segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Confissões no Dia da Ira

Dies iræ! dies illa. Solvet sæclum in favilla. Teste David cum Sibylla!

Dia da Ira, aquele dia, em que os séculos dissolver-se-ão em cinza, (será) David com a Sibila por testemunha!

É o dia da dor, das correntes grossas que se arrastam, dos cativeiros aterrorizantes que nos assustam. Das prisões do corpo, da alma e do coração que fazem do homem um pobre prisioneiro de seus pecados e desejos mais sombrios, que o consomem como o fogo consome a brasa, transformando-a em cinzas. É o dia em que o homem vê toda sua gloria sendo reduzida ao nada, sua existência ao pó, seu ser voando ao vento, perdendo-se completamente num mundo de ventos impetuosos.  

O dia da ira é o dia em que tememos o mundo e tudo o que ele contém. Queremos fugir da terra, da vida e de tudo o que ela encerra. 

Quantus tremor est futurus, quando iudex est venturus, cuncta stricte discussurus!

Quanto terror está prestes a ser, quando o Juiz estiver para vir, em vias de julgar tudo severamente!

O dia da ira é o dia do tremor, do choro, do horror. É o dia do medo que nos domina, em vias de encontrar aquele que em nossa vida tem o poder de tudo ligar e desligar. É o dia de que queremos fugir, mas é também o dia que não podemos evitar, que chega sem avisar, que nos domina sem nem ao menos lutar. 

Os tentáculos da morte nos rodeiam, suas vinhas malditas nos seguram em seu abraço macabro. Eu nosso ouvido, seu sopro maldoso e fétido, que injeta em nosso ser o pavor e a podridão.

Tuba mirum spargens sonum per sepulchra regionum, coget omnes ante thronum.

A trombeta espargindo um som miraculoso pelos sepulcros da região, conduzirá todos diante do trono.

Há um som que a  nenhuma criatura pode escapar. Há um som que nenhum de nós pode deixar de ouvir. Há uma dor que ninguém pode deixar de sentir. Há um horror que a todos vai dominar. Há algo que faz renascer dentro de nós tudo aquilo que um dia lutamos para sepultar. Um amor, uma amizade, um medo, uma dor, ou tudo isso junto. Seja o que for, não há como fugir dos fantasmas do passado convocados para o juízo final. Não há como fugir sequer dos fantasmas do presente, que insistem em nos machucar, nos ferir e depois, partir, certos de que nos mataram, sorrindo de nossa desgraça... 

Mors stupebit et natura, cum resurget creatura, iudicanti responsura.

A morte ficará paralisada, também a natureza, quando ressurgir a criatura prestes a responder ao que está julgando.

No meu dia de ira, tudo fica extático. Não consigo perceber o mundo que se move ao meu redor. No meu dia da ira o meu julgamento tem apenas um veredito: a minha morte é decretada, e meu carrasco não é outro senão aquele ao qual eu entreguei o meu coração de bom grado, a quem me dediquei servilmente, a quem entreguei o punhal para que no momento certo me esfaqueasse as costas e depois o coração, espalhando pela terra o sangue que há de alimentar os vermes que nela habitam. 

Liber scriptus proferetur, in quo totum continetur, unde mundus iudicetur.

O Livro escrito será proferido, em que tudo está contido, de onde o mundo será julgado.

Dizem que três coisas não podem ficar ocultas por muito tempo, sendo elas o Sol, a Lua e a Verdade. O homem glorifica o sol, pois não há como fugir dele, e buscar abrigar-se da escuridão que cobre o mundo quando a Lua sobre ao seu trono. A Verdade, por sua vez, faz os homens fugirem de si mesmo, e esvaziarem-se de tudo que possa lhes recordar de quem são, do que amam e do que querem. No entanto, no íntimo de nós repetimos continuamente o que tentamos esquecer com a mesma frequência. 

Iudex ergo cum sedebit, quidquid latet apparebit: nil inultum remanebit.

Quando, pois, o juiz se assentar, tudo oculto revelar-se-á, nada permanecerá sem castigo!

O homem tende a ocultar de si mesmo a verdade, seja no íntimo de seu coração ou nas palavras vazias que profere tolamente ao mundo. O homem oculta a verdade do outro na esperança de esquecer aquilo que lhe traz dor. Quando esta então é revelada a dor passa a pesar sobre as frágeis costas daqueles que nutrem no seu âmago uma esperança falsa de que um dia tudo será melhor. 

Há um juiz que tem o poder de trazer a luz a verdade que fora oculta nas trevas de nosso coração debilitado. O mundo? Deus? Quem detém a verdade que nos corta como aço frio?

A minha verdade é uma pessoa andando de costas para mim. Ele me deixando, ignorando meus gritos, minhas lágrimas. E eu sozinho, sentado no escuro, com a mão erguida em vias de implorar por clemência. Mas não há clemência, não há misericórdia. Não há uma segunda chance para as estirpes condenadas a solidão. Na há exílio no mundo para pessoas como eu. 

Quid sum miser tunc dicturus? Quem patronum rogaturus, cum vix iustus sit securus?

E eu pobre, que farei? A que patrono rogarei, quando apenas o justo esteja seguro?

Aqui não há ninguém que me possa escutar. Só há escuridão ao meu redor, e a fria sensação da solidão. Há apenas dor, horror, e o vento frio que sopra desde lugar nenhum até nenhum lugar. Fora deixado sozinho com meus fantasmas, prestes a me assassinar. E o meu fantasma tem a aparência de meu amado, a quem clamo por piedade, mas que com um sorriso no rosto ergue a espada para desferir-me um golpe mortal.

Rex tremendæ majestatis, qui salvandos salvas gratis, salva me, fons pietatis.

Rei de tremenda majestade, que salvais só por bondade, salvai-me, ó fonte de piedade.

Torno a clamar aquele que coroei como meu rei. Mas ele não o era. Não deveria estar ali, ocupando o pedestal onde do alto de sua majestade me condenou a morte. Não, isto não está certo. Só um é o Rei, só uma é a majestade, e eu não deveria entregá-la a ninguém mais.

Recordare, Iesu pie, quod sum causa tuæ viæ: ne me perdas illa die.

Recorda, piedoso Jesus, Que sou a causa de tua Via: não me percas nesse dia.

Perdoai-me Senhor, por colocar em teu lugar um outro homem. Por dar a ele o poder de me julgar, por dar a ele o que só a ti devia pertencer. Fiz dele o meu deus, deixei que ditasse como iria viver, tudo o que iria fazer. Deixei que me dominasse completamente, e sem titubear dei a ele minha completa devoção. Quando então em vias de clemência me encontrava, achei apenas a dor, e um grandioso Não!

Quærens me, sedisti lassus:redemisti Crucem passus: tantus labor non sit cassus.

Buscando-me, sentaste exausto, sofrendo na Cruz, redimiste(-me): que Tamanho trabalho não seja em vão.

Eu me esqueci de ti. Esqueci tudo o que fizestes por mim. Me entreguei aos meus desejos, e agora volto arrependido, pois vi que não poderia ser feliz buscando aquilo que nunca terei. No entanto minha contrição é imperfeita. Temo que se tivesse encontrado o que buscava não teria me lembrado de ti. Sou eu o traidor, sou eu o merecedor da condenação eterna.

Iuste iudex ultionis, donum fac remissionis ante diem rationis.

Juiz justo da vingança, dai-me do dom da remissão, antes do dia do julgamento.

E mesmo depois de perceber o quão errado estava, depois de perceber ter cavado minha própria cova e buscado com afinco minha própria condenação, eu percebo que ainda desejo a vingança. Mais um pecado para minha longa lista. Mas não a vingança de sangue, de ferir quem me feriu, mas a de vingar-me do destino que me fez passar por coisas tão cruéis. Há em mim ainda um masoquismo inerente, que me faz querer que tudo não tenha passado de um pesadelo maldito, que quando acordar terei ele comigo, ao meu lado, e de que não terá partido, me deixando sozinho na penumbra da noite.

Ingemisco, tamquam reus: culpa rubet vultus meus: supplicanti parce, Deus.

Gemo, tal qual um réu: minha culpa enrubesce-me o semblante, poupa a quem está suplicando, ó Deus!

Vês, o quão traidor eu sou? Vês a imensidão da miséria de meu coração? Aquele que acreditava só ter amor, tinha apenas a fragrância apodrecida do pecado que me corrompera a carne. Tenho vergonha até mesmo de pedir perdão. Não mereço o perdão, mas preciso dele, preciso dele para colocar Deus de volta ao seu lugar. Preciso dele para que um homem não possa governar a minha vida, para que não tenha o poder de me fazer sorrir e chorar quando bem entender. Preciso dele, preciso de Deus, mas também preciso dele... E o quanto me dói na alma admitir que ainda preciso dele, que preciso de seu sorriso, de seu abraço, de seu toque, de seu cheiro, de seu Boa Noite. Preciso dele, e preciso dele aqui comigo... 

Qui Mariam absolvisti, et latronem exaudisti, mihi quoque spem dedisti.

Tu que perdoaste a Maria (Madalena), e ouviste atento ao ladrão, também a mim deste esperança.

Será que há para mim esperança? Será que há luz no mundo para alguém que já habita as profundas geenas? 

Já não vejo mais a luz. Já não sei o que é esperança. Já não a vejo como algo bom, como uma centelha de luz que brilha em meio a escuridão. A esperança é para mim um algoz, uma figura que de sua capa preta tira o mais pavorosos instrumentos de tortura. A esperança é para mim a destruidora de minha razão, a matadora do meu coração. É graças a esperança que eu sempre volto a acreditar no amor, que eu volto a pensar que ele não poderá mais me machucar, mas basta que eu diga essas palavras, para que ele volte a tentar me matar, para que ele volte a me torturar. 

Preces meæ non sunt dignæ: sed tu bonus fac benigne, ne perenni cremer igne.

Minhas preces não são dignas, mas, tu (és) bom, age com bondade, para que eu não seja queimado pelo fogo eterno.

Purifica-me Senhor com teu fogo. Purifica-me com tua justiça. Torna-me puro aos vossos olhos. Torna-me puro, sem mancha do sentimento que tanto me afundou, sem aquilo que coloquei em teu lugar. 

Inter oves locum præsta, et ab hædis me sequestra, statuens in parte dextra.

Entre as ovelhas dispõe um abrigo, retira-me para longe dos bodes, coloca-me de pé à Vossa direita;

Será que ainda há para mim um lugar seguro embaixo de tuas asas, ó Senhor? Um refúgio longe das coisas ruins que há no meu próprio coração? Onde os meus desejos mais primitivos não me possam achar?

Confutatis maledictis, flammis acribus addictis: voca me cum benedictis.

Condenados os malditos, lançados ao fogo ardente, chamai-me com os benditos.

Sempre me coloquei soberbamente na assembleia dos eleitos. Ilusão, vaidade! Estou contado entre os malditos. Condenado eternamente ao fogo ácido e infinito. O fogo que me consome em desejo, o fogo que me faz deixar de ser um homem, o fogo que me queima as entranhas, e que faz desejar o céu mesmo não passando de uma serpente a rastejar no chão imundo. 

Eu choro, e as lágrimas me queimam a face, assim como as chamas do inferno queimam os condenados. Um exército de demônios marcha em minha direção, como seu garfos afiados, a me torturarem pela eternidade. Mas poderão eles me dar condenação pior do que aquela que me deu o meu Amado? Não há no mundo dor pior do que a de ser abandonado. 

Oro supplex et acclinis, cor contritum quasi cinis: gere curam mei finis.

Oro-Vos, rogo-Vos de joelhos, com o coração contrito em cinzas, cuidai do meu fim.

Sinto que ele se aproxima. Sinto que não há mais muito tempo no mundo para mim. Sinto que o coração de um homem não possa ser mais ferido e magoado do que isto. Sinto que já não há mais esperança para mim. Sinto que chega, enfim, o meu fim!

Lacrimosa dies illa, qua resurget ex favilla iudicandus homo reus. Huic ergo parce, Deus:

Lacrimoso aquele dia no qual, das cinzas, ressurgirá, para ser julgado, o homem réu. Perdoai-os, Senhor Deus

Eu chorei, o quanto chorei. Tudo o que sentira se foi para fora de mim naquelas grosas lágrimas de sangue. Não há em mim vestígio de outra coisa senão de tristeza e pesar por ter amado, amado demais, e sonhado com o amor, que não era amor, mas que apenas me trouxe a dor, me ensinou o que era o horror. 

E eu ainda choro, de pesar, de horror, de dor, quando me lembro o quanto me dei, o quanto me esforcei, o quanto lutei e vejo que de nada adiantou. Sou um soldado caído, que lutou uma batalha que nunca poderia ter vencido. Sou um pobre derrotado, um cão a lamber as próprias feridas. Sou um nada, pior que o verme das ruínas, sou menos que um homem, sou menos que um verme. Mas ainda sou capaz de chorar, e por isso essa tem sido a única coisa que eu tenho feito.

Pie Iesu Domine, dona eis requiem. Amen.

Piedoso Senhor Jesus, dai-lhes descanso eterno, Amém!

Dai-me o descanso eterno, Amém!

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