terça-feira, 13 de novembro de 2018

Reencontro

O vento passava rapidamente pelo meu rosto numa velocidade que teria cortado a pele de uma pessoa normal. A noite sem nenhuma estrela era silenciosa, como se todo o universo tivesse se retirado para preparar-se para a guerra. A calmaria antes da batalha era sufocante. Acelerei o salto, cobrindo centenas de quilômetros a cada passada, e já podia ver meu destino, bem como um inimigo que pairava acima das cabeças de meus subordinados e das pessoas que deveríamos proteger.

O pássaro de aparência quase titânica voava violentamente, e o bater de suas asas destruiria uma casa com facilidade. Suas garras, do tamanho de lanças, se abriam perigosamente na intenção de capturar e ferir num único movimento. 

Os dois guerreiros que estavam no chão já perceberam a sua presença, e preparavam-se para o ataque, já começando a desembainhar suas espadas, mas eu fui mais rápido e num só salto saquei a longa espada de minha cintura, que num movimento certeiro se transformou numa enorme maça de ferro com longas de pontas que acertaram o corpo do enorme animal, provocando uma deslocamento de ar tão violento que jogou todos ao chão. O choque da criatura com uma rocha a vários metros dali foi igualmente violento, destruindo tudo num grande raio e lançando destroços no ar como uma bomba. 

Assim que meus pés tocaram o chão, nossos olhos se encontraram, e eu rapidamente virei o olhar, calculando o dano causado na paisagem depois de meu ataque, com a espada já de volta a sua bainha.


- Relatório! - Eu disse, calmamente, enquanto dava às costas ao grupo e olhava o celular que tirara do bolso para verificar onde estavam nossos reforços.

- Localizamos os três a serem levados para a sede da divisão de guarda da corte. Fomos atacados por dois grupos de animais controlados a distância, mas não encontramos o autor do ataque, o pássaro é o terceiro a nos achar, e não sabemos como estão fazendo isso. - Respondeu Orube, quem eu deixara responsável por liderar a missão até minha chegada. 

-  Os poderes da garota acabaram de despertar, e ela ta deixando uma aura por onde passa. Vocês não sentiram porque estão perto demais dela, mas eu consegui detectar já há uns 15 quilômetros daqui. - A garota em questão usava uma saia colegial e uma camisa branca rasgada, e estava abraçada com ele. Uma outra garota, suja de terra estava ao lado dos dois, extremamente confusa. 

- Oh! - Orube e Tessai responderam em uníssono, desconcertados. 

- Vamos logo, a divisão de apoio já deixou nosso transporte. - Eu disse começando a andar em direção ao estacionamento do parque. - Orube! - Chamei.

- Sim senhor! - Ela veio andando em minha direção.

- Trace um perímetro comigo até o local onde está o transporte. Eles estão fracos para usarmos o passo rápido. Durante o caminho você e Tessai ficaram com eles o tempo todo e eu vou vigiar a retaguarda. Onde está o Lavelle?

- Está curando seus ferimentos no alto daquele prédio - disse apontando um enorme edifício a nossa esquerda - ele que nos avisou sobre o pássaro. - Acrescentou.

- Certo, eu vou verificar se há mais algum animal invocado por aqui, ou talvez ache o invocador. Partimos quando Lavelle estiver melhor e puder ir fazendo a guarda a nossa frente, seguiremos o ritmo dele. - Disse enquanto saltava rumo a escuridão das árvores.

Apenas não queria ficar ali. Já havia lançado uma barreira de localização a procura do mestre invocador dos animais mas não achara nada, talvez pudesse fazê-lo a distância, o que indicaria o nível do nosso perigoso inimigo. A garota teve seus poderes despertos e alguém quis logo dar cabo dela por algum motivo. Será que um rei estaria por trás disso? Apenas o Kirins, companheiros das famílias nobres podiam invocar e controlar animais a distância...

Demorou apenas alguns minutos para que Lavelle voltasse, com o braço enfaixado e levemente pálido por conta dos ferimentos, mas em razoável estado. Se tudo desse certo chegaríamos ao Instituto em pouco menos de uma hora, na velocidade máxima das motos. 

Seguimos em formação pela estrada. Lavelle sozinho a frente. Orube com uma das garotas. O rapaz e a maga nobre recém desperta juntos. Aquilo me incomodou. Eu ia com Tessai atrás, e de tempos em tempos eu saltava e cobria o perímetro de 100 metros usando o passo rápido. A cada 5 minutos cobria um perímetro de 300 metros.

Se a garota era de uma família nobre, onde estaria o seu kirin? É normal que eles sejam os primeiros a detectarem seus mestres e que sua presença desperte seus poderes em casos como esse. Será que foi atacado? Kirins são seres puros, jamais atacariam um semelhante, exceto se fosse obrigado pelo seu mestre, mas só um rei tinha poder suficiente para forçar um kirin a ir contra sua natureza. Mas reis ficavam doentes se interferissem em outros reinos, então o que estava acontecendo ali? E os dois jovens? Não havia neles nenhum traço de magia a não ser os recessos da garota que se impregnara neles. A presença deles podia prejudicar numa batalha, mas o nosso código não permitia que os abandonássemos ali.

- Maldito código. - disse, alto demais. Tessai ouvira e sorrira maliciosamente.

- Conhece algum deles? - Perguntou. Ele era esperto. Eu não respondi, e saltei mais vez.

Encontrei perseguidores dessa vez, e logo avisei a Lavelle que acelerasse, mas ele disse que a frente dele também tinha alguma coisa. 

- Droga. - Disse, cuspindo. Saltei sobre a moto, e com um gesto simples da mão lancei uma série de relâmpagos sobre as rochas da ribanceira que se erguia ao nosso lado para bloquear a pista. Tessai acelerou e eu me lancei sobre suas costas para a frente da moto de Lavelle num salto.

Me dei conta de que eles estava acima de nossas cabeças, na ribanceira, e que apenas alguns estava na pista. Eram muitos. E ainda nem tínhamos encontrado aqueles a nossa frente. Saltei da moto dessa vez pousando no chão e já preparando meu próximo passo. Eles entenderam o desafio e logo desceram, 30 lobos brancos enormes, maiores do que um carro, liderados por um lobo negro ainda maior do que os outros. 

Fechei os olhos e abri logo em seguida, pronto para o ataque. Juntei as mãos numa posição de prece, enquanto meu corpo se dissolvia numa multidão de borboletas que voavam e com seu bater de asas espalhavam um pó brilhante que logo cobriu toda a estrada num raio de vários metros. Apenas dois lobos conseguiram chegar até mim, mas ao toque de suas bocas enormes o meu corpo terminou de sumir, e eles logo caíram, adormecidos em meu feitiço. Agora deveria cuidar daqueles a nossa frente, pois eu ouvira que as motos haviam parado, e a ordem era para que não parassem em nenhuma circunstância.

Num passo rápido eu cheguei até a estrada e descobrira porque haviam parado. O trajeto fora bloqueado por grossas árvores derrubadas ali, e se aproveitado disso Tessai ordenara a parada preocupado comigo. Passei por eles rapidamente, ainda com o corpo formigando pelo uso de repetidas técnicas numa única noite. 

Eles perceberam minha impaciência pois não protestaram quando retirei a espada da bainha na frente de dois humanos, e nem quando a fiz se transformar em centenas de milhares de pétalas de flores de cerejeira que destruíram as arvores e desobstruíram a passagem. Voltei para a garupa da moto de Tessai e ordenei que não parassem até que chegássemos ao Instituto. 

Ignorei o olhar assustado de todos ali, principalmente do rapaz, cujo olhos esmeraldas pareciam me enxergar a alma.

Chegamos no Instituto pouco tempo depois, e a Divisão Médica logo tratou de cuidar dos três jovens e de Lavelle, que ficara ainda mais pálido com a viagem. Ele descansava dormindo e roncando alto na enfermaria, quando passei para vê-los.

As garotas dormiam, abraçadas, e não vi sinal do rapaz na enfermaria. Quando cruzei o hall principal e entrei no elevador, no entanto, ele viera correndo em minha direção.

- Cara, é você não é? Nígel? - Seus olhos me fitaram com raiva e confusão, e eu paralisei. Apertei com força o botão e a porta se fechara.

No escritório da diretora do Instituto eu entregara a ela o relatório da missão. E explicara minha teoria sobre o rei. Talvez um rei ameaçado pelos acordos comerciais com a família de outro reino estivesse tentando impedir que a garota chegasse a coroa, temendo que seus esquemas fossem descobertos. Ela conduziria pessoalmente a investigação, mas contava com minha assistência, ao que suspirei, pois esperava conseguir ficar de fora dessa. Não queria contato com aquele rapaz, e certamente teria que servir de segurança deles, uma vez que a diretora sairia em investigação e o Instituto ficaria sob meus cuidados. 

Já estava tarde, mas eu não conseguiria dormir, não eufórico como estava. Esperei então que ele dormisse e fiquei a noite toda ao seu lado, lutando contra as lembranças que sua figura me trazia. Saí assim que amanhecera, antes que acordasse.

Tomei uma ducha quente e fui para o campo de treinamento, no lado oeste do prédio, mas bem distante, onde poderia sacar minha espada sem que ninguém ouvisse. 

Treinei até o meio da tarde, quando ouvi alguém se aproximando. Droga! Vinha liberando minha energia espiritual sem me conter, e eu sabia que isso afastara todos que vinham ali pra treinar durante o dia. Eu podia ser sentido há quilômetros de distância. 

Reconheci a energia espiritual de Orube sendo liberada para evitar a pressão que a minha colocava sobre sua presença, e recolhi minha pressão quando vi que o rapaz estava com ela. Se continuasse assim ele desmaiaria ao se aproximar de mim. 

Continuei de costas, virando lentamente o rosto para encará-la, que corou e se afastou, enquanto o rapaz vinha em minha direção, parando há alguns passos de mim. 

- Cara, você tem de me explicar...

- Sua amiga é uma feiticeira nobre, e você se envolveu por acidente! - Interrompi bruscamente.

- Não isso, mas você! Você ta aqui, sabe quanto tempo...

- Isso é irrelevante.

- Não. Eu procurei por você, todos procuramos, achamos que estivesse morto cara. Já faz um ano!

- Se é sobre é melhor voltar ao castelo, não é bom ficar andando por aqui com tantos ceifeiros treinando. 

- Por que você ta com raiva de mim? Nem olhou na minha cara ontem a noite. 

- Não estou com raiva de você Marcel. - Disse andando em direção a uma grande pedra, de uns 4 ou 5 metros de altura que se erguia no meio do campo, e que usávamos para meditação normalmente. - Estou com raiva do destino! - Acertei um murro na pedra, que se partiu em dezenas de pequenos pedaços, fazendo-o cair atrás de mim. - Um ano! Há um ano eu larguei tudo, meus amigos, minha família, tudo! E vim pra Sociedade das Almas. Eu treinei, e subi mais rápido do que qualquer um. Passei de substituto a efetivo e agora sou o 5° Posto da minha Divisão, além de vice-diretor. E tudo isso pra te esquecer, esquecer você que não gostava de mim. Tive a chance de vim para um mundo sem você, e quando achei que finalmente tinha te esquecido, você aparece. Isso não é justo!

Minha voz começara a falhar, e eu ajoelhara em cima dos pedregulhos quebrados. As lágrimas escorriam. Eu sabia que o barulho da rocha quebrando iria atrair olhares, e eu sabia que estava sendo visto pela torre de vigilância do castelo, e até alguns ceifadores vieram olhar de perto também.

Um ano. Um ano sendo outra pessoa. Um ano sendo um homem sério e calado, comprometido em treinar e ficar cada vez mais forte. Um ano sem falar sobre minha vida como humano, antes daquela noite. Um ano sem demonstrar a fraqueza que antes me dominava. 

- O que aconteceu? Como chegou aqui? - Ele disse, se colocando de pé. Eu ainda não podia olha-lo de frente. 

- Fui atacado por um hollow, numa noite há dois anos. E um ceifador de almas me ajudou, me dando seu poder. Era uma invasão, e ele acabou morrendo, e eu ficando com sua espada e seus poderes. Depois disso eu descobri que podia viver entre os dois mundos, ou escolher um só. E foi o que eu fiz.

- Pra se esquecer de mim.

- Pra me esquecer de você. 

Ele deu dois passos na minha direção. Apertei os olhos com força, tentando fazer parar as lágrimas que voltavam a cair. Eu o olhei por um segundo. Usava uma calça e casaco pretos, como sempre me lembrava dele, e se erguia alto e magro na minha direção. Tentei não me lembrar da sensação que ele provocava em mim, de drenar toda minha força com o olhar, isso foi antes, antes de eu mudar.

- Vocês estão juntos? - Ele parou quando eu abri a boca.

- Mais ou menos... - Disse ele, sem graça. - Eu não sabia se ia voltar a te ver...

- E não vai. - Interrompi - Você vai receber escolta por algum tempo por conta do incidente de ontem, e nunca mais vai me ver.

- Por que? 

- Porque eu não quero viver aquilo tudo de novo. Não por sua causa. - Eu disse, secamente.

- Você nem se despediu de mim.

- Eu queria que pensassem que eu morri. - Engasguei - Porque é como me sentia. 

- Sinto muito. - Ele disse, e a voz pareceu pesada, ele estava começando a chorar.

- Não sente não. Esse é o problema. - Eu estendi a mão e a minha espada viera rapidamente de volta para mim, comecei a andar, para o castelo. Enquanto andava eu pude ouvir o choro baixinho dele. Será que ele se lembra da última vez que me viu chorar? Pois eu me lembrava, e aquele dia ainda partia meu coração, mesmo depois da aura séria que me cobria ali. 

A garota que estava agarrada com ele na última noite estava ali. Vinha correndo na direção dele, sua magia pululando loucamente. Alguém deveria ensinar a ela a controlar seus poderes, ou logo ia sair por aí machucando alguém. Eu passei por ela ignorando seus cumprimentos e seu sorriso nojento. Ela parou um instante e logo voltou a andar na direção dele. Não tinha interesse em ouvir aquela conversa.

Por algum motivo ela voltou correndo na minha direção. Mas tinha algo errado, seus passos estavam mais pesados, era outra pessoa. Ele, era ele. Ele vinha correndo na minha direção. Eu apressei o passo, e pensei em saltar dali, mas seria estranho para os outros me verem fazendo algo tão grosseiro ali no meio de convidados. E ele continuava correndo, e eu via alguns ceifadores olhando pelas janelas, o motivo de todo aquele movimentos e normalmente o Instituto era um lugar tão silencioso. Pra um lugar onde todo mundo tinha super audição, uma correria daquelas era motivo de curiosidade.

Eu apressei o passo, queria chegar logo nos umbrais do castelo, mas uma coisa me impediu. Ele me abraçara por trás. E ainda era bem mais alto que eu. Algumas coisas nunca mudaram. Seu perfume era o mesmo também, droga!

- O que você ta fazendo? Marcel me larga! - Protestei, mas sem usar a força. Não tinha mais força nenhuma. 

- Não, vira! - E eu obedeci. Por que eu obedeci? 

- Marcel, seu idiota!

- Pode me xingar, eu mereço ouvir isso. É bom ouvir sua voz depois desse tempo todo, mesmo que seja pra me xingar. E eu não vou te soltar. Nunca mais. - Ele disse e eu senti meu corpo se encaixando no peito dele. Isso era perigoso.

- Marcel você... - E ele me interrompeu colocando as mãos nos meus ombros, e me puxando com força pra perto dele, colocando seus lábios nos meus. Me interrompendo com um beijo.

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