sexta-feira, 26 de abril de 2024

A fera que gritou EU no coração do mundo

Acho propício que, no atual estado da minha vida, retome aqueles diálogos dos episódios finais de Neon Genesis Evangelion, onde Shinji tenta descobrir a razão de sua existência ao mesmo tempo que encara a difícil realidade de dor que é a vida mesma. As perguntas são muitas, e ele questiona sua existência, o porquê e o para quem, ele percebe a dor que é estar sozinho mas também a dor que é estar próximo do outro, percebe o vazio fundamental do homem e a tentativa das almas de se unirem no Projeto da Instrumentalidade Humana. Mas, ao fim, ele encontra a resposta: mesmo em meio a dor, encontrar a si e sua natureza. 

Por que você pilota o EVA?

- Porque todo mundo mandou eu pilotar. 

É o único motivo para pilotá-lo?

- Como assim? É pelo bem da humanidade. Isso não é bom o bastante?

Então pilota pelo bem dos outros?

- É claro, tem alguma coisa errada nisso? Eu estou fazendo a coisa certa, e quando eu faço isso os outros apreciam, os outros gostam de mim.

- Você ta mentindo! Você é idiota? Você sabe muito bem que faz isso por você mesmo! Você só ta inventando desculpas como sempre faz!

- Eu faço isso?

 - Fingindo que ta se sacrificando pelo bem dos outros é só outra desculpa. Bancar o mártir te faz se sentir especial. 

- Eu não sei se isso é verdade...

 - Está se sentindo solitário e isolado, só isso!

- Estou?

 - Claro que está! Você vive de compaixão e consegue isso com seu EVA Shinji!

- Isso pode ser verdade...

 - Você adora que os outros dependam de você e isso satisfaz sua pequena mente distorcida!

- Ergh, pode ser... Ah.

 - Se quiser a verdadeira felicidade, vai ter que encontrar ela sozinho! E não ficar esperando que alguém a dê pra você!
 - Mas não é isso que você tem feito?

Ele se equilibra entre Rey, que não se encaixa como humana e nem como imitação, e Kaworu que se encaixa tão perfeitamente que nem precisa de ajustes ao se ligar ao EVA. 

Conexão.

Shinji nunca havia se conectado com ninguém, vivera sozinho e mesmo na série, não entendia as posições de Misato, de Asuka, de Rey e muito menos de seu pai. Ele tentou pilotar para ser aceito, tentou mudar a si enfrentando uma situação difícil e dolorosa, mas para ser aceito, e não porque era a sua missão. Quando ele aceita que a decisão final, aquela que poderia colocar fim as dores do mundo, mas a troco da individualidade, ou manter essa individualidade, acompanhada de todas as dores que vêm com ela, ele entende seu papel e, assumindo como o centro de seu Ser, ele se torna a fera que gritou EU no coração do mundo. Ele aceita a dor de ser quem ele é, fraco, mas, ao mesmo tempo, o único capaz de tomar a decisão por si. E então ele se vê novamente de volta ao seu corpo, dolorido das batalhas, mas seu corpo, agora em harmonia com sua mente, que ainda vê seus medos, mas consegue enfrentá-los e sua alma, sua porção mais elevada, única, parte do todo. 

Ele percebe que deixar de existir não é seu destino, mas aceitar sua existência, encarar a missão de ser ele mesmo, isso é o que o fará ser aceito, não porque ser aceito é seu objetivo, mas porque quando ele não sabia quem era os outros não tinham a quem aceitar, senão que vinham apenas um objeto a ser comandado.

Esse excurso não é uma digressão sem sentido, mas é um caminho que eu já havia visto e entendido como a missão de Shinji, e o caminho do próprio autor, mas não tinha ainda entendido que era também o meu caminho: aceitar ser quem sou. 

Caso 3 - Shinji Ikari

Medo

- Tenho medo de desaparecer.

- Eu posso desaparecer porque não mereço existir.

- Por que acha isso?
- Porque eu sou inútil.

Eu não sou desejado. Eu sou uma criança inútil. E você não se importa mesmo comigo não é?

- Usar isso como desculpa é a mesma coisa que fugir. O que você teme mesmo é falhar. Você tem medo de ser odiado pelos outros. Tem medo de reconhecer essa fraqueza até pra si mesmo. 

Como pode me criticar quando faz a mesma coisa?

 - Você tem razão. No íntimo somos todos iguais. 
- Nossas mentes carecem de algo básico.
- E tememos a carência.
- Nós a tememos.
- É por isso que estamos tentando nos tornar um.
- Nos fundiremos e preencheremos uns aos outros.
- Esse é o Projeto de Instrumentalidade.
- A Humanidade não pode viver sem estar cercada uns pelos outros.
- A Humanidade não pode viver sozinha.
- Embora você mesmo seja único.
Por isso minha vida é difícil.
- Por isso minha vida é triste e vazia.
- Você quer a afeição e a presença física e mental dos outros.
- É por isso que queremos nos tornar unos.
- A alma humana é feita de elementos fracos e frágeis.
- O corpo e a mente também são feitos de componentes frágeis. 
- Então através da Instrumentalidade a Humanidade deve preencher e complementar uns aos outros. Não pergunte porquê, não existe outra maneira de existir.

Verdade?

- Por que você existe?

Eu não sei

- Talvez eu exista pra descobrir porque eu existo.
- Pra quem você existe?
- Pra mim mesma, é claro. 

- Talvez pra mim mesmo.

Isso está bem longe de apenas uma afirmação externa e superficial como fazem tantas pessoas, mas uma aceitação profunda que, por sua vez, tem impacto no externo. 

Me recordo que disse, ontem mesmo, ao meu afilhado, que minhas atitudes negativas eram o motivo de eu afastar as pessoas, e não minha aparência, como suspeitava. Isso porque esse negativismo é fruto do não aceitar quem sou, com minhas qualidades e potencialidades, mas também dos meus limites, do meu respeito a mim mesmo. 

E é nesse ciclo que espero entrar agora, de entender meus limites, de não me forçar mais a estar onde não quero, com quem não quero, de não ficar triste por estar sozinho, de aceitar, aceitar com firmeza e explorar o que posso ser, isto é, continuar a querer aprender e ensinar o que for possível. Acho que esse é o único caminho.  

Encontrar nos meus momentos a sós, começar a sair sozinho, seja nos cafés ou cinemas, parques ou o que for, aprender a me sentir confortável com a solidão e torná-la solitude, só assim posso me preparar para ser não um problema para mim mesmo.

Cada linha que escrevo contém tudo de mim, e ninguém nunca entende nada. 

~

Trechos retirados dos últimos episódios de Neon Genesis Evangelion

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Busca

Lovers, Jaroslaw Datta

"Ah, o amor, sabe... O corpo, o amor, a morte, esses três formam um só." (Thomas Mann)

Passei a tarde pensativo e, admito, bastante deprimido, o que não é novidade. Por alguma razão ficava abrindo o aplicativo de encontros casuais, até que acabei marcando um encontro. 

Se preciso começar por me amar, por encontrar em mim o suficiente para não buscar no outro, se precisa ser assim, talvez devesse buscar um apoio externo, algo que me fizesse sentir desejável, no mínimo, que elevasse minha autoestima. Eu sabia, já de antemão, que esse não era o caminho certo, mas mesmo assim eu me arrumei rapidamente e fui assim mesmo, durante todo o caminho, mais ou menos vinte minutos, uma voz me dizia para voltar. 

Fui rejeitado, claro. Voltei perdido por aquelas ruas e demorei a encontrar meu rumo de volta. Vim o tempo todo amaldiçoando baixinho e me perguntando, por que é que todos conseguem, menos eu? Qualquer um, marca um encontro no Grindr e consegue o que quer, eu não consigo nem mesmo isso, eu sou tão diferente assim dos outros? E você, você me rejeitou, mas por que até mesmo estranhos me rejeitam desse jeito? Qual é o problema comigo? Se não posso ser desejado por você, por que é que nem pelos outros eu posso ser desejado?

Acabei passando na igreja que fica no caminho para minha casa, sob os olhares confusos daqueles que não esperavam me ver ali aquela hora, com a celebração já em andamento, suado e com a expressão alucinada. Me sentei na sala do Santíssimo Sacramento, e ouvi toda a Liturgia da Palavra, especialmente quando o salmo cantava "É melhor buscar refúgio no Senhor, do que pôr no ser humano a esperança" (Sl 118), mas não ouvi muito, além disso, embora essa frase tenha ecoado, e talvez tenha sido isso que Ele que quisera me dizer ali, enquanto o olhava, envergonhado, com uma camisinha e lubrificante no bolso, diante do Sacrário, confessando toda a minha baixeza e desejo pelo pecado, além da minha óbvia condenação.

Agora, de volta ao meu quarto, pensei em dormir, e não responder mais você, mas acho que seria só criar outro problema. Mas os questionamentos continuam. Se não posso ser desejado por você, por que é que nem pelos outros eu posso ser desejado?

Vim o tempo todo amaldiçoando baixinho e me perguntando, por que é que todos conseguem, menos eu? Qualquer um marca um encontro no Grindr e consegue o que quer, eu não consigo nem mesmo isso, eu sou tão diferente assim dos outros? E você, você me rejeitou, mas por que até mesmo estranhos me rejeitam desse jeito? Qual é o problema comigo? Se não posso ser desejado por você, por que é que nem pelos outros eu posso ser desejado?

Pensei até em falar sobre isso com você, mas de que adiantaria? Eu ainda acho que você nunca levou a sério meus sentimentos. Ou não acredita neles, ou, se acredita, não se importa. Mas, afinal, por que haveria de se importar, não é? Em nenhum momento você pediu por esses sentimentos. Eu que os entreguei assim, de bom grado. Não, não vou te enviar, e se ler aqui é porque sabe que não tenho outro lugar para escrever ou com quem conversar, eu não tenho mais ninguém, e você ainda ousa me perguntar por que é que não te conto minhas decepções amorosas, em mais uma cômica demonstração de que não acredita ou não se importa comigo, já que meu único amor é você. 

No fim, me resta só mesmo o grande vazio e o questionamento: qual é o problema comigo? Se não posso ser desejado por você, por que é que nem pelos outros eu posso ser desejado?

Foi necessária uma noite e uma manhã, durante um estudo sobre História da Igreja, num capítulo sobre Santo Agostinho, o contato com esse gigante que durante décadas também buscou por respostas, para que eu percebesse que, esse tempo todo, apenas estive andando em círculos.

Cada linha que escrevo contém tudo de mim, e ninguém nunca entende nada. Fiz rudo o que podia, agora depende apenas de sua compreensão e do seu livre arbítrio.

"Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova. Tarde Te amei! Trinta anos estive longe de Deus, mas, durante esse tempo, algo se movia dentro do meu coração. Eu era inquieto, alguém que buscava a felicidade, buscava algo que não achava. (...) Durante os anos de minha juventude, pus meu coração em coisas exteriores que só faziam me afastar, cada vez mais, d’Aquele a Quem meu coração, sem saber, desejava. Eis que estavas dentro e eu fora! Seguravam-me longe de Ti as coisas que não existiriam senão em Ti. Estavas comigo e não eu Contigo." (Santo Agostinho)

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Sobre a Liberdade de Expressão

Eu vou tentar ser breve nessa argumentação por duas razões: a análise aprofundada de um conceito como liberdade seria demasiado complexa e é caberia só a um cientista político bem mais experiente, e por que acho que a presente situação não carece de maiores exemplos, sendo que, em si, já demonstra porque é insustentável. 

Em primeiro lugar, o Prof. Olavo de Carvalho explique que "a liberdade, embora clara e nítida enquanto vivência subjetiva, não se deixa traduzir facilmente num conceito classificatório que se possa aplicar à variedade das situações de fato. A noção e a própria experiência da liberdade são de natureza essencialmente escalar e relativa" isso significa que a liberdade é mais ou menos a margem de manobra que temos dentro de algo maior e mais palpável, que é a ordem, aqui entendida também num sentido escalar desde, por exemplo, a ordem que você tem dentro de casa ao obedecer sua mãe ou na escola ao obedecer um professor até então a ordem de um estado. 

Essa margem de manobra é maior ou menor a depender de cada realidade particular. Alunos do colégio precisam pedir para sair de sala, enquanto na universidade podem entrar e sair ou simplesmente escolher não assistir essa ou aquela aula para estudar para uma prova ou beber com os amigos. Em ambos os casos, e incluindo aqui então a liberdade de expressão, o sujeito encara a consequência do que faz, e diz, justamente porque o faz ou diz. 

O seu exemplo ao citar Sócrates é elementar: embora Sócrates tenha sido condenado pelo que disseram que ele disse e não pelo que ele de fato tenha dito, o que ele disse permaneceu justamente porque ele o pôde dizer, até o momento em que, morto, nada mais disse nem lhe foi perguntado. Mas, apesar de sua morta, cá estamos nós, dois mil e quinhentos anos depois, falando dele, justamente porque ele disse. 

No clássico 1984 de George Orwell vemos a importância que o controle das palavras pode ter para um povo: poder dizer o que se pensa é pensar, pois pensar é, antes de tudo, dizer para si antes de dizer ao outro. Se controlo primeiro o que se pode ser dito, logo controlo também o que pode ser pensado. Ao excluir ou colocar em circulação certas palavras, ou conceitos é possível controlar o que se pensa a respeito do assunto, inclusive escondendo completamente o objeto atrás de discussões de ordem elevada e de aparência intelectual. 

Basicamente você pode imaginar um grupo de jovens que nunca trabalharam um dia sequer e que se reúnem num prédio caro, indo até lá cada um no seu carro ganhado de presente, para discutir a desigualdade social em termos como luta de classe e tantos outros consolidados na universidade quando, atrás desse mesmo prédio, um morador de rua dorme ao relento e é ignorado pelos mesmos intelectuais que, ao sair de sua reunião, vão se reunir novamente num barzinho para continuar suas conversações de modo menos sério. O objeto do qual estão falando, o pobre moribundo que passa frio e fome ali abaixo, está escondido atrás desses conceitos. 

Isso nos mostra a complexa relação entre palavra e pensamento, outro assunto complexo, mas que, em resumidas linhas, trata da tradução da realidade percebida em palavras que, por sua vez, também são uma realidade a ser percebida e, portanto, modificada. 

Esse longo excurso serve para mostrar que quem controla o que se pode ser dito controla também o que os outros pensam, ou seja, ao dizer que um órgão pode definir o que pode ou não ser dito não significa que ele vai, como alega, defender a liberdade de dizer apenas o que é correto, mas que ele é quem vai decidir o que é correto e, logo, ditar o que todos acham por correto. 

Num país como o nosso onde a grande mídia é controlada por uma meia dúzia de pessoas que ninguém sabe quem são, a internet se tornou então a terra de ninguém onde esses não podem controlar o que é dito e pensado. Isso porque numa lógica onde apenas o que vai gerar lucro ao dono da mídia é dito e propagado, as milhares de outras realidades só ganham espaço onde dificilmente renderão algum dinheiro. Não sem pagar o preço, como Sócrates, de que o calem em algum momento, mas se puder ser dito, a palavra fomentará o pensamento e, novamente como o sábio de Atenas, permanecerá. 

Quando um sujeito então diz que irá regular todos os lugares por onde as pessoas dizem algo, ele, no fundo, está se arrogando o título de juri, juiz e executor, não da verdade que diz defender, mas da verdade que lhe será mais conveniente. Ele não controlará o que pode ser dito, deseja controlar até o que pode ser pensado. Se aceitamos o início do cerceamento do que podemos dizer, ainda que sejam as maiores atrocidades e absurdidades, não teremos sequer vontade de reagir quando já não pudermos nem mesmo pensar algo que não esteja nos termos de autorização devidamente preparados. Como o protagonista do livro de Orwell, seja por meio da violência física ou psicológica, ou de ambas, o corpo e a mente enfraquecidos pelo ambiente ao redor já não poderão conceber nada diferente do poder absoluto daqueles que ditam o que pensamos.

"Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada."

(Eduardo Alves da Costa)

terça-feira, 23 de abril de 2024

Sobre Descarregar

Fiz um comentário até bobo, en passant, sobre mim e, de algum modo, sobre nós. Em meio a uma profunda compreensão da dimensão comunitária das nossas relações. No meio de questionamentos intelectuais, de moralismos religiosos baixos e vazios, disse algo que poderia chocar, que precisava, ao invés de controvérsias amorosas que não podemos controlar, simplesmente dar para alguém. Com efeito, alguns dias essa semana fui tomado de tamanha revolta e tesão incontido que teria dado para o primeiro que aparecesse, mas não apareceu nenhum, como de costume.

Isso porque me referia a uma necessidade de descarregar, de algum modo, todos esses sentimentos e desejos que vêm se acumulando aqui dentro de mim, e que preciso simplesmente dar vazão, porque às vezes parece que apenas palavras não bastam. Que elas não conseguem conter a profundidade quase abissal de toda essa dimensão. 

Refiro-me a isso como dimensão, pois não se trata de apenas um aspecto. Não é uma sexualidade desregrada, não é apenas um desejo que não pode ser realizado, é algo bem maior, é um Ser em busca de algo, é um desespero (mais ou menos no sentido parecido com aquele colocado por Kierkegaard), é uma realidade que compreende meu Eu profundo, que abarca então todas as outras áreas menores que compõem esse mesmo Eu. 

E talvez na lascívia extrema, no entregar-se físico, na avulsão da forma nívea até mesmo exagerada, algo consiga escapar em mim e, assim, aquietar um pouco mais de toda essa inconformação que já vem se mostrando quase permanente, mas a qual eu não posso me acostumar. É por isso que dei local então a essa fala de que, na minha situação, eu poderia bem dar para qualquer um que aparecesse e que, até mais ainda, preciso fazer isso, preciso descarregar de algum modo, já que a vida me deu uma profunda necessidade de algo que eu nem mesmo sei o que é, mas que se revira de tal que meu ser se encontra em completa desordem. 

X

O que tenho notado não são insinuações, são apenas leves gracejos, tão breves que talvez nem sejam conscientes, mas que têm por objetivo me afastarem. São comentários em tons que quase chegam a ser ofensivos, como se dissessem: eis o limite que você não deve ultrapassar!

Venho entendendo, pouco a pouco, que eu preciso mudar, realinhar as coisas dentro de mim, antes de decidir o que fazer. Que não é certo me doar tanto e esperar em troca onde nunca me foi oferecido isso, que não é certo que faça sozinho todos os papéis de uma relação que apenas meu livre arbítrio. Que não é certo, acima de tudo, que eu coloque o outro tão em conta que esqueça de mim mesmo, quando, no fim, na noite escura, eu apenas tenho a mim, e isso já deveria ser suficiente, pois sou composto de tantas partes, tantas camadas que se complementam, que já não preciso do outro para ser, senão que podemos nos unir para construir, mas que essa construção deve ser decisão de ambos, não apenas da minha vontade que me força a me adaptar, fazendo com que tantas vezes me machuque sem ver com isso nenhum resultado. 

Isso me mostra o peso de todos esses anos fazendo tudo isso, me anulando em função do outro, e agora veio a conta: já não tenho mais o que oferecer. Mas isso precisa mudar, preciso encontrar em mim algo que admire e ame, de modo que não precise buscar no outro nada senão a construção. Devo então respeitar até mesmo a dor, a dor que não queria sentir de novo, a dor das feridas de todos os abandonos, porque enquanto doador eu buscava apenas quem recebia e partia. Devo me centralizar antes de tudo, me encontrar, encontrar aquilo que perdi ao entregar tudo ao outro, encontrar o que me faz ser eu mesmo, me reconectar com meu Eu profundo e eterno. 

O que venho tentando dizer é que preciso encontrar um modo de reequilibrar aquilo que deixei se perder: o quem sou eu.

Fiz tudo o que podia, agora depende apenas de sua compreensão e do seu livre arbítrio, e de você ter a coragem, ou misericórdia, de me dizer as coisas com clareza...

"Não tema as rachaduras, é por elas que entram a luz." (Desconhecido)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Um pouco de caos

"Estava cansado de amar sem resultados; depois começava a sentir aquela prostração causada pela repetição da mesma vida, quando nenhum interesse a dirige e nenhuma esperança a sustenta. Estava tão entendiado de Yonville e dos yonvillenses, que a visão de certas pessoas, de certas casas, irritava-o até não poder aguentar." (Gustave Flaubert)

Indo e voltando sem muita vontade de nada. 

Os homens bonitos da cidade já não me chamam atenção, só faço todos os dias o mesmo trajeto, de casa para o trabalho e de volta pra casa, ocasionalmente também para a igreja, mas sempre pedindo que possa voltar logo pra casa, para dormir e me recolher a doçura onírica do não ser. Também lá não encontro amigos ou companheiros.

Preciso me cuidar para não cair em depressão ainda mais profunda. Em dias, e noites, assim eu me obrigo a continuar assistindo, mais um episódio que seja, a tomar mais uma taça de vinho ou comer algum doce, mesmo que não queria nada disso, apenas porque sei que, se me acostumar a ir dormir todos os dias isso vai piorar mais e mais...

Ainda assim eu não quero ir naquela reunião, não quero ter mais ocupações do que consigo realizar, não quero ir naquele grupo de jovens em que vão ficar cantando, dançando e gritando as músicas mais bregas em local que deveria ser sagrado... Não quero. 

Hoje lançou o trailer da nova série do Sarin com o Great que deve sair no fim do mês e, embora o tom seja menos cômico que o do primeiro apresentado no evento do ano passado, fico feliz de poder ver ele de novo num BL, mesmo depois de ter me obrigado a ver todos os episódios daquele lakorn hétero que ele fez. 

Eu ciclei essa semana e parece ser um episódio misto, sinto meu corpo eufórico mas a mente em completa apatia, ao mesmo tempo que sinto dores por várias partes enquanto entro como num turbilhão mental. 

Orçamentos, 

projetores, 

cálculos, 

grupos escolares, 

limpeza de obras, 

cirurgias, 

o bumbum do Sarin. 

Parece que tudo vem ao mesmo tempo. E eu preciso parar, 

reorganizar, 

e ai sentam ao meu lado, e me trazem mais problemas, e meus olhos doem, e meu corpo dói, e eu queria voltar pra minha cama, ao mesmo tempo que queria ficar bem longe de casa, não ouvir nenhum problema mais, nem as dívidas, nem as crianças que vão nascer, nem a escala do fim de semana. 

Talvez eu queira conhecer aquele garoto magro e sério do ônibus do Vila Nova que encontro alguns dias pela manhã. De olhos fundos e fixos no celular. Talvez devesse dar um jeito de me apresentar a ele, de conseguir fazer com que a gente vire um casal e se mude pra um geminado em algum lugar mais perto do trabalho, assim teria algum lugar para voltar no fim do dia um pouco mais feliz, talvez não fosse como agora que quero a minha cama mas não quero a minha casa. 

E hoje em algum momento do trajeto da minha casa ao ponto de ônibus eu perdi meu lenço, e não vi o rapaz bonito e vim o caminho todo cantando a versão do Matthew Morrison e Kristin Chenoweth em Glee para One Less Bell To Answer e A House is Not a Home, imaginando um dueto com alguém que eu sei que nunca ouviu essa música. Já tomei café três vezes hoje, e talvez me ataque a ansiedade mais tarde. 

Penso brevemente que, como diz a música, "uma cadeira não é uma casa e uma casa não é um lar se não tem alguém te esperando lá", e talvez se ele estivesse me esperando eu tivesse um lar para retornar. Mas ele nem sabe meu nome, de onde tirei isso? Cada linha que escrevo contém tudo de mim, e ninguém nunca entende nada. Fiz rudo o que podia, agora depende apenas de sua compreensão e do seu livre arbítrio, e se você você tivesse a coragem, ou misericórdia, de me dizer as coisas com clareza...

É, nisso tudo só o que posso dizer é que o bumbum do Sarin está fenomenal.

"Sonharás uns amores de romance, quase impossíveis? Digo-lhe que faz mal, que é melhor, muito melhor, contentar-se com a realidade; se ela não é brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir." (Machado de Assis) 

domingo, 21 de abril de 2024

Um Símbolo

Foto: Duong-Quan

"É horrível que a beleza seja uma coisa não só terrível, mas também misteriosa. Aí lutam o diabo e Deus, e o campo de batalha é o coração dos homens." (Fiódor Dostoiévski)

Imagens de sombra e luz que ecoam pelo meu ser. Tenho graves questões quanto a meu Eu, minha revolta contra a existência é quase permanente mas, ao mesmo tempo, quando me deparo com coisas como essa, sinto como se algo dentro de mim fizesse sentido. 

Já há tempos sigo um casal vietnamita nas redes sociais, e eles sempre compartilham imagens bem íntimas de sua rotina. Quando digo intimas me refiro a registros feitos durante o sexo, ou imediatamente após, todos com uma estética própria e que eles exploram, de modo a combinar o romance com a sensualidade, algumas vezes explícita. 

Quem vê de fora, pode até estranhar e achar apenas imoral. Outros podem pensar que eu apenas me sinto atraído pelo conteúdo porque me sinto afetado pelo fato de serem um casal, o que poderia ser uma demonstração de afetação pelo desejo de ter, viver, algo do tipo. Não excluo essa hipótese, mas acho que ela não explica totalmente o que se passa. 

Acontece que as imagens de sombra e luz daqueles dois me dizem muito mais do que apenas sugerem. Elas apontam pra uma realidade que não está ali, mas ao mesmo tempo estampam uma proximidade, uma intimidade, que me é sim desejada. 

Ver o sol entrando pela janela e tocando os corpos daquele jeito, como as carícias que certamente trocaram na última noite. Os beijos apaixondos, os toques repletos desse desejo, os olhares luxuriosos, algumas partes dos corpos que deixam transparecer que, por trás daquele leve pedaço de tecido há um corpo ardente. 

Essas imagens poderia muito bem ser apenas uma visão que eles não compartilham com ninguém, mas concordo com quem deles teve a ideia de partilhar pois, sendo algo tão lindo quanto aqueles corpos apaixonados, nós de fora também merecemos poder ver algo assim. 

Há beleza no corpo, há beleza na união carnal, há beleza no amor ali apontado. Há uma beleza que vejo e admiro, que me faz ter aquela resolução que tive ao contemplar o torso arcaico de Apolo. As imagens de sombra e luz daqueles dois me fazem ter uma pausa, me obrigar a sair do meio da turba barulhenta e a contemplar, em silêncio, a intimidade compartilhada, a imaginar a delicadeza dos toques, das carícias, dos momentos que eles vivem juntos e, quem sabe, também permitir sonhar um pouco que seja. 

Claro que isso me coloca também em perspectiva de outras reflexões, já que falar do belo que essa experiência me traz se mostrou tão limitado. 

Uma vez mais me vem pensamentos acerca da sexualidade, ou melhor, das expressões de afeto e carinho que temos um com o outro. Me recordo, por exemplo, de amigos que os outros pensavam ser meus namorados, dada nossa proximidade, tantas vezes confundidos como casais. Daí me vem que essas demonstrações não são e nem podem ser limitadas numa simples planilha e ou lista de comportamentos mais ou menos adequados, pois que a experiência real transcende e abarca os comportamentos tendo como ponto de partida não apenas o exterior do contato em si, mas num diálogo complexo entre os sentimentos e a forma que esses assumem externamente. 

Claro que entramos ainda na alçada do subjetivo, e o que tem significado profundo para um pode ser banal para outros... Não preciso nem citar uma situação mais do que atual onde um relacionamento tem quase todas as características de um namoro mas, de fato, não o é, sendo motivo de controvérsia não apenas para aqueles que veem de fora mas até mesmo para mim. 

Então, o que fica é apenas a percepção que alguns podem ter, do mero formalismo sensual e até pornográfico em alguns, mesmo com a apelação artística pra esse tipo de conteúdo, de outro fica um apontamento, um simbolo, no sentido de ser uma realidade que aponta para realidades distintas, mais elevadas ou não (o que é indiferente aqui). mas que significam uma realidade que me é cara, talvez justamente por me ser tão distante.

Cada linha que escrevo contém tudo de mim, e ninguém nunca entende nada. 

"Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura." (Julio Cortázar)

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Amor e vigília

Ocean Limited, Alex Colville

"Na solidão, onde todos se veem limitados aos seus próprios recursos, o indivíduo enxerga o que tem em si mesmo." (Arthur Schopenhauer)

Tenho buscado ficar em silêncio, por várias razões: cansei de me expressar, de dizer o que sinto, de me abrir e receber em troca apenas silêncio. Não quero mais me humilhar, mesmo que sempre acabe voltando e me humilhando. A verdade é que ele dará graças quando eu já não estiver mais de modo algum presente na vida dele. Isso se parece muito com algum tipo de sintoma bordeline, mas eu já estou desacreditado demais de mim mesmo para buscar algum tipo de ajuda. 

Ele esconde de mim seus anseios, e já compartilha apenas aquilo em que, de algum modo, posso ajudar. De certo modo é como todos os outros que só me procuram quando precisam de algo e me jogam fora quando não sou mais útil, e eu mesmo sei que sou bem inútil, portanto não preciso esperar que ele chegue a essa conclusão. Meu amor foi rejeitado, em todas as centenas de declarações, e eu não sou nada além disso, então não há porque falar, senão que me humilharia mais e mais. E se sou incompreendido por ele, do qual me fiz tão próximo, que se dirá dos estranhos que estão ao meu lado, e que me julgam com superioridade de espírito, baseados numa moral kantiana estúpida, me tomando como cristão hipócrita, do alto de suas cátedras de juízes supremos do certo e do errado. 

Sei que fui talvez meio grosseiro e ríspido, mas precisava dizer o que vinha me machucando, porque sendo eu um homem que se expressa de palavras estava já me vendo sufocado por elas, sufocado pelo amor que começou a se acumular no meu peito. Precisava dizer, a você, porque os outros já não significam nada para mim e, muito embora a perspectiva de não significar nada para você continue a me perseguir como fantasma à espreita, como leão que busca a quem devorar, eu senti, naquela hora, que precisava te dizer o que sinto de verdade.

Precisava dizer a você e não tinha intenção de te machucar, assim com você também nunca quis me machucar, mas ainda assim acabamos por ferir um ao outro. Comos chegamos a isso?

O fato é que estou cansado, de ser feito de idiota e desprezado, mesmo quando fui sincero em entregar meu coração. O fato é que prefiro ficar sozinho e esperar pelo meu fim, do que ficar a espera de migalhas enquanto meu fim se aproxima do mesmo modo. Ficaria feliz, genuinamente feliz, se a morte se apresentasse a mim ainda hoje. Onde está tu, ó velha amiga?

"Eu não sabia que o amor requer vigília." (Raduan Nassar)

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Controvérsias

Não sei bem o que estou fazendo aqui, de certo modo parece que aceitei uma luta a qual já estava fadado a perder. Eu bem sabia que não podia ter esperanças muito grandes, quando me chamaram para coordenar a liturgia eu sabia dos limites desse cargo e ainda mais da comunidade, mas aceitei mesmo asaim, achando que poderia fazer algo, que poderia melhorar pelo menos um pouco. Mas, quanto mais os dias passam, mais eu vejo que as pessoas estão menos preocupadas em descobrir os desouros divinos presentes nas celebrações, do que expressarem, cada uma, as suas próprias convicções nos formatos mais toscos que elas possam acreditar. 

Até tentei encarar um pouco os estudos e debates ao redor da liturgia pelo Brasil, e muito se fala sobre redescobrir o verdadeiro valor das celebrações, seja por aqueles que buscam trabalhar a formação litúrgica estritamente nos moldes do Concílio Vaticano II ou ainda os que o rejeitam e buscam uma restauração, seja total, agora ainda mais difícil, depois das violentas sanções do Papa Francisco, ou ainda os que tentam dar continuidade ao minguado movimento de "reforma da reforma" de Bento XVI. Mas, os primeiros acabam numa celebração cada vez mais centrada em si mesmos, exemplificada pelos altares cada vez menores ao passo que a assembléia avança cada vez mais para um presbitério dessacralizado, enquanto os segundos caem num formalismo tão vazio quanto os de seus inimigos.

E eu sinceramente não sei o que faço aqui. Até pensei que poderia trabalhar com o pouco que me fosse dado, com uma pequena alteração do sentido do sagrado que se expresasse nas formas atuais do rito romano, mas ao que parece não sou tão bom formador quanto pensava. Ou tratam o que digo como mero formalismo ritual, ou simplesmente ignoram, em nome dos costumes idiotas criados com o propósito de integrar as pessoas na liturgia mas que são apenas expressão de uma mentalidade que já não é mais capaz de Deus, que no máximo se emociona num sentimentalismo barato provocado pela música e a essa emoção dá o nome de Deus. 

Eu sinceramente não sei o que estou fazendo aqui. E enquanto isso multiplicam as crianças vestidas de anjo (?) as músicas bregas e as controvérsias infrutiferas. 

terça-feira, 16 de abril de 2024

Eu, visões de uma cidade e silêncio

Self-portrait, Hirooki Hatori

De algum modo experimento sim aquela satisfação depois de uma missão difícil. Ver que as exposições estavam prontas dentro do prazo, com o mínimo de problemas, me mostraram que algo no meio de todo aquel esforço deu certo. Passar o dia ao lado de uma amiga querida tornou até mesmo o cansaço mais leve, e eu pude então não pensar muito naquilo que vinha evitando nos últimos dias. 

Consegui, por exemplo, me deixar levar pelo tempo que passei ao lado daquele mocinho que, pela primeira vez, falou comigo, sorriu pra mim de leve e compartilhou alguns pensamentos interessantes, que me fizeram crer que eu poderia sim, viver de algum modo aqui, quem sabe recomeçar de algum modo o meu coração. 

E nesses dias, mesmo quando eu já não podia mais lidar com nenhuma informação à mais, eu ainda me enfiava completamente no que precisava ser feito, me dedicando por completo, ao trabalho e a pastoral, tudo isso para ignorar um fato que se consumou quando li palavras simples, mas que confirmaram que, no meio disso tudo, meus sentimentos são apenas incômodos. 

Passei o dia então me esforçando pra falar inglês, sabendo que falhei miseravelmente algumas vezes mas que me fiz entender e fiz os outros serem entendidos, e isso basta, eu acho. 

Mas eu não quero agora ter que lidar com as pessoas mesquinhas da paróquia, que provavelmente gastaram longo minutos nessa tarde discutindo uma mensagem que eu não enviei e que causou um rebuliço enorme, mas que não conseguem entender o mínimo sobre o que realmente importa. 

E quando vinha embora, de pé no ônibus ou caminhando enquanto uma chuva pesada fustigava as minhas pernas, eu consegui compor linhas belíssimas sobre tudo isso que me aconteceu nos últimos dias, mas agora tudo o que consegui escrever foram essas breves palavras, secas e sem nenhuma poesia. 

Me recordo vagamente de estar muito consciente de mim mesmo ao passar a mão no cabelo olhando meu reflexo na janela, ao observar dois rapazes que provavelmente trocavam olhares cheios de significado num ônibus cheio de gente que só queria ir pra casa depois de um longo dia de trabalho, enquanto a maior parte da cidade pôde dormir ouvindo a chuva que caiu insistentemente o dia todo. 

Pude ficar perto dele, por vários minutos, e isso foi incrivel, ainda que sua personalidade me seja um mistério quase completo. Não pude transpor o muro que havia entre nós por conta da falta de contato, ele nem mesmo sabia que eu era o mesmo cara que sentara na mesma mesa que ele para comer um pedaço gorduroso de pizza numa noite do Festival de Dança de Joinville do ano passado e que, desde aquele dia, ele se tornou uma espécie de sonho meu, ao lado de outras figuras que, sendo reais, passaram a habitar meu pequeno universo onírico, repleto de moços bonitos e carinhosos. 

Pelo menos isso me deu um pouco de distanciamento daquela dor que, embora não tenha passado, cedeu brevemente. Obrigado, ó jovem que não se recordará de mim amanhã e que habita meus sonhos doces, obrigado amiga que me acompanhou em uma taça de vinho. 

Agora que o clarão da luz se apaga e todos dormem cansados, eu preciso então me isolar, não no mundo que vim evitando, mas no meu mundo, naquele onde os personagens encontram o amor nas mais diversas situações, e é nesse mundo, como Madame Bovary sonhava com os romances enquanto vivia no convento, eu vou sonhar com o amor impossível, ao lado de uma taça de vinho rosé e chocolate, deixando meu corpo, coração e mente entrarem lentamente numa atmosfera diferente, onde a dor não existe sem uma solução no próximo episódio e o onde o amor não é apenas mais um problema e amanhã, quando os mais animados talvez possam se unir para um churrasco ou sei lá o que mais o pessoal dessa cidade faz para se divertir, eu vou dormir, profundamente, sob efeito pesado de remédios proibidos. 

E do silêncio dele.

domingo, 14 de abril de 2024

Uma dor que vem de dentro

Preciso conseguir me posicionar, e dizer que não posso mais permitir ser sacrificado desse modo. Dar o meu melhor não significa dar tanto a ponto de não sobrar nada de mim mesmo, e isso precisa ficar claro. Preciso que reste algo, ainda que não muito, para que eu possa dar algo, me doar em algo, me dedicar a algo. É preciso que haja água no jarro que se derrama para lavar os pés do outro. 

E então me encosto num banco antigo de madeira, olho pela janela de grades pretas e o sol brilha forte lá fora, mesmo que tenha amanhecido chovendo e cinza, já chegando com os tênis molhados no trabalho, e as flores parecem respirar fundo um pouco de ar fresco, depois de dias de um calor incômodo. Ou talvez seja eu que esteja respirando fundo, ou suspirando, sentindo o cheiro do café na minha frente misturado com a essência de Peônia Doce que coloquei no ambiente. 

No meu peito aquela resolução que tomei num momento de tristeza profunda ecoa melancólicamente, como um violino que se esqueceu de terminar e prolongou demais as últimas notas de um adagio lamentoso. Eu não quero mais sofrer, mas não sei se tenho forças o bastante para romper com esse ciclo de dor. 

Ontem senti algo que há muito eu achei que não sentiria. Uma dor, igual a daquela em meu período mais obscuro, antes de entrar na depressão profunda, igual a que sentir pouco antes de ser abandonado por meus amigos, a dor que senti quando aquele homem me recusou um abraço e que exigiu que me aproximasse, me desculpasse e fosse como um padrinho para o relacionamento ideal que ele criou com uma mulher que eu sabia que não o queria e que eu sabia que o faria sofrer, não porque eu desejasse isso, mas porque sabia que, entre nós dois, só eu o amava de verdade. E então ele me desprezou, de modo tão desumanamente brutal que eu me fechei de tal que acabei mergulhando no abismo profundo da depressão por anos. 

Antes desse episódio, que hoje é apenas um borrão de meses na minha cabeça, eu sentia essa dor, essa ansiedade extrema, que me deixava sem comer por vários dias inteiros, que me fazia enjoar, que já me dificultava até mesmo fazer as coisas mais elementares que sempre fiz e fazia, e já não conseguia mais dar conta. Era um pesadelo pensar nele, estar com ele, saber que ele ia chegar. O que era um doce sonho se tornou um pesadelo tremendo. 

E essa dor voltou. 

E tem doído tanto, tanto, e parece que não há nada que eu possa fazer, mesmo querendo enfiar as mãos dentro de mim mesmo e arrancar todas as entranhas de modo a tirar também esse sentimento, mas não dá, e eu só fico aqui, sentindo essa dor, horrenda, que não cessa, não diminui e eu não consigo esquecer nem quando penso em outras coisas. 

Apenas dói, e dói, e continua doendo. 

E continua

doendo.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Adaga no Coração

"Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma"
(Fernando Pessoa)

Por alguma razão que talvez se encontre em algum lugar desse oceano profundo, há uma coincidência de momentos que fizeram com que uma amiga me perguntasse algumas cosias justamente quando estou pensando em assuntos desse tipo. Eu nunca tive grandes aspirações, até que me deparei com o ensino, quando percebi que meus amigos pediam que eu explicasse a matéria antes da prova porque conseguia fazer entender melhor que os professores (apenas das matérias humanas, diga-se. Até hoje não sei nem a tabuada nem conto troco no comércio). Isso me deu um indicativo do que seguir, e ainda hoje quando estudo algo ou explico algo pra alguém (de história das séries tailandesas até o Império Romano) é o único momento em que me sinto num caminho.

Afora isso eu sempre me senti, e hoje isso continua me perseguindo, deslocado por não saber o que queria ser. Meus amigos queriam ser policiais, funcionários publicos, eu nunca tive um sonho nem naquela época e já me achava estranho.

E agora me vejo revivendo uma situação em que, já não tendo um sonho, não tenho também um objetivo para prosseguir. Te digo com uma convicção brutal e peço desculpas se isso for um disparador de algo, mas nesse momento eu só estou continuando porque sim. Porque não tenho nenhuma vontade de fazer mais nada, e pior, as coisas que me rodeiam me machucam. e pior ainda: o que mais me machuca é aquilo que talvez deveria me curar, o meu próprio amor. 

Não me refiro a alguém, não é alguém que me machuca, ele não tem culpa disso, mas o que sinto, é o meu próprio coração que se maculou, que cravou em si mesmo uma adaga e que sangrou até que se esvaísse completamente. 

O amor deveria doer tanto assim? Se eu tanto amei, tanto amei, que mais eu podia ter feito para receber senão a indiferença e a distância? Que horror eu posso ter causado para assim ser punido? A quem tanto feri para que meu coração fosse assim ferido?

Uma noite mais eu adormeci profunamente por efeito dos remédios, não queria pensar em mais nada, não queria amar mais nada, não queria sentir mais nada pois, se sinto, é apenas a adaga no meu coração indo mais e mais fundo ao rasgar a minha carne. 

E então, na manhã que segue, chuvosa, cinza e melancólica, consegui um pouco de tão raro silêncio cá por essas bandas. E então decidi me permitir sangrar um pouco mais em palavras, chorar a minha sorte e, quem o sabe, penetrar o solo profundo e renascer verdejante uma vez mais, se possível. 

Decidi que não quero mais essa dor, e que preciso então arrancar as raízes dela que se fecharam ao redor do meu coração como as correntes daquele mestre que aprisiona seus inimigos em seus próprios termos. Preciso arrancar essas raízes, e com elas algumas partes de mim também serão destruídas, mas quem sabe com o aço dessas correntes eu possa forjar algo novo.

Que grande pranto que eu choro,
Meus olhos são água só;
Quem me conforta está longe,
Quem de mim sentia dó;
Meus filhos estão perdidos,
Venceu o forte, o maior...

(Lamentos de Jeremias)

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Aforismos

Plutão, Gustave Doré

"Minha vida tem sido de eternas buscas, caçadas, atos, conversas sem sentido ou ligações. Uma vida sem sentido." Ingmar Bergman, O Sétimo Selo

Acho que estou cansado de ser o funcionário responsável que só é recompensado com mais trabalho. Depois de dias estressantes quando espero conseguir descansar, sempre aparece outra emergência, e outra, e outra, e outra. E eu nunca consigo descansar, e as minhas costas nunca param de doer e eu não consigo parar de pensar nele, do outro lado do país, enquanto eu mexo com quadros e me estresso por não conseguir descansar e só queria um abraço apertado dele, que me deixasse encostar em seu ombro, sentir o seu cheiro e chorar baixinho. 

Aquele, o que me traiu com minha melhor amiga, ainda olha minhas coisas todos os dias, será que ele realmente vê, e ainda entende como parecia entender antes, ou é mais como um hábito tosco de tem quem apenas passa publicações sem ler ou ver o que está ali?

(+18)

Gosto da sensação de, ao menos, deixar uma parte do meu corpo mais livre ao usar roupas mais leves. Sem precisar usar nada por baixo também. Posso fantasiar estar de volta com ele ali, anos atrás, e abrir as pernas, deixando aparecer por entre o tecido fino e a minha mão cheia de lascívia, segurando e friccionando meu próprio membro com rapidez, enquanto o observava com olhos famintos, mantendo-o distante com um dos pés apoiado sobre seu peito. A avulsão nívea dando então a ele espaço para que se colocasse entre minha pernas, enquanto me recompunha a respiração ele me puxaria para seu colo e colocaria aquele tecido ainda mais para o lado, antes de me penetrar com raiva e força.

E agora, quando na madrugada não consigo dormir, me consumindo entre solidão e tesão, ninguém nem mesmo responde. Que patrono invocarei diante desse castigo?

X

Preciso de um abraço, necessito na verdade. Não é apenas carência ou a minha habitual expressão de um vazio afetivo, de um locus emocional ou algo assim, trata-se de uma vontade real, premente, profunda e quase palpável, como se o vazio dentro de mim por alguns instantes se tornasse tangível de modo a comprimir meus pulmões, fazendo-me arfar, em suspiros profundos de amor, em ânsias inflamado, como se ele pudesse crescer e aumentar mais e mais até me consumir por completo, até desaparecer comigo, até me fazer sumir num abismo escuro, profundo, frio, distante, vazio. Preciso de um abraço.

Algumas pessoas até percebem que estou cansado, é claro, o semblante está visivelmente abatido, o cansaço já é bem mais do que qualquer outro poderia aguentar. Mas ainda assim elas se recusam a permitir que eu descanse. É como se me dissessem claramente "eu sei que você está no limite, mas preciso que quebre esse limite e continue servindo até que não tenha mais serventia nenhuma." Sério, se elas dissessem isso claramente eu não iria me surpreender. 

E eu queria justamente evitar coisas desse tipo, evitar que elas se acumulassem, evitar que houvesse mais para fazer do que forças para executar. Mas foi em vão. É sempre tudo em vão. Uma amiga disse que talvez eu tenha aprendido a sempre guardar tudo numa bolsa e padecer em doses homeopáticas. Eu já estava muito cansado e já tinha me preparado pra apagar de sono quando ela disse isso então eu não sei se entendi, mas acho que ela tem toda razão. 

X

Às vezes acho que as pessoas têm um certo prazer sádico em me torturar. Elas me vêem nitidamente cansado e abatido, me perguntam e eu digo que estou cansado e abatido e que não aguento mais reuniões e reuniões e comissões e tudo isso, e aí então elas se compadecem, e dizem que preciso me cuidar, que ainda sou novo e não posso me entregar assim e nem viver descontroladamente. E então na frase seguinte elas me chamam para reuniões e comissões e reuniões de emergência e perguntas intermináveis e cobranças onde eu, e apenas eu, vou ficar tão cansado a ponto de qualquer um que me olhar vai dizer que estou cansado e abatido, e por estar cansado e abatido eu sequer tenho forças pra recusar.

"Se todo animal inspira ternura, o que houve então, com os homens?" (João Guimarães Rosa)

X

Ele não parece ter notado muito a minha presença, mas sim meus olhares, e eu admito que o olhei por ser uma figura peculiar. Ao mesmo tempo ele se apresenta uma figura delicada e viril, o que me deixou confuso. Não foram as tatuagens e nem os brincos, tampouco o ar sonolento num dia ou desperto noutro, foi alguma coisa no seu semblante, algo que me fez ter essas duas impressões ao mesmo tempo. Uma figura delicada, sensível, com um olhar feroz, assustador, que me faz desviar sempre que percebe que estou encarando-o. E achei meio mágico poder encostar nele, por uns breves instantes que fossem, e ele não tirou o braço de perto de mim. Apenas logo o ônibs chegou ao terminal e eu rapidamente levantei para descer.  Será um longo dia. 

X

Eu te amo, mesmo que você não dê a mínima pra isso. 

Eu devia ficar quieto quanto a isso. E mesmo que se desculpe, não tendo culpa alguma dos sentimentos que eu projetei em ti, ainda me dói muito. E nem mesmo tempo ou espaço para chorar eu tenho, senão que preciso suportar.

Preciso.

Mas até quando vou suportar?

E então eu encosto a minha cabeça na parede ao lado da minha mesa no escritório, fecho os olhos e me concentro numa parte dos Lamentos do Profeta Jeremias de Lassus, e então sinto o mundo girar, o meu corpo protestar e me sinto enjoado. Está acontecendo de novo, eu não posso acreditar, essa ebriedade maldita de um sentimento tão profundo e que me levou à loucura daquela vez, anos atrás, com aquele homem que ria de mim e que queria que eu fosse amigo da mulher que me machucava. Eu estou sentindo aquela dor, a pior de todas, a que me dilacerou a ponto de desistir de qualquer perspectiva de sonho ou futuro, a que me destruiu de tal modo que já não se pode dizer que sou mais do que uma casca seca, vazia, e se havia algo ainda em mim, agora não há mais. 

agora não há mais.

E vida que segue.

e segue

e segue.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Força e maturidade

Marooned, Howard Pyle

Aos homens mais fortes é dada não a fragilidade do feminino mas a força vital desse espectro. Aliás, sempre estranhei quando as pessoas ao meu redor falavam de mulheres como frágeis sendo que as pessoas que eu conhecia, e conheço e reconheço, como as mais fortes, eram justamente mulheres. Hoje, entendo que essa forma de dizer, que via justamente dos menininhos fracos da escola, era um tipo de compensação pela constatação da própria fraqueza e da força daquelas que, já na nossa idade, eram mais fortes do que nós. Até ao homem mais forte compete-lhe o sentir pelo ser que o gerou. Ainda que hoje renegue e maldiga essa existência, ainda que o ser lhe seja um fardo desagradável, ainda há no homem esse resquício de agradecimento, puro e íntimo, por aquela a quem rasgamos o ventre e viemos a este cenário de dementes. 

Aos poetas, que talvez sob o olhar dos outros homens sejam os mais fracos dentre os homens mesmo, é dado-lhes o sentir, o sofrer, o penar e, quem sabe, talvez participar dessa mesma apreensão íntima e que é compartilhada por todas as mães. Aos homens que choram por aquelas que os gerou, que conseguem sentir um pouco dessa insegurança diante do futuro desconhecido. 

Por isso, que mais posso fazer além de fechar os olhos e súplice oração, e pedir que ao menos se acalme meu coração, tão ferido e machucado, para conseguir terminar esse dia em paz. 

Não consegui dizer mais do que isso. Acho que estou preocupado demais pois, em uma hora, mais ou menos, minha mãe entrará na mesa de cirurgia e, pelo que me recordo, da última vez ela quase não saiu com vida. Por isso aquela apreensão da criança assustada retornam em preces desencontradas porém sinceras, mas também certas daquela resolução profunda que tomei tempos atrás, de que meu fim não poderia se dar antes do dela, mas caso seguisse o curso natural das coisas, eu não faria cerimônia em partir logo depois, visto que já não haveria por aqui ninguém mais a quem devesse a profunda dívida do existir. 

E acho também que fiquei sensível demais, me deixei afetar demais por isso. Acabando ficando meio irritadiço, mas bem, todos têm sua cota de extrapolação não? Ou será que só os outros podem reclamar por pouca coisa? Também eu posso reclamar como um bobo, ou não?

Diante do perigo da morte, o homem encontra então a régua com que pode medir as coisas que de fato importam nessa vida, as ideias dos náufragos como dizia o filósofo. Bom, no momento me encontro à deriva, e bem poucas coisas me tomam o lugar da mente, a maior dela continua sendo a imortalidade da alma, só consigo pensar nessa passagem, que todos chamam morte, que vejo como dizia São Francisco de Assis, como a uma irmã. 

Não espero por um milagre, tampouco espero uma catástrofe, e penso que isso é ser realista. Só o que posso é sentar esperar, passar um café, e torcer para que tudo dê certo, mesmo que ninguém nunca tenha me escutado.

"A velha garota era simplesmente mais uma criatura solitária em um mundo indiferente a todos nós." (Charles Bukowski)

X

"Todo o ouro que se acha sob o Sol não bastaria a dar repouso a uma só destas almas." (Dante Alighieri)

Mais uma vez eu envergonho o próprio caminho que decidi seguir, sei bem que eu é que preciso compreender as situações e ir além, e não exigir do outro que tenha o discernimento adquirido com conhecimento e experiência. Mas é justamente nesses momentos que se prova e se solidifica essa maturidade. É preciso suportar. Eu acho. Mesmo admitindo que nesse momento eu também queria um abraço forte, um colo e um cafuné. Queria, mas é como se desejar isso fosse ganância demais para alguém como eu. Se aos gananciosos é dado lugar especial no quarto círculo do inferno de Dante, a mim é dada a percepção brutal de uma vida solitária.

E por falar em quarto circulo do inferno, percebi a minha ainda imaturidade na ansiedade generalizada desses dias. Esperando por um afeto que não viria, com medo, com raiva, sentimenos simples e pobres mas que tomaram um bocado de espaço da minha atenção, que me fizeram ficar irritadiço, como quem não sabe administrar o básico da vida. Exigi atenção como a um namorado, e me irritei por não ter. E í vieram à tona todos os sentimentos que vinha guardando e reprimindo há muito por não ter tido nem mesmo uma resposta séria até hoje. Esperei maturidade e compreensão no trabalho, onde sabia que não teria. Me vi quase chorando prostrado por ter de conciliar preocupações em âmbitos diversos, quando isso é o mínimo exigido de alguém. 

Isso me mostrou minha infantilidade. Isso me mostrou uma vez mais aquilo que já sabia na teoria mas que preciso conseguir colocar na prática não como quem faz algo conscientemente, mas internalizar esses movimentos da alma, essas reações, como quem automatiza uma atividade antiga, e assim entender que não é possível esperar das pessoas ao meu redor aquilo que eu preciso oferecer. É como se eu quisesse estudar e compreender mais profundamente a alma humana e esperasse que todos estivessem na mesma jornada, dando os mesmos passos. É preciso que eu amadureça, é preciso que eu cresça. 

"A filosofia não é para as almas toscas, mal arranjadas, provisórias e meio submergidas no “inconsciente”. A filosofia pressupõe a maturidade, num sentido muito mais exigente do que a mera adaptação ao entorno imediato que esse termo usualmente designa. A filosofia responde a perguntas que só o indivíduo amadurecido pode fazer a si mesmo e, nesse sentido, ela, radicalmente, não é coisa para crianças, seja no sentido etário do termo, seja no sentido daquele resíduo de puerilismo que parece irremovível da alma da quase totalidade dos nossos contemporâneos." (Olavo de Carvalho)

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Mais uma vez

Non c’è asilo per noi, padre, nel mondo!" (Giaccomo Puccini, Turandot - Act I)

Não quero deixar que lancem sobre mim mais responsabilidades do que posso aguentar. Precisando aprender a dizer "não", a me preservar um pouco que seja. Calma, controle e calma. Uma coisa de cada vez, um dia de cada vez. Sem repetir a loucura que foi essa quaresma, sem repetir o que fizeram comigo, deixando que tudo fosse lançado em cima de mim. Eu preciso aprender a me posicionar, a me preservar. Preciso aprender a dosar o quanto me dou, ou então não sobrará mais nada a se doar. É difícil, afinal tem uma vida inteira que me habituei a agir assim. Por isso a minha insistência em ir pra outra cidade visitar aquele amigo, por isso minha insistência em não abandonar as minhas séries e assistir mesmo quando estou extremamente cansado. Por isso minha insistência em permanecer eu mesmo, já que não posso deixar de ser, como gostaria, já que não é possível voltar ao nada. 

Queria conseguir falar mais alguma coisa, mas eu percebo que nesse momento nada ocupa mais a minha mente do que a imagem dele. Nem mesmo o acólito ocupa minha atenção dessa forma, mesmo com seu sorriso doce, não, nada mais ocupa a minha mente, é como se a luz que irradia dele brilhasse mais que o sol ao meio-dia. É por isso talvez que, mesmo com todos ao meu redor insistindo no mesmo ritmo frenético, eu tenho estado até mesmo irritado com isso, porque ao falarem comigo eles me roubam a imagem dele na minha mente, e isso é imperdoável. 

X

Será que seria possível? Mesmo abstraindo todas as situações que tornariam inviável, aquele olhar do jovem visitante, que me fitava com olhos brilhantes, de um verde escuro e profundo mas vívido, alegre, como quem descobriu um tesouro inestimável. Dedilhou de um jeito tímido as notas da ode to joy, mas ficou feliz de poder tocar um piano de verdade, como tantas vezes imaginou nas aulas. Não lembrava de todas as notas, os braços tremiam, e tremiam as mãos quando veio me cumprimentar, sem saber o que dizer. Poderia ser aquela admiração muda um sentimento nascendo no pequeno coração daquele desconhecido por um outro desconhecido que ele dificilmente tornará a ver? Será que os sentimentos podem surgir assim, tão repentinamente que fariam brilhar os olhos como a uma criança que vê um brinquedo novo e encantador como se fosse o melhor de todos os tesouros? Será que daria poderia nascer um amor?

X

Não há problema em me preocupar não é mesmo? Ou em não me contar nada. Está tudo bem, eu sou sempre aquele que releva, que deixa passar tudo, mesmo quando me machuca. Eu sou sempre o idiota que se magoa pra tentar ajudar os outros, principalmente quem eu amo, e o que sempre recebo em troca? Silêncio, é sempre assim. Eu realmente não sou nada para ninguém. 

Criatura desprezível! Não sou nada! Meu amor é nada! Não importa o quanto tente, o quanto me esforce, o quanto me dedique, o quanto me doe, nada importa. Eu olho ao meu redor e continuo sozinho. Sim, sozinho, isso mesmo, porque todos fazem questão de mostrar que não caminho aos seus lados, tamanho desprezo sentem pela minha presença e minha figura. Já não sou mais homem? Me tornei tão horrendo que a minha presença se tornou motivo de nojo aos outros? É o que parece. As palavras de carinho que me tenho são vazias de significado: é na noite, onde minh'alma busca aquele por quem clama, que percebo que, em verdade, estou sozinho, e tudo que tenho em resposta é o silêncio. Brutal, ensurdecedor e, acima de tudo, 

indiferente. 

É isso que é estar sozinho. 

Sozinho. 

Sozinho!

Entende a força dessa palavra? Mas a quem pergunto isto se estou cá eu mais uma vez, como sempre estive, sozinho?

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"O que sou eu nos olhos da maioria – uma nulidade ou um homem excêntrico ou desagradável – alguém que não tem uma situação na sociedade e que não terá; enfim, um pouco menos que nada." (Vincent van Gogh)

terça-feira, 2 de abril de 2024

Dormindo um pouco

Como é bom poder descansar! Ah, finalmente eu pude me deitar sem me preocupar com o que fazer no dia seguinte, então pude deixar o efeito dos remédios pouco a pouco irem tomando conta de mim. Foi simplesmente maravilhoso e há muitas semanas esperava por isso!

Fiquei o dia todo deitado, dormindo a maior parte do tempo mas, no restante, ouvindo música baixinho, aproveitando o tempo ameno do outono e o silêncio de me manter afastado das redes sociais.

E é claro que poder passar um tempo assim me permitiu também reorganizar alguns pensamentos, como perceber que, em meio aquela loucura das últimas semanas, com o caos do trabalho e as preparações para a semana santa, eu ainda pensava nele, tolamente. E então, deitado sozinho, tive uma vez mais como que uma espécie de revelação, de que o amor não é para mim, e então eu amadiçoei esse sentimento, tão básico, tão falado por todos, tão procurado, tão explorado, mas que não é para mim. 

Até algumas pessoas dizem me amar, mas não é verdade, elas podem admirar algumas coisas em mim, podem admirar o fato de eu responder algumas perguntas ou de as apoiar, mas não me amam, sempre colocam um muro entre elas e eu. Podem me tocar a mão ou me sorrir gentilmente, mas é tão e apenas isso. E até aqueles que conseguem se entregar a estranhos conseguem algum tipo de conexão, enquanto eu contiuo sozinho. Descansando, sim é verdade, mas sozinho. 

Por isso escrevo essas palavras brevemente, registrando um pouco do que sinto, e torno a dormir, aproveitando enquanto posso brevemente descansar. 

Como eu esperava, eles não notaram, nem minha presença e nem minha ausência. O toque breve de nossas mãos, em que senti a delicadeza inesperada daquela pele fria, foi esquecido rapidamente, não foi mais do que isso, como duas pétalas que se tocam ao voarem por aí, levadas sem rumo pelo vento forte. E quanto a ele, bem, nem sequer deu conta de minha presença, tamanho volume de informações na sua mente, não havia ali espaço para mim, para meu amor. 

Nunca há espaço para mim.

E esse já é o terceiro dia em que me encho de remédio para dormir o dia inteiro, e hoje à noite ainda tenho uma reunião, provavelmente sobre alguém que reclamou algo de mim para o padre, é sempre assim. Não estou preocupado, aliás, se me pedissem para sair imediatamente eu faria com alegria. Eu não dou à mínima. 

Poucos minutos depois de o salário ter caído na conta o dinheiro já havia ido todo embora, e é sempre assim, mas a quantidade de trabalho não diminui, pelo contrário, aumenta cada dia mais. De que adianta todo esse trabalho, todo esse esforço se, no fim, não há nenhuma recompensa além de mais trabalho? A vida é esse lixo e ainda querem que a gente fique feliz com elogios sobre nosso esforço e toda essa porcaria. 

É por isso que eu durmo sempre que posso, pelo menos essa é uma recompensa quase gratuita, e quase porque eu ainda preciso trabalhar para ter dias de folga. Do que adianta todo esforço se, no fim de semana, não vou conseguir nem mesmo ir a festa daquele amigo ou comer algo diferente? E querem que a gente fique feliz por essa miséria.

Em casa é a mesma porcaria. Continuam brigando e se enfurecendo por causa daquela criatura espúria. Eu já finjo que não tenho nada com isso, querem continuar na sua cegueira do encarar a verdade que deixá-la ir. Não entendem que isso seria o melhor para todos. E isso me irrita profundamente porque ficamos vivendo tentando equilibrar situações que não são mais sustentáveis. 

Não há amor. 

Não há dinheiro. 

Não há harmonia. 

O que há de errado com todos? 

Queria poder simplesmente sair e me mudar, morar sozinho e não precisar me preocupar com isso, me isentar dessa convicência horrenda. Mas, como dito acima, isso é impensável, eu preciso me controlar para conseguir comprar o que comer durante o mês, mesmo trabalhando tanto, como pensar em morar só? Preciso aguentar essa situação. 

Preciso aguentar essa situação? Não poderia simplesmente dar fim a isso de algum modo? Por qual motivo eles não percebem que nossas vidas seriam mais fáceis se simplesmente desistissem deles? Já desistiram de mim, que diferença faria?

Minha reunião foi cancelada, mas ironicamente descobri que alguém reclamou porque não faço reuniões o suficiente. As pessoas daqui estão afogadas na própria burocracia, tudo precisa ser aprovado, assinado, carimbado em três vias reconhecidas em cartório, tudo é muito complicado. São todos uns idiotas, em intermináveis reuniões sobre o que falaremos nas próximas reuniões. 

Então amanhã eu preciso voltar ao trabalho, inferno, e já não tenho mais dinheiro nenhum, e hoje ainda é o segundo dia do mês. Acho que eu ganho mais se eu voltar a dormir. 

X

"Nunca me senti só. Durante um tempo fiquei numa casa, deprimido, com vontade de me suicidar, mas nunca pensei que uma pessoa podia entrar na casa e curar-me. Nem várias pessoas. A solidão não é coisa que me incomoda porque sempre tive esse terrível desejo de estar só. Sinto solidão quando estou numa festa ou num estádio cheio de gente. Cito uma frase de Ibsen: ‘Os homens mais fortes são os mais solitários’. Viu como pensa a maioria: ‘Pessoal, é noite de sexta, o que vamos fazer? Ficar aqui sentados?’. Eu respondo sim porque não tem nada lá fora. É estupidez. Gente estúpida misturada com gente estúpida. Que se estupidifiquem eles, entre eles. Nunca tive a ansiedade de cair na noite. Me escondia nos bares porque não queria me ocultar em fábricas. Nunca me senti só. Gosto de estar comigo mesmo. Sou a melhor forma de entretenimento que posso encontrar.” (Charles Bukowski) 

domingo, 31 de março de 2024

Minha breve experiência pascal

Foi uma das quaresmas mais difíceis que já vivi, passei por humilhações extremas e nem sei quantas vezes pedi que desaparecesse, simples assim, sumindo no ar, já que não podia simplesmente desistir, coisa que meu senso de responsabilidade não me permite fazer. E então eu fui, e continuei, e lutei, e insisti, até que não sobrasse mais nem mesmo tempo ou vontade de viver algo mais...

Não nos vemos há várias semanas, cruzamos rápidamente uma ou duas vezes e ele nem sequer notou minha presença mas, hoje, enquanto cantava, eu olhava diretamente pra ele, e era como se aquelas 300 pessoas não estivessem lá, eu só queria que a minha voz o alcançasse, e por isso cantei com todo o restante de força que ainda tinha. Vou dormir, a primeira vez que deito sem me preocupar se conseguiria ou não formar um coral com pessoas que nem mesmo se conheciam e que não queriam cantar juntas umas com as outras... 

Vou dormir, liberto, sonhando que talvez minha voz o tenha alcançado...

... Mas sem esperar mais do que nossa habitual distância.

E qual foia  minha surpresa quando ele se aproximou de mim para me fazer uma pergunta pela segunda vez, e ainda uma terceira, e o sorriso tímido mas genuíno com um sinal discreto entre servidores de altar que eu lançei a ele. Ao ite Missa est, Aleluia, aleluia, eu delicadamente toquei a mão dele, que repousou sobre a minha, fresca, delicada, não parecendo alguém que joga vôlei todas as noites.

O salmista canta que sua "alma tem sede de Deus, e deseja o Deus vivo" no salmo 41 (42)  e mais à frente ele afirma "subirei aos altares do Senhor, Deus da minha alegria." Numa parafráse eu trago essas palavras ao meu coração ferido de amor: a minha alma tem sede daquela presença, subindo ao lado dele eu teria a minha alegria. Essa é minha salmódia, tantas vezes tornada em Lamentações. "Ferida de amor não se cura, senão com a presença e a figura" diz São João da Cruz.

Esses dias foram, é claro, cheio de impressões que eu não podia registrar naqueles momentos. Como ao ouvir as preces pelos batizados na Vigília Pascal. Em nossa comunidade não tivemos batizados, mas nas comunidades vizinhas sim, e minha amiga mandou foto do seu afilhado de quize anos que recebeu o santo Batismo na Noite Santa, e eu me alegrei por ele e ela pois agora somos todos membros do mesmo corpo de Cristo. 

E numa conversa com minha queria amiga Patrícia falávamos sobre como nos portamos, em como nos doamos tanto a ponto de não sobrar mais a nós, e que a virtude da temperança aqui é fundamental para que, ajudando aos outros, eu cosiga manter-me firme nos meus propósitos sem me exaurir. Ela me fez perceber, uma vez mais, o quanto me dei e com isso atrai quem apenas queria me sugar, de modo que , aprendendo o equilíbrio eu devo conseguir encontrar a alegria do dar e do receber. 

E que tem a ver todos esses assuntos? Bom, tudo está interligado. Seja o meu amor, ao cantar olhando para ele que, no fundo da igreja não deve ter me visto, ainda mais com as luzes apagadas. Mas a luz do círio em meio às trevas nos lembra que há esperança, e cantei ao lado daquela luz, silenciosamente em meu coração repetindo a prece do Precônio "O círio que acendeu as nossas velas, possa essa noite inteira fulgurar. Misture sua luz à das estrelas, cintile quando o dia despontar." É uma luz que ilumina as trevas durante a Noite Escura, durante aqueles momentos de maior desesperança, mas que não se limita a isso, ela se une a luz das estrelas, enfinitamente maiores em números, e brilha com vigor quando passa o período de árduo deserto. 

Também a luz do círio não perde ao dividir o seu fulgor, quanto mais velas ele acendia, mais brilhava vivamente, e mais iluminava ao redor, O que me traz de volta ao equilíbrio de doar a minha luz sem perder com isso meu fulgor. E então, quem sabe, animado eu pois pela ressurreição do Cristo, possa vislumbrar mais uma centelha de esperança, simbolizada pelo fato de que não sei se toquei seu coração com minha voz, mas no dia seguinte recebi o toque gentil de nossas mãos...

quinta-feira, 28 de março de 2024

Firme

Anne Magill

Como já o disse tantas e tantas vezes, apenas quero me distrair com o amor e a beleza dos outros, pois que de mim já desisti há muito.

Preciso aguentar mais alguns dias. Firme. Tríduo Pascal e meu corpo e mente já no limite. Muitas perguntas, muitos compromissos, muitas respostas, muito de tudo, e bem pouco Gabriel a sobrar para oferecer assim. Admito que gostaria de ser mais. Só preciso aguentar mais um pouco, não há espaço para mudanças de humor.

Não, isso é uma mentira, eu não queria ser mais para ninguém, muito pelo contrário, queria ser menos, queria não ser, queria apenas ser uma abstração, uma ideia, sem dores, sem amores, sem cobranças, apenas algum tipo de perenialismo a pairar por sobre os homens sem a pressão de ser o suficiente, sendo que há muito deixei de ser o bastante até mesmo para mim. Já há muito não consigo ser, já há muito eu apenas estou por aqui, mesmo sem estar, mesmo sem querer, mesmo sem conseguir.

Como já o disse tantas e tantas vezes, apenas quero me distrair com o amor e a beleza dos outros, pois que de mim já desisti há muito. 

E minha cabeça não pára de doer, como se a qualquer momento fosse explodir espalhando miolos a esmo, e pior que acho que é bem possível ou, pior ainda, acho que eu gostaria disso. Na verdade eu só queria poder abrir uma garrafa de qualquer coisa forte o suficiente pra me derrubar num copo só e poder ficar bêbado o fim de semana inteiro, sem dissipar o que restou da minha vida em responder perguntas e pessoas irritadas comigo por pouca coisa. E parecem que todos têm prazer em me ver sofrer, qual é o problema com todo mundo?

Como já o disse tantas e tantas vezes, apenas quero me distrair com o amor e a beleza dos outros, pois que de mim já desisti há muito.

"Metade da sua capacidade é dedicada a iludir-se e a outra, a justificar essa ilusão." (Liev Tolstói)

quarta-feira, 27 de março de 2024

Algumas coisas felizes

Ganhei um terço, daqueles feitos à mão, e a moça que me entregou disse que ele foi feito por aquele rapaz. Meu coração deu um salto na hora e eu sorri, terno, mesmo sabendo que provavelmente foi algum tipo de sorteio e que ele não deve pensar em mim o suficiente para fazer algo assim. De todo modo ele tem meu nome, e passou alguns minutos, que seja, pensando em mim, o que já me deixa bem mais feliz do que estive nos últimos dias. Kaoru, pelas mãos do acólito de meus sonhos a tocar o vaso sagrado do meu coração.

Gostaria de estar dormindo, se tornou um hábito, certo vício em me alienar e me distanciar de todas as coisas. É simples, eu só não quero ver, não quero ter que me preocupar, não quer estar sóbrio ou consciente. 

Até tentei, algumas vezes, falar sobre o que me incomodava, sobre o que me machucava, mas tenho estado tão cheio de coisas, tão atolado completamente em obrigações, formações, dúvidas, escalas, ensaios, grupos, que tenho achado melhor tirar proveito da apatia que sa abateu sobre mim num episódio misto brutal, em que tenho experimentado uma depressão que me faz pensar na morte a cada cinco minutos ao mesmo tempo que meu corpo reage aos estímulos da pressão social. Consigo ir a todos os compromissos, mas a minha alma continua adormecida na cama, sonolenta, e minha vontade é de simplesmente voltar ao nada. 

Odeio tudo isso, odeio como me tratam como idiota, e sei que deveria dizer algo, mas me falta força para encarar esse embate, me falta vigor, tudo que quero é paz, mas mesm ficar assim não tem me deixado em paz, aliás, nem sei se isso existe. Mas tenho enfrentado isso, e meu corpo já vem dando sinais de não suportar, até porque abusei dos remédios pra dormir no último fim de semana e já comprei mais para o próximo. Não tenho dado nenhuma importância pra saúde, não quero me autopreservar, ao menos não no sentido de prolongar minhar vida, apenas não quero ser incomodado. Só isso já me basta. Já não sonho com o amor, com a fama ou o sucesso, tampouco com a santidade. Só quero poder voltar pra casa e dormir, em paz. 

Foi inesperado quando, no meio de tudo isso, uma amiga me pediu que enumerasse as últimas coisas boas que tinham me acontecido, e percebi que, embora simples, essas coisas realmente me deixaram um pouco melhor. De fato me abriram a perceber esses pequeninos detalhes que, no meio de todo oceano que me tem acontecido, tornam alguns momentos um pouco mais leves. 

Fiquei feliz pela chegada do outono, com alguns dias um pouco mais frescos. Poder chegar até a parada de ônibus sem estar suado é um diferencial e tanto, talvez devesse considerar morar numa cidade onde é sempre mais frio. Encontrei uma nova playlist com músicas leves, mas não tristes, e a ouvi inteira três vezes nos últimos dois dias. Embalado pelo ritmo simples, delicado, das vozes e dos poucos instrumentos eu respiro um pouco mais fundo, me recordando que esse dia vai acabar e essa semana também. O café que fiz ficou uma delícia, e desde que comecei a tomar café me esqueci de como é parar para apreciar uma caneca assim, fumegante e perfumada, sentindo o sabor e o aroma ao meu redor. E fiquei feliz ainda pelo terço que ganhei, e me recordo de ter dormido segurando-o, em algum dia daqueles de depressão mais profunda, seja numa centelha de esperança de uma ajuda divina ou pelo conforto da memória de saber que, por alguns minutos, ele pensou em mim ao separar cada uma daquelas pequenas contas de rezar. 

Nem tudo precisa ter um significado profundo, discutido exaustivamente pelos maiores filósofos e pensadores. Na verdade, no meu atual estado, sentir o perfume do café enquanto escuto uma boa música, mesmo em meio ao caos, tem sido tudo que eu posso tirar da vida. E o mais qu faço não vale nada!

E claro, mais uma coisa me fez feliz: ver uma foto dele, sorrindo, simplesmente tentando me fazer feliz num dia como esse. Isso fez toda a diferença.

"Meu amor, essa é a última oração, pra salvar seu coração..."