balde de cabeça pra baixo, a qual os fiéis são obrigados a chamar de Catedral até a confusa disposição das placas do comércio nos diversos pontos das cidades. Tudo é de uma poluição visual absurda. As luzes massacram o olhar, o barulho maltrata a alma, a feiura agride o ser!

Onde estão os espíritos das construções? Certamente foram banidos do mundo, substituídos por um conceito contemporâneo de expressão que nada mais é do que qualquer coisa sendo chamada de arte. Aliás, creio até que o belo não seja mais considerado arte, senão que passou a ser uma imposição, não sei de quem, que exige dos artistas a qualidade que eles obviamente tem preguiça ou incapacidade de demonstrar.

Isso me incomodou, profundamente. Como podem viver e sair todos os dias de suas casas sem sentir uma súbita ânsia de vandalismo ao cruzar uma praça com uma garatuja disforme se erguendo no centro? 

O mesmo para as festas, incluindo aqui aquelas frequentadas pela dita classe média, que de média só tem o gosto. Gosto médio esse que Ariano Suassuna já avisara que é a pior coisa que se pode ter na arte. 

Hoje em dia o sertanejo universitário ocupa o primeiro lugar das preferências nacionais ao lado do funk, e seus consumidores, embebidos em quantidades absurdas de cerveja barata e fumaça de narguilê, juram que isso é o suprassumo da musicalidade humana. Provincianismo do mais porco, afinal, até o mais matuto dos provincianos deve conhecer algo de belo que há em sua província. 

Mas me parece que o homem não só perdeu a capacidade de produzir o belo, como também de apreciá-lo. Francamente, colocar sob a mesma clave de "músicos" alguém que cante sobre o emponderamento feminino como se apresentando como objeto no intuito de protestar contra a objetificação da mulher e compositores que imprimiram em suas partituras um retrato fidedigno de suas almas perturbadas pelo confronto entre a luz e a escuridão deveria ser no mínimo um crime de atentado ao pudor, mas na atual realidade onde o imbecil é intelectual, o primeiro é retrato cultural e o segundo é eurocentrismo absurdo. 

O que me espanta é que, quando digo algo assim, já logo me acusam de um preconceito cultural com a brasilidade que tal nome representa. Claro que isso é como uma ofensa a mim, que não me sinto representado de maneira alguma nessa brasilidade boçal, o que não me impede de ouvir a música contemporânea (leia-se: a popular), mas que certamente me impede de colocá-la na mesma categoria de artistas de verdade e até mesmo como alguns contemporâneos que conseguem o mínimo de qualidade exigida para o posto que ocupam. 

O feio me causa repulsa. Mas ele está em toda parte, e por isso mesmo me entristece, pois em minha alma há o anseio por um belo que se encontra distante de mim. Em meu íntimo há o desejo pelas belas paisagens, pelas belas obras, pelas coisas que não só nos encantam pela harmonia como nos fazem desejar aquilo que é bom e justo, fazendo-nos rejeitar o que não o é. 

O feio nos sufoca, nos cega, nos faz esquecer que para além do asfalto cheio de buracos de nossa cidade miserável há um mundo de possibilidades, um mundo de belezas, um mundo de riquezas. O feio nos faz acreditar que não há nada para além de nosso limitadíssimo horizonte de consciência, aliás, o que é horizonte? 

Certamente nasci no lugar errado, e quem sabe até na época errada, pois não me encaixo na feiura deste mundo. Meu coração anseia belezas superiores a qualquer coisa que esses pobres provincianos me possam oferecer. 

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Confissões no Dia da Ira

Dies iræ! dies illa. Solvet sæclum in favilla. Teste David cum Sibylla!

Dia da Ira, aquele dia, em que os séculos dissolver-se-ão em cinza, (será) David com a Sibila por testemunha!

É o dia da dor, das correntes grossas que se arrastam, dos cativeiros aterrorizantes que nos assustam. Das prisões do corpo, da alma e do coração que fazem do homem um pobre prisioneiro de seus pecados e desejos mais sombrios, que o consomem como o fogo consome a brasa, transformando-a em cinzas. É o dia em que o homem vê toda sua gloria sendo reduzida ao nada, sua existência ao pó, seu ser voando ao vento, perdendo-se completamente num mundo de ventos impetuosos.  

O dia da ira é o dia em que tememos o mundo e tudo o que ele contém. Queremos fugir da terra, da vida e de tudo o que ela encerra. 

Quantus tremor est futurus, quando iudex est venturus, cuncta stricte discussurus!

Quanto terror está prestes a ser, quando o Juiz estiver para vir, em vias de julgar tudo severamente!

O dia da ira é o dia do tremor, do choro, do horror. É o dia do medo que nos domina, em vias de encontrar aquele que em nossa vida tem o poder de tudo ligar e desligar. É o dia de que queremos fugir, mas é também o dia que não podemos evitar, que chega sem avisar, que nos domina sem nem ao menos lutar. 

Os tentáculos da morte nos rodeiam, suas vinhas malditas nos seguram em seu abraço macabro. Eu nosso ouvido, seu sopro maldoso e fétido, que injeta em nosso ser o pavor e a podridão.

Tuba mirum spargens sonum per sepulchra regionum, coget omnes ante thronum.

A trombeta espargindo um som miraculoso pelos sepulcros da região, conduzirá todos diante do trono.

Há um som que a  nenhuma criatura pode escapar. Há um som que nenhum de nós pode deixar de ouvir. Há uma dor que ninguém pode deixar de sentir. Há um horror que a todos vai dominar. Há algo que faz renascer dentro de nós tudo aquilo que um dia lutamos para sepultar. Um amor, uma amizade, um medo, uma dor, ou tudo isso junto. Seja o que for, não há como fugir dos fantasmas do passado convocados para o juízo final. Não há como fugir sequer dos fantasmas do presente, que insistem em nos machucar, nos ferir e depois, partir, certos de que nos mataram, sorrindo de nossa desgraça... 

Mors stupebit et natura, cum resurget creatura, iudicanti responsura.

A morte ficará paralisada, também a natureza, quando ressurgir a criatura prestes a responder ao que está julgando.

No meu dia de ira, tudo fica extático. Não consigo perceber o mundo que se move ao meu redor. No meu dia da ira o meu julgamento tem apenas um veredito: a minha morte é decretada, e meu carrasco não é outro senão aquele ao qual eu entreguei o meu coração de bom grado, a quem me dediquei servilmente, a quem entreguei o punhal para que no momento certo me esfaqueasse as costas e depois o coração, espalhando pela terra o sangue que há de alimentar os vermes que nela habitam. 

Liber scriptus proferetur, in quo totum continetur, unde mundus iudicetur.

O Livro escrito será proferido, em que tudo está contido, de onde o mundo será julgado.

Dizem que três coisas não podem ficar ocultas por muito tempo, sendo elas o Sol, a Lua e a Verdade. O homem glorifica o sol, pois não há como fugir dele, e buscar abrigar-se da escuridão que cobre o mundo quando a Lua sobre ao seu trono. A Verdade, por sua vez, faz os homens fugirem de si mesmo, e esvaziarem-se de tudo que possa lhes recordar de quem são, do que amam e do que querem. No entanto, no íntimo de nós repetimos continuamente o que tentamos esquecer com a mesma frequência. 

Iudex ergo cum sedebit, quidquid latet apparebit: nil inultum remanebit.

Quando, pois, o juiz se assentar, tudo oculto revelar-se-á, nada permanecerá sem castigo!

O homem tende a ocultar de si mesmo a verdade, seja no íntimo de seu coração ou nas palavras vazias que profere tolamente ao mundo. O homem oculta a verdade do outro na esperança de esquecer aquilo que lhe traz dor. Quando esta então é revelada a dor passa a pesar sobre as frágeis costas daqueles que nutrem no seu âmago uma esperança falsa de que um dia tudo será melhor. 

Há um juiz que tem o poder de trazer a luz a verdade que fora oculta nas trevas de nosso coração debilitado. O mundo? Deus? Quem detém a verdade que nos corta como aço frio?

A minha verdade é uma pessoa andando de costas para mim. Ele me deixando, ignorando meus gritos, minhas lágrimas. E eu sozinho, sentado no escuro, com a mão erguida em vias de implorar por clemência. Mas não há clemência, não há misericórdia. Não há uma segunda chance para as estirpes condenadas a solidão. Na há exílio no mundo para pessoas como eu. 

Quid sum miser tunc dicturus? Quem patronum rogaturus, cum vix iustus sit securus?

E eu pobre, que farei? A que patrono rogarei, quando apenas o justo esteja seguro?

Aqui não há ninguém que me possa escutar. Só há escuridão ao meu redor, e a fria sensação da solidão. Há apenas dor, horror, e o vento frio que sopra desde lugar nenhum até nenhum lugar. Fora deixado sozinho com meus fantasmas, prestes a me assassinar. E o meu fantasma tem a aparência de meu amado, a quem clamo por piedade, mas que com um sorriso no rosto ergue a espada para desferir-me um golpe mortal.

Rex tremendæ majestatis, qui salvandos salvas gratis, salva me, fons pietatis.

Rei de tremenda majestade, que salvais só por bondade, salvai-me, ó fonte de piedade.

Torno a clamar aquele que coroei como meu rei. Mas ele não o era. Não deveria estar ali, ocupando o pedestal onde do alto de sua majestade me condenou a morte. Não, isto não está certo. Só um é o Rei, só uma é a majestade, e eu não deveria entregá-la a ninguém mais.

Recordare, Iesu pie, quod sum causa tuæ viæ: ne me perdas illa die.

Recorda, piedoso Jesus, Que sou a causa de tua Via: não me percas nesse dia.

Perdoai-me Senhor, por colocar em teu lugar um outro homem. Por dar a ele o poder de me julgar, por dar a ele o que só a ti devia pertencer. Fiz dele o meu deus, deixei que ditasse como iria viver, tudo o que iria fazer. Deixei que me dominasse completamente, e sem titubear dei a ele minha completa devoção. Quando então em vias de clemência me encontrava, achei apenas a dor, e um grandioso Não!

Quærens me, sedisti lassus:redemisti Crucem passus: tantus labor non sit cassus.

Buscando-me, sentaste exausto, sofrendo na Cruz, redimiste(-me): que Tamanho trabalho não seja em vão.

Eu me esqueci de ti. Esqueci tudo o que fizestes por mim. Me entreguei aos meus desejos, e agora volto arrependido, pois vi que não poderia ser feliz buscando aquilo que nunca terei. No entanto minha contrição é imperfeita. Temo que se tivesse encontrado o que buscava não teria me lembrado de ti. Sou eu o traidor, sou eu o merecedor da condenação eterna.

Iuste iudex ultionis, donum fac remissionis ante diem rationis.

Juiz justo da vingança, dai-me do dom da remissão, antes do dia do julgamento.

E mesmo depois de perceber o quão errado estava, depois de perceber ter cavado minha própria cova e buscado com afinco minha própria condenação, eu percebo que ainda desejo a vingança. Mais um pecado para minha longa lista. Mas não a vingança de sangue, de ferir quem me feriu, mas a de vingar-me do destino que me fez passar por coisas tão cruéis. Há em mim ainda um masoquismo inerente, que me faz querer que tudo não tenha passado de um pesadelo maldito, que quando acordar terei ele comigo, ao meu lado, e de que não terá partido, me deixando sozinho na penumbra da noite.

Ingemisco, tamquam reus: culpa rubet vultus meus: supplicanti parce, Deus.

Gemo, tal qual um réu: minha culpa enrubesce-me o semblante, poupa a quem está suplicando, ó Deus!

Vês, o quão traidor eu sou? Vês a imensidão da miséria de meu coração? Aquele que acreditava só ter amor, tinha apenas a fragrância apodrecida do pecado que me corrompera a carne. Tenho vergonha até mesmo de pedir perdão. Não mereço o perdão, mas preciso dele, preciso dele para colocar Deus de volta ao seu lugar. Preciso dele para que um homem não possa governar a minha vida, para que não tenha o poder de me fazer sorrir e chorar quando bem entender. Preciso dele, preciso de Deus, mas também preciso dele... E o quanto me dói na alma admitir que ainda preciso dele, que preciso de seu sorriso, de seu abraço, de seu toque, de seu cheiro, de seu Boa Noite. Preciso dele, e preciso dele aqui comigo... 

Qui Mariam absolvisti, et latronem exaudisti, mihi quoque spem dedisti.

Tu que perdoaste a Maria (Madalena), e ouviste atento ao ladrão, também a mim deste esperança.

Será que há para mim esperança? Será que há luz no mundo para alguém que já habita as profundas geenas? 

Já não vejo mais a luz. Já não sei o que é esperança. Já não a vejo como algo bom, como uma centelha de luz que brilha em meio a escuridão. A esperança é para mim um algoz, uma figura que de sua capa preta tira o mais pavorosos instrumentos de tortura. A esperança é para mim a destruidora de minha razão, a matadora do meu coração. É graças a esperança que eu sempre volto a acreditar no amor, que eu volto a pensar que ele não poderá mais me machucar, mas basta que eu diga essas palavras, para que ele volte a tentar me matar, para que ele volte a me torturar. 

Preces meæ non sunt dignæ: sed tu bonus fac benigne, ne perenni cremer igne.

Minhas preces não são dignas, mas, tu (és) bom, age com bondade, para que eu não seja queimado pelo fogo eterno.

Purifica-me Senhor com teu fogo. Purifica-me com tua justiça. Torna-me puro aos vossos olhos. Torna-me puro, sem mancha do sentimento que tanto me afundou, sem aquilo que coloquei em teu lugar. 

Inter oves locum præsta, et ab hædis me sequestra, statuens in parte dextra.

Entre as ovelhas dispõe um abrigo, retira-me para longe dos bodes, coloca-me de pé à Vossa direita;

Será que ainda há para mim um lugar seguro embaixo de tuas asas, ó Senhor? Um refúgio longe das coisas ruins que há no meu próprio coração? Onde os meus desejos mais primitivos não me possam achar?

Confutatis maledictis, flammis acribus addictis: voca me cum benedictis.

Condenados os malditos, lançados ao fogo ardente, chamai-me com os benditos.

Sempre me coloquei soberbamente na assembleia dos eleitos. Ilusão, vaidade! Estou contado entre os malditos. Condenado eternamente ao fogo ácido e infinito. O fogo que me consome em desejo, o fogo que me faz deixar de ser um homem, o fogo que me queima as entranhas, e que faz desejar o céu mesmo não passando de uma serpente a rastejar no chão imundo. 

Eu choro, e as lágrimas me queimam a face, assim como as chamas do inferno queimam os condenados. Um exército de demônios marcha em minha direção, como seu garfos afiados, a me torturarem pela eternidade. Mas poderão eles me dar condenação pior do que aquela que me deu o meu Amado? Não há no mundo dor pior do que a de ser abandonado. 

Oro supplex et acclinis, cor contritum quasi cinis: gere curam mei finis.

Oro-Vos, rogo-Vos de joelhos, com o coração contrito em cinzas, cuidai do meu fim.

Sinto que ele se aproxima. Sinto que não há mais muito tempo no mundo para mim. Sinto que o coração de um homem não possa ser mais ferido e magoado do que isto. Sinto que já não há mais esperança para mim. Sinto que chega, enfim, o meu fim!

Lacrimosa dies illa, qua resurget ex favilla iudicandus homo reus. Huic ergo parce, Deus:

Lacrimoso aquele dia no qual, das cinzas, ressurgirá, para ser julgado, o homem réu. Perdoai-os, Senhor Deus

Eu chorei, o quanto chorei. Tudo o que sentira se foi para fora de mim naquelas grosas lágrimas de sangue. Não há em mim vestígio de outra coisa senão de tristeza e pesar por ter amado, amado demais, e sonhado com o amor, que não era amor, mas que apenas me trouxe a dor, me ensinou o que era o horror. 

E eu ainda choro, de pesar, de horror, de dor, quando me lembro o quanto me dei, o quanto me esforcei, o quanto lutei e vejo que de nada adiantou. Sou um soldado caído, que lutou uma batalha que nunca poderia ter vencido. Sou um pobre derrotado, um cão a lamber as próprias feridas. Sou um nada, pior que o verme das ruínas, sou menos que um homem, sou menos que um verme. Mas ainda sou capaz de chorar, e por isso essa tem sido a única coisa que eu tenho feito.

Pie Iesu Domine, dona eis requiem. Amen.

Piedoso Senhor Jesus, dai-lhes descanso eterno, Amém!

Dai-me o descanso eterno, Amém!