terça-feira, 23 de abril de 2024

Sobre Descarregar

Fiz um comentário até bobo, en passant, sobre mim e, de algum modo, sobre nós. Em meio a uma profunda compreensão da dimensão comunitária das nossas relações. No meio de questionamentos intelectuais, de moralismos religiosos baixos e vazios, disse algo que poderia chocar, que precisava, ao invés de controvérsias amorosas que não podemos controlar, simplesmente dar para alguém. Com efeito, alguns dias essa semana fui tomado de tamanha revolta e tesão incontido que teria dado para o primeiro que aparecesse, mas não apareceu nenhum, como de costume.

Isso porque me referia a uma necessidade de descarregar, de algum modo, todos esses sentimentos e desejos que vêm se acumulando aqui dentro de mim, e que preciso simplesmente dar vazão, porque às vezes parece que apenas palavras não bastam. Que elas não conseguem conter a profundidade quase abissal de toda essa dimensão. 

Refiro-me a isso como dimensão, pois não se trata de apenas um aspecto. Não é uma sexualidade desregrada, não é apenas um desejo que não pode ser realizado, é algo bem maior, é um Ser em busca de algo, é um desespero (mais ou menos no sentido parecido com aquele colocado por Kierkegaard), é uma realidade que compreende meu Eu profundo, que abarca então todas as outras áreas menores que compõem esse mesmo Eu. 

E talvez na lascívia extrema, no entregar-se físico, na avulsão da forma nívea até mesmo exagerada, algo consiga escapar em mim e, assim, aquietar um pouco mais de toda essa inconformação que já vem se mostrando quase permanente, mas a qual eu não posso me acostumar. É por isso que dei local então a essa fala de que, na minha situação, eu poderia bem dar para qualquer um que aparecesse e que, até mais ainda, preciso fazer isso, preciso descarregar de algum modo, já que a vida me deu uma profunda necessidade de algo que eu nem mesmo sei o que é, mas que se revira de tal que meu ser se encontra em completa desordem. 

X

O que tenho notado não são insinuações, são apenas leves gracejos, tão breves que talvez nem sejam conscientes, mas que têm por objetivo me afastarem. São comentários em tons que quase chegam a ser ofensivos, como se dissessem: eis o limite que você não deve ultrapassar!

Venho entendendo, pouco a pouco, que eu preciso mudar, realinhar as coisas dentro de mim, antes de decidir o que fazer. Que não é certo me doar tanto e esperar em troca onde nunca me foi oferecido isso, que não é certo que faça sozinho todos os papéis de uma relação que apenas meu livre arbítrio. Que não é certo, acima de tudo, que eu coloque o outro tão em conta que esqueça de mim mesmo, quando, no fim, na noite escura, eu apenas tenho a mim, e isso já deveria ser suficiente, pois sou composto de tantas partes, tantas camadas que se complementam, que já não preciso do outro para ser, senão que podemos nos unir para construir, mas que essa construção deve ser decisão de ambos, não apenas da minha vontade que me força a me adaptar, fazendo com que tantas vezes me machuque sem ver com isso nenhum resultado. 

Isso me mostra o peso de todos esses anos fazendo tudo isso, me anulando em função do outro, e agora veio a conta: já não tenho mais o que oferecer. Mas isso precisa mudar, preciso encontrar em mim algo que admire e ame, de modo que não precise buscar no outro nada senão a construção. Devo então respeitar até mesmo a dor, a dor que não queria sentir de novo, a dor das feridas de todos os abandonos, porque enquanto doador eu buscava apenas quem recebia e partia. Devo me centralizar antes de tudo, me encontrar, encontrar aquilo que perdi ao entregar tudo ao outro, encontrar o que me faz ser eu mesmo, me reconectar com meu Eu profundo e eterno. 

O que venho tentando dizer é que preciso encontrar um modo de reequilibrar aquilo que deixei se perder: o quem sou eu.

Fiz tudo o que podia, agora depende apenas de sua compreensão e do seu livre arbítrio, e de você ter a coragem, ou misericórdia, de me dizer as coisas com clareza...

"Não tema as rachaduras, é por elas que entram a luz." (Desconhecido)

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