sexta-feira, 12 de abril de 2024

Adaga no Coração

"Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma"
(Fernando Pessoa)

Por alguma razão que talvez se encontre em algum lugar desse oceano profundo, há uma coincidência de momentos que fizeram com que uma amiga me perguntasse algumas cosias justamente quando estou pensando em assuntos desse tipo. Eu nunca tive grandes aspirações, até que me deparei com o ensino, quando percebi que meus amigos pediam que eu explicasse a matéria antes da prova porque conseguia fazer entender melhor que os professores (apenas das matérias humanas, diga-se. Até hoje não sei nem a tabuada nem conto troco no comércio). Isso me deu um indicativo do que seguir, e ainda hoje quando estudo algo ou explico algo pra alguém (de história das séries tailandesas até o Império Romano) é o único momento em que me sinto num caminho.

Afora isso eu sempre me senti, e hoje isso continua me perseguindo, deslocado por não saber o que queria ser. Meus amigos queriam ser policiais, funcionários publicos, eu nunca tive um sonho nem naquela época e já me achava estranho.

E agora me vejo revivendo uma situação em que, já não tendo um sonho, não tenho também um objetivo para prosseguir. Te digo com uma convicção brutal e peço desculpas se isso for um disparador de algo, mas nesse momento eu só estou continuando porque sim. Porque não tenho nenhuma vontade de fazer mais nada, e pior, as coisas que me rodeiam me machucam. e pior ainda: o que mais me machuca é aquilo que talvez deveria me curar, o meu próprio amor. 

Não me refiro a alguém, não é alguém que me machuca, ele não tem culpa disso, mas o que sinto, é o meu próprio coração que se maculou, que cravou em si mesmo uma adaga e que sangrou até que se esvaísse completamente. 

O amor deveria doer tanto assim? Se eu tanto amei, tanto amei, que mais eu podia ter feito para receber senão a indiferença e a distância? Que horror eu posso ter causado para assim ser punido? A quem tanto feri para que meu coração fosse assim ferido?

Uma noite mais eu adormeci profunamente por efeito dos remédios, não queria pensar em mais nada, não queria amar mais nada, não queria sentir mais nada pois, se sinto, é apenas a adaga no meu coração indo mais e mais fundo ao rasgar a minha carne. 

E então, na manhã que segue, chuvosa, cinza e melancólica, consegui um pouco de tão raro silêncio cá por essas bandas. E então decidi me permitir sangrar um pouco mais em palavras, chorar a minha sorte e, quem o sabe, penetrar o solo profundo e renascer verdejante uma vez mais, se possível. 

Decidi que não quero mais essa dor, e que preciso então arrancar as raízes dela que se fecharam ao redor do meu coração como as correntes daquele mestre que aprisiona seus inimigos em seus próprios termos. Preciso arrancar essas raízes, e com elas algumas partes de mim também serão destruídas, mas quem sabe com o aço dessas correntes eu possa forjar algo novo.

Que grande pranto que eu choro,
Meus olhos são água só;
Quem me conforta está longe,
Quem de mim sentia dó;
Meus filhos estão perdidos,
Venceu o forte, o maior...

(Lamentos de Jeremias)

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