terça-feira, 30 de novembro de 2021

Pequeno

Tentando não enlouquecer dentro da minha própria mente, com tantos pensamentos, tanto medo, tantas incertezas, tantas dúvidas sobre o mundo. Em contato com pessoas mais experientes eu vejo o quanto eu conheço pouco do mundo, o quanto sou fechado em mim mesmo, o quanto sou limitado ao meu próprio universo particular, tão mínimo, um grão de areia. Me senti pequeno, rebaixado mesmo, ante eles que, saindo de perto dos pais, que viajando, que trabalhando fora, conseguiram crescer e se tornarem independentes enquanto eu continuo aqui, paralisado de medo repetindo todos os dias essa ladainha nessas páginas. 

O mundo é tão grande e ainda há tantas coisas que você não sabe e que ignora completamente, quando deveria saber muitas já a essa altura da vida. 

Até quando se contentará com essa mediocridade? Até quando? Até quando Gabriel você vai insistir nisso? Até quando vai continuar sendo um inútil, sustentado pelos pais, com medo da noite?  

Olhe como você é pequeno, um nada! Olhe como você só sabe admirar aquilo que não pode ter e que só pode sonhar em voar pelo céu enquanto rasteja pelo chão! Olhe como as pessoas aprendem mais no próprio mundo do que você da sua cama acredita aprender! 

Você não aprende nada, continua medíocre, continua pequeno e insignificante, e vai morrer assim, sozinho, infeliz e pequeno. Esquecido. 

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Prece

Uma das preces dos fiéis da liturgia de hoje dizia o seguinte: "Pelos que, pela dor e desilusão, já não esperam nada e nem ninguém, para que acreditem nas promessas do Senhor, oremos." E, no instante que foi lida eu senti um choque pois as palavras caíram como uma espada sobre mim. 

Como num estalo eu percebi, naquele momento, que eu não espero por nada, que eu não espero por ninguém, que minha vida é completamente vazia de esperança no amanhã e que eu não tenho absolutamente nenhuma perspectiva de futuro. 

Isso me desceu com um gosto amargo na boca. E essas palavras da prece reverberaram em mim durante todo o dia, num contraponto interessante com o otimismo que eu senti ao ver os últimos episódios de uma série coreana que estava acompanhando, Hometown Cha Cha Cha, cuja mensagem final foi justamente "viva a vida intensamente, aproveite cada dia, sonhe e realize seus sonhos pois há muita coisa boa pra ser vista". 

Essas duas visões se mesclam no meu ser. A visão que não crê, não espera e não vê no mundo nada de bom e a visão que enxerga numa história como essa motivos pra me levar às lagrimas. Ou talvez eu tenha chorado justamente por encontrar lá a esperança que não encontro em mim mesmo, o que falta em mim, o vazio absurdo que consome meu peito. 

Como podem duas realidades tão distintas coexistirem assim dentro de mim? É como água e óleo, não podem misturar-se e, no entanto, estão ao mesmo tempo, embora em proporções distintas, mas colidem e coabitam, como serpentes que tentam se devorar. E elas lutam eternamente, uma ganhando a cada dia mas a outra ressurgindo novamente e reiniciando o ciclo infinito. 

Viver a vida, uma bênção, um dom divino. A existência é só dor e caos e não há sentido algum em todo o sofrimento que passamos. Há beleza para ser vivida, esperanças que valem a pena, sonhos que merecem ser sonhados e realizados. Há apenas a morte como libertação dessa imensa roda de ódio em que estamos presos. Há uma vida eterna no fim de tudo isso que faz valer a pena. Não há nada que possa trazer sentido a essa existência miserável. Há beleza. Há o caos. Há um fim nisso tudo. Tudo é apenas morte, o desespero é a única realidade. 

E tem a mim. Pobre. Perdido no meio dessas visões, é onde me encontro, e minha alma está em agonia.

"Preces meae non sunt digne, sed tu, bonus, fac benigne, ne perenni cremer igne."

domingo, 28 de novembro de 2021

Em cima da cama

Mais um dia que não saí da cama, mais um dia resumido a me revirar de um lado a outro, mais um dia que passou sem que eu o vivesse e, pior ainda, mais um dia que passou e eu fiquei consciente dele todo o tempo. Não quero apelar tanto aos remédios, que já precisam de uma alta dose pra me apagar, e então alguns dias eu sou obrigado a ficar acordado, vendo o tempo passar lentamente, olhando pro teto, esperando alguma coisa acontecer.

Parece irreal, se pensar quantas coisas uma pessoa faz num dia, e eu ter passado o dia todo deitado, com a mente vagando em qualquer lugar, ouvindo incontáveis músicas as quais não prestei atenção, o calor incomodando, o barulho incomodando, mas nada capaz de me tirar dali. 

As pessoas se empolgaram com uma partida importante de futebol no final da tarde, pude ouvir desde as pessoas da minha casa até os vizinhos gritarem empolgados, felizes por alguma realização, e enquanto os ouvia eu pensava que nada no mundo poderia me deixar tão empolgado. E foi uma constatação difícil.

Minha mãe ainda aposta no meu tratamento. Eu só tomo os remédios na esperança de que não piore, muito. Mas já não acredito que possa levar uma vida normal. Me vejo como alguém quebrado, com um defeito, uma imperfeição fundamental que me torna um pária. 

"Tudo há seu tempo" repetem sem parar, e eu vejo que para os outros isso é verdade, quantos já não conquistaram o mundo aos 26 anos? Eu conquistei receitas médicas com prescrições de remédios psiquiátricos e já não sou capaz de fazer o que antes fazia bem, as poucas coisas que fazia bem. 

Já não sou capaz de ficar no altar sem uma crise de pânico na noite anterior, já não dou aulas ou palestras, já não sou insubstituível. 

Como as coisas chegaram a esse ponto? Como fui ficar gordo, irreconhecível, e sem ânimo pra sair da cama durante dias inteiros? 

Eu sei que fazer alguma coisa poderia me ajudar, arrumar um trabalho poderia ser um bom começo, mas eu penso, e quando vier a primeira depressão e eu não conseguir levantar? Quem vai entender? E então eu torno a ficar paralisado, como num circulo vicioso, infernal, um ourobouros. 

Ainda me assusto ao pensar em como fiquei, e mais assustado ainda em perceber que não conheço solução. E, porca miséria, ainda mais assustado em imaginar que isso pode ser assim pro resto da minha vida. 

E quando meus pais não estiverem mais aqui? Isso pode acontecer amanhã mesmo, eles podem nem sequer acordar. E quando ninguém puder pagar minha terapia? E quando ninguém mais comprar comida pra casa? Eu vou continuar sem forças ou ali eu vou descobrir como é que todas as pessoas conseguem sobreviver nesse mundo terrível? 

A possível resposta a cada uma dessas questões é mais apavorante do que as próprias perguntas. E eu prevejo que ficarei mais dias paralisado por elas. 

sábado, 27 de novembro de 2021

O que aconteceu

Não aconteceu nada, não é como se alguém tivesse dito algo que eu não gostei, ou como se algo que fiz não tenha dado certo. Eu simplesmente não quero esse dia, não quero ficar acordado, não quero conversar, não quero nada além de ficar deitado, além de não pensar, além de não ser. A experiência de suspensão da minha consciência tem sido minha única experiência válida. A única coisa que tem feito meus dias valerem a pena, além das histórias de amor, são os momentos que não preciso ser, que posso apenas dormir, sem pensar em mais nada. 

E queria que fosse sempre assim, que eu não precisasse ver o amanhecer de outro dia, de outro dia terrível, ou o anoitecer de uma noite de pesadelos e pânico. 

Também queria que tivesse em mim alguma energia, mas parece que há muito eu venho operando na bateria reserva. Eu vejo belas maquiagens na internet e gostaria de melhorar, tentar reproduzir, mas eu não consigo, me vem um desânimo total e eu não consigo erguer um pincel sequer, quem dirá reproduzir algo complexo, mas belo, que me deixaria contente pelo esforço. Eu não consigo. 

Quantos livros ainda faltam ser lidos? Mas em alguns dias eu sequer consigo entender umas poucas frases e logo largo de lado aquelas páginas tão cheias de ideias que já não consigo entender, a mente ocupada demais perdida em devaneios, perdida no vazio. Eu não consigo. 

Eu me sinto vagando num mundo de névoa, sem conseguir enxergar, sem saber para onde ir, eu vivo buscando ajuda, procurando, olhando de um lado para outro, mas eu não vejo ninguém. 

Todos perguntam o que aconteceu. Mas nada aconteceu. É como se uma chavinha fosse virada no meu cérebro e eu simplesmente fico assim. É sempre assim. E de repente tudo muda, tudo se torna opaco, e até sair da cama se torna um suplício. 

Quantas vezes eu já falei sobre isso, e nada muda, exorcizo esses fantasmas mas eles logo voltam pra me assustar. Eles continuam me rodeando como o leão procura a quem devorar. E eu me sinto lentamente devorado, minha carne estraçalhada, meus ossos reduzidos a pó. Pó. Eu sou pó e ao pó voltarei, sendo melhor ser pó e rodopiar ao vento como farrapos do que viver, ou melhor, do que subsistir em cima de uma cama, sem vida, sem vontade, sem forças. Padecendo o tempo que passa sem conseguir agir. Sendo apenas vítima inerme do tempo. Vítima. Apenas vítima. Passível. 

Por mais que eu sinta que o tempo passa de modo desperdiçado quando faço isso, dormir o dia todo, eu não consigo deixar de pensar o quanto é bom acordar e ver que não precisei passar a tarde toda inventando um pretexto pra ficar sóbrio. Eu prefiro fugir e sei que as consequências disso são desastrosas pra minha saúde. Mas eu simplesmente não consigo me forçar a ficar acordado todos os dias. 

Ainda que desperdice meu tempo é mais fácil do que viver cada dia, sendo cada dia uma tortura, é melhor não viver. 

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Estações

Eu sinto o tempo passar, como se as estações de mais um ano passassem ao meu redor na velocidade de um raio. Sinto o tempo passar e a responsabilidade que eu deveria carregar aumenta, mas eu não a carrego, outros a levam por mim. E eu vejo as estações passarem e eu envelhecendo sem a honra de crescer conforme passam o anos. Continuo fraco, continuo dependente, continuo medíocre.

E o tempo não cessa de girar, o faz de forma vertiginosa, já sinto os anos na minha pele mas não consigo ser o que esperam de mim. Isso é mais do que deprimente, isso é paralisante, me causa vergonha, me causa nojo de mim mesmo. 

E eu continuo aqui parado, enquanto o tempo passa, enquanto as estações giram ao meu redor, enquanto meu pai levanta de madrugada pra trabalhar e complementar a renda, enquanto minha mãe faz tudo dentro de casa, enquanto eu não faço nada além de virar de um lado para o outro tentando aliviar o calor. É patético de se ver. 

Para quê tanto tratamento? Para quê tantos remédios para recuperar a vitalidade de alguém que já morreu? Não mereço viver, eu sou menos do que um homem, eu sou um inseto, alguém que merece ser esmagado, apagado da existência. 

Eu me envergonho de quem sou, mas não tenho comigo forças para mudar. Eu vejo o tempo passando ao meu redor mas não consigo me mover, não consigo levantar a mão, não consigo dar um passo. 

Consegue imaginar o quanto isso é deprimente? Perceber que sua existência não tem valor, que você é apenas um desperdício de espaço, que você faria mais bem a todos se simplesmente deixasse de existir? 

É assim que eu vejo o tempo passar. E eu me vejo cada vez mais distante. 

Um continente de distância, um universo inteiro. Distante da beleza verdadeira daqueles que são meu ideal, distante do amor, distante da independência, distante de tudo que possa fazer algum sentido nessa vida. Distante de me sentir vivo, distante, enquanto passam as estações. 

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Aforismos

Eu tenho uma palestra logo mais a noite, e estou me perguntando como vou conseguir falar para pessoas formadas sobre um assunto que elas conhecem se eu mesmo não consigo nem mesmo me mexer direito. Desde cedo eu não consegui sair da posição em que estava na cama, nem o chamado das pessoas me despertou, tudo o que sinto é um peso enorme em todo o corpo, como se correntes me prendessem a cama. 

Como eu vou conseguir daqui? Como eu vou falar assim? Como fazer os outros entenderem que não é porque eu não quero mas porque eu simplesmente não tenho de onde tirar forças pra fazer nada? Como eu vou conseguir um trabalho assim? Como eu posso assumir a liderança da família sendo fraco desse jeito? Onde consigo forças? E agora eu, pobre, que farei, que patrono invocarei? 

X

Minhas perguntas continuam sem respostas. Perdi o sono na noite escura e fresca. Uma faísca que só eu vi, só eu senti, como sempre, algo que só aconteceu na minha cabeça. É assim que me sinto. Vivendo um mundo que não é o meu. Não me encaixo aqui, onde quer que esteja me sinto deslocado. Para onde quer que eu olhe é como se imaginasse num mundo distante. Sinto que nasci no universo errado, vivendo num exílio perpétuo. Não sei qual é o meu lugar nesse mundo, se é que há lugar para mim, de todo modo eu sinto que não pertenço a lugar nenhum. Minha alma está inquieta, meu ardente coração quer dar-se sem cessar, minha mente está perdida. 

X

Meu corpo dói, minha mente dói, e eu nem sabia que isso era possível. É um tipo de cansaço em que já não consigo mais pensar em coisas novas, raciocinar com novos elementos, é como se tivesse chegado ao limite do quanto posso pensar em alguma coisa, qualquer coisa. 

X

As pessoas me olham e me dizem que engordei, em tom elogioso, mas elas não percebem que isso não é elogio. Eu engordei por causa dos remédios pra depressão que tomo e da minha má alimentação, e isso só piora como me sinto, cada vez que olho no espelho. E eu queria que parassem de dizer isso como se fosse um elogio porque não é. Isso me faz querer ficar dias sem comer, me faz querer arrancar minha carne com as minhas próprias mãos. Eles não sabem disso, mas como podem pensar que eu estou mais feliz assim, sendo que a imagem que eu vejo no espelho me causa repulsa de mim mesmo? 

X

Sinto-me carente, o que me faz querer tomar decisões questionáveis. Reinstalar aquele aplicativo, voltar a me encontra com aquele garoto... Todas decisões que não podem me trazer nenhuma felicidade, são apenas reflexo de uma luxúria profunda mas que não pode ser cessada, não há conforto em lutar para satisfazer esse impulso, tudo o que vai haver depois é o silêncio e o vazio, vazio de quem não sabe o que quer, vazio de quem não pode ser preenchido com a presença de desconhecidos, vazio e mais vazio. Às vezes sinto que minha vida é feita apenas de vazios a serem preenchidos sabe-se lá com o quê, Eu queria me sentir completo, pelo menos uma vez, queria me sentir pleno, sem que faltasse uma parte importante, imprescindível. Parece-me que meu fardo é me sentir vazio, é não me contentar com nada nessa vida, nesse mundo, é almejar coisas tão elevadas que esse mundo perde a cor diante delas, tornam-se opacas. O que fazer quando tudo o que se sente é o vazio, te consumindo, te devorando, te fazendo desaparecer pouco a pouco?  

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Uma experiência gnóstica

Os gnósticos creem num mundo hostil e que, justamente por isso, a humanidade é inviável. Isso decorre de uma experiência humana real, comum a todos nós, mas elaborada erroneamente como doutrina, sendo que deveria, no máximo, ser expressa poeticamente, como o faço agora. Muito embora eu não creia no demiurgo que criou o mundo material inferior em que vivemos eu participo da experiência que criou essa doutrina. Não sendo um gnóstico eu tenho plena consciência que não vivo num mundo de maldade pura, que conspira contra a vida de todos os seres, mas que é completamente indiferente a todos os seres. 

Essa indiferença por vezes se mostra como uma resistência a vontade do ser, o que gera dor e sofrimento. A liberdade do outro com frequência também é fonte de desentendimentos mas, sendo o universo indiferente, a impressão que fica no coração do homem é que sim, ele conspira contra nós e tudo está contra nossa vontade, sendo o universo hostil e a humanidade absolutamente inviável. Mas isso é uma forte impressão que se impregna na alma e acaba por se expressar desse modo não expressando, no entanto, o teor real da crença, de que o universo é apenas indiferente e que, o mesmo coeficiente de maldade que há pode ser encontrado em bondade, misericórdia e altruísmo. 

Mas não é assim que a alma se sente. Na noite escura a alma não se lembra da bondade, apenas vê-se aprisionada numa roda do destino onde todas as paradas simbolizam uma forma diferente de morte. A alma que sofre sente que tudo dá errado para ela nos mínimos detalhes. É assim que me sinto.

Olhando ao meu redor eu vejo como as coisas dão errado, e nada de bom consigo apreender da minha realidade, mesmo que, em algum recanto profundo do meu ser eu saiba que essas coisas existam. Olhando ao meu redor eu sinto que o universo me odeia e tem como seu divertimento particular me ver em desespero. Olhando ao meu redor eu vejo espíritos pequenos, mentes vazias, amizades falsas. 

Eu me olho no espelho e me vejo acima do peso, resultado dos remédios para depressão e do meu ócio somado a péssima alimentação. A vontade que tenho é de arrancar a minha pele com minhas próprias mãos, tamanha raiva por ter um corpo disforme, que já nem pode ser disfarçado pelas tatuagens. Minha conta bancária, no vermelho, me faz sentir raiva das propagandas de produtos de beleza que prometem a pele perfeita dos meus idols, mas que eu não posso pagar pois custam centenas de reais, e eu me contento com um tratamento paliativo que, sei bem, tem efeitos mínimos. E cada vez que me olho no espelho o ódio só aumenta, mas é o ódio que tenho por mim mesmo, pelo meu destino.

O fantasma da mudança volta a me atormentar, as dívidas que aumentam sem controle e, com menos controle ainda, eu me vejo no meio da tempestade sem ação. A vontade de sumir ao invés de voltar para aquele inferno invade meu corpo como a ânsia de um cardíaco. Quantas vezes pensei na morte desde que me disseram que voltaríamos pra lá? E eu que esperava logo ir embora daqui estou regredindo cada vez mais. Na internet um passatempo perigoso é o de ficar vendo anúncios de casas de luxo, destrutivo por motivos óbvios. A contraposição com o lugar onde vamos morar é abissal. 

E então eu chego em casa depois de andar de ônibus sob o sol quente e não consigo dormir, virando de um lado para outro, pensando em quantas coisas deram errado para que voltássemos pra lá. E então me cobram disposição, bom humor, quando meu humor só pensa em se atirar da ponte rio abaixo, em engolir todos os comprimidos de uma vez, ao invés de lidar com a insegurança do futuro, com vislumbres de um amanhã que nunca melhora e nunca vai melhorar.

Tenho tanto medo, do futuro, que me incapacita de agir. Não vejo saída, não vejo como tirar forças pras saídas que me indicam. Como eu posso conseguir um trabalho se em alguns dias em nem levanto da cama? Como eu posso voltar a dar aulas se em alguns dias eu não quero ver ninguém? Mas eu preciso fazer alguma coisa, preciso agir e não ficar aqui com medo, paralisado pela roda da fortuna. 

E essa é a essência da experiência gnóstica, do universo que conspira contra o homem nos mínimos detalhes. De um homem que já está paralisado, de uma vida que já acabou, que só espera para ser enterrada, finalmente, com um punhado de terra na boca, na esperança de que essa terra preencha o vazio que passei a vida inteira tentando preencher. 

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Tortura, vermes e feras

Alguns dias não merecem ser vividos, simplesmente não há vontade em mim para sair da cama e ver as pessoas. Alguns dias apenas devem ser pintados no calendário como um dia que já se foi, não sendo mais do que um estorvo ser obrigado a viver o dia todo. 

Não eu não vejo cada dia como um presente senão como uma enorme enchimento de saco, não é uma dádiva, é uma tortura sem fim, um suplício tremendo e eu, das profundezas, clamo pela libertação. 

Alguns dias não são mais do que dias pra encher a cara e não ver a hora passar. Acordar e ver que o dia passou é um alívio tremendo, melhor do que ficar mofando na cama esperando cada hora passar lentamente, como uma roda de tortura. 

Talvez algum eu me arrependa e queira ver o tempo passar mais devagar, talvez algum dia eu dê valor ao tempo e olhe com pesar pra tantas tardes perdidas. Mas quando esse momento chegar eu só vou ter ainda mais certeza de que o universo, sendo indiferente a todos, não trabalha pela felicidade, já que quando tenho tempo amaldiçoo e, quando ele passa, queremos que ele volte. É uma roda de tortura, onde não há fuga. O gnosticismo em sua fonte mais pura.

X

Fui tirar algumas fotos pra renovação de um documento e me vi apaixonado pelo jovem fotógrafo que me atendeu. Belíssimo. Novinho. Meu número. Mas então, piscianisticamente eu logo percebi que um homem bonito daquele jamais olharia pra mim, seria uma violação das leis naturais desse universo que dizem que tudo deve dar errado pra mim. Não, eu não sou capaz de vislumbrar um futuro onde um homem bonito olhe pra mim, muito pelo contrário, em todos os cenários futuros eu me encontro sozinho e abandonado, um pária, não muito diferente de hoje, mas com muitas rugas a mais e quem sabe ainda mais viciado em fugir da realidade do que agora, pois, se alguns dias pra mim me são um sufoco, talvez no futuro não suporte sequer o peso da existência, quem sabe não apele até mesmo pro suicídio, o findar dessa existência patética, uma libertação desse universo hostil. 

E enquanto isso eles se divertem, com essas garotas sem graça nenhuma que pra eles são o que há de melhor no mundo do prazer. Eu só posso observar a distância, sem jamais me aproximar, sem tocar, como obras de arte expostas num museu, longe do alcance das mãos dos transeuntes que não podem fazer mais do que admirar, e depois ir embora. 

Esse sou eu, aquele que para de frente a um belo jardim, grava aquela bela visão na mente e parte sem olhar para trás. O jardim pertence as borboletas e não a um parasita, um verme para o qual as pessoas viram o olhar horrorizadas, como eu. O universo é hostil e a humanidade é inviável. Não, isto está errado, a minha existência que é um erro. Uma falha na matrix. Uma criação do demiurgo. Um arremedo de aparência humana mas essência de fera. E nenhum homem se apaixona por uma fera.

Por isso alguns dias não merecem ser vividos, simplesmente não há vontade em mim para sair da cama e ver as pessoas. Alguns dias apenas devem ser pintados no calendário como um dia que já se foi, não sendo mais do que um estorvo ser obrigado a viver o dia todo. É melhor esquecer todas essas coisas. É melhor mergulhar no oceano onírico da dopada candura. 

domingo, 21 de novembro de 2021

Jugo de Ferro

É como se eu perdesse o controle sob os meus sentidos, como se concreto fosse enxertado em meus músculos, me impedindo de me mexer, é como se minhas fibras se desfizessem em pó ao menor esforço, quando a ansiedade me ataca, me circunda, me abarca com seus tentáculos num genjutsu de paralisia, e então, de olhos fechados mas ouvidos atentos eu vejo o tempo passar sem que consiga me mexer, sem que meus braços e pernas respondam ao meu chamado. Isso pelo medo sufocante de errar, de não ser bom o bastante, de ser motivo de zombaria

Vaidade? Parece-me que sim, depender da aprovação do outro, querer ser bom aos olhos do outro, mesmo o outro sendo tão medíocre quanto eu. Esse é o pecado que há no fundo dessa ansiedade, um desejo primitivo de querer ser bem visto, algo que eu deveria combater com todas as forças mas que, ao contrário, mina todas as minhas forças, deixando-me inerte, como uma boneca de panos, sem ter como agir, a não ser esperar pelo pior, que vem sem pressa, mas vem de modo irremediável. E então ele me destrói, me reduz ao pó, me faz voltar ao nada. 

Meus braços e pernas parecem amarrados a um pesado jugo de ferro, me sinto prisioneiro do meu próprio corpo, da minha cama, os olhos pesados como se eu tivesse sido proibido de abri-los por uma divindade, a mesma que tornou meu corpo tão pesado que até virar de um lado para outro dói. Faz calor, e eu queria tirar a roupa, abrir a janela, mas nem isso eu consegui fazer, tive de ficar aqui, preso, suando, esperando que, por algum milagre, alguma força fosse enxertada em mim novamente. 

Em minha mente apenas silêncio e escuridão. Mais uma vez. Eu preciso sair mais tarde, mas, como se nem consigo me levantar? Quem me pede ânimo não tem ideia de que não é uma questão de simples desânimo, mas de não ter sequer forças pra erguer um braço, pra tirar o inseto que passa zumbindo perto da minha cabeça. É como se meu corpo simplesmente parasse de obedecer, como se as cordas que me sustentam nesse grande teatro de bonecos fossem cortadas. Como se meu ser fosse esmagado pelo peso do oceano, como se uma mão invisível me pressionasse com força titânica contra o chão. É o peso do mundo sobre as costas de alguém que não é Atlas. Não sinto a vida, ou uma brisa, não sinto mais nada, apenas peso, silêncio e escuridão. 

Essa não é uma crise depressiva comum, é mais do que isso, é uma condenação, é o atormentar de um demônio, é uma prisão dentro do meu próprio ser. E aqui é assustador. 

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Expressões de Impressões

 "Estar sozinho nunca me pareceu certo. Às vezes me senti bem, mas isso nunca me pareceu certo." (Charles Bukowski)

Acho incrível quando uma frase da literatura é capaz de sintetizar uma experiência humana que eu mesmo experimentei, como essa do velho Bukowski que, de certo modo, condensa uma série de vivências minhas em umas poucas palavras que tentarei desenvolver um pouco mais aqui. 

Tenho experimentado essa solidão agradável, mesmo que ela ainda me incomode sob certos aspectos. Tenho me sentido bem assim, sem precisar ir atrás de ninguém e nem implorar por afeição ou carinho. Tenho me sentido satisfeito em ouvir a chuva ou aproveitar uma tarde sozinho no quarto escuro, e isso por si só já infinitamente melhor do que aquele desespero que sentia em ter alguém ao meu lado, construir uma história de amor, por mais idealizada que fosse, e tanto mais idealizada mais machucava o seu contraste com a realidade. 

Por isso a aceitação dessa condição, que eu agora sei que não é passageira mas intrínseca ao meu ser, tem me dado certo conforto. Isso porque me aceitei como alma solitária, como alma que vaga sem encontrar pares ou semelhantes. Aceitei que algumas pessoas são assim, vivem suas vidas sem nunca encontrar quem as compreenda. 

Há alguns dias falava com um amigo sobre as pessoas que esperamos, ele que busca uma mulher que consiga passar pelas tribulações ao seu lado, acho que pode ser perfeitamente possível que ele encontre, que ele consiga alguém que se esforce o suficiente para suportar as mudanças da vida e a dor que elas trazem. Mas, no meu caso, isso seria uma pessoa tão idealizada que somente pode existir aí, no mundo das ideias, não havendo par para mim nesse mundo. E aceitei isso, mesmo que o aceite como uma exceção, uma espécie de arremedo de existência, algo como uma imperfeição fundamental na base do meu ser. 

Pessoas ideais não existem, existem pessoas esforçadas que se encontram e se esforçam juntas e pessoas que devem viver sozinhas, essa é realidade das coisas, bem simples na verdade. As primeiras vivem, as outras contemplam e escrevem. 

X

Não é como se eu já não soubesse que seria assim, sentir esse vazio depois de um encontro com um estranho da internet. De fato o sexo fácil não é nada mais do que isso, algo que de tão fácil se tornou banal, sem significado algum. Nem sequer serviu pra me aliviar, eu não estava no limite. Não serviu sequer pra virar um texto decente aqui, não sendo mais do que um brevíssimo aforismo. Foi apenas um momento que, esperava, me deixasse mais animado, mas só serviu pra cansar meu corpo e me deixar ainda mais desanimado. Foi só mais uma tentativa, fútil e tosca, de preencher o vazio.

Acredito que seja de fato o momento propício a me deter um pouco, pensar mais nos motivos pelos quais eu me submeto a essas experiências, para então conseguir me entregar a alguém. Preciso me conhecer mais, amadurecer mais, curar minha carência que me faz buscar nos outros o que falta em mim, para só então conseguir caminhar ao lado de alguém. Ao lado, nem atrás e nem a frente. 

X

Até quando vamos suportar essa humilhação? Até quando a nossa dependência financeira vai significar o abandono da nossa dignidade? Como eu gostaria de ter a força necessária pra mudar a nossa situação, como eu gostaria de ter algum controle sobre meu destino, como eu gostaria de não ser tão passivo, de poder transformar, de poder lutar, mas eu não consigo. Eu não sei voar, não sei flutuar nas nuvens, não sei lutar, eu me afogo no mar, quando penso que aprendi algo a vida me mostra que na verdade eu não aprendi nada, eu não sei mais nada... 

Se eu quero algo eu deveria lutar por essa coisa. Se eu, por exemplo (sendo bem banal porque o remédio já me impele a ser mais objetivo) tenho certo ideal de beleza eu devo fazer o que está dentro das minhas possibilidades pra me aproximar o máximo possível dele. Deveria fazer a barba mais vezes, usar mais maquiagem, fazer a limpeza de pele com mais frequência, usar de forma correta os produtor de skincare. Mas eu não faço isso, apenas me lamento, apenas reclamo esperando que, num delírio de onipotência, tudo se resolva magicamente. 

Tudo o que posso fazer é ir no meu próprio ritmo, tentar fazer o que der, mesmo saindo tudo errado, mesmo sabendo que qualquer um poderia fazer melhor. Tudo o que posso fazer é caminhar devagar, parar de vez em quando, olhar pro céu numa prece e voltar a andar.

X

A primeira parte, sempre a mais difícil, eu consegui fazer, um passo pequeno como fazer a barba, mas logo as forças terminam, logo me sinto cansado demais pra continuar e aquele ideal de beleza que eu tanto queria alcançar permanece apenas isso, um ideal, distante demais pra ser alcançado, longe demais do alcance de minhas mãos. E então eu os observo, sonhador, esperando que me apareça uma solução, que possa me aproximar daquela beleza divina, daquela perfeição que me parece tão distante... Sou vítima fatal das minhas próprias idealizações. Seja estética ou afetiva o padrão que criei não existe ou simplesmente não pode ser atingido por mim. Meu realismo se exprime no pessimismo destas constatações.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Cenários

É impressionante como algumas conversas sugam a gente. Alguns instantes e parece que atraímos pra nós tudo o que preocupava o outro. Se, por um lado, isso alivia o outro de suas preocupações, por outro é complicado sempre absorver tudo dessa forma, e eu me sinto assim, sempre sendo sugado pelo ambiente ao meu redor. Se as pessoas estão nervosas e brigando isso me afeta, se estão preocupadas isso me afeta. Em casos extremos eu chego a ter crises de pânico e ansiedade quando um ambiente está assim, e eu nem sei explicar direito em que plano isso funciona. Não me refiro a planos energéticos, esotéricos ou algo assim, ou se é simplesmente uma inabilidade em lidar com situações de pressão que acabam me deixando tenso e cansado ao pensar demais sem conseguir enxergar uma solução. Não sei, o que posso dizer é apenas isso, que muitas vezes sinto trazer pra mim o que machuca o outro e, sentindo no outro um alívio, sinto minhas costas doerem como se assumisse no meu corpo parte do peso que antes o outro carregava sozinho. E por isso algumas conversas me sugam, me deixam exausto. Por isso em alguns dias eu não tenho mais forças pra ler ou estudar. Por isso em alguns dias, mesmo sem ter feito nada além de conversar eu sinto como se tivesse trabalhado por horas e mais, com a mente cansada como se tivesse resolvido mil problemas, quando na realidade eu só busquei ouvir um pouco o outro. 

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O céu estava cinza claro quando saí pra caminhar hoje e, embora o cinza seja uma cor triste e melancólica, eu não senti que o dia estivesse melancólico, ou melhor, talvez eu não esteja melancólico e por isso o céu tem me dá essa impressão. Acho que estou passando por um novo ciclo, um pouco mais espaçado do que os últimos, já que a depressão dessa vez durou mais de uma semana, e acho que prefiro assim, aquela montanha russa emocional de três ciclos por semana é extremamente cansativa.

Talvez seja resultado da combinação de uma vida mais leve na igreja, mesmo que a contragosto de alguns, com os remédios certos e um pouquinho de exercício físico que adicionei à minha rotina. A depressão veio mais leve, me derrubou, é verdade, mas não com a mesma força de antes, o que mostra que os antidepressivos que foram somados ao meu tratamento têm dado resultado. Pelo menos uma boa notícia. 

X

Sabe, ainda me sinto irritado quando penso no que aconteceu, e mais uma vez penso que tomei a decisão certa em me afastar. Eu cansei de ser a pessoa boazinha que os outros veem como o menino de bom coração, sentimentalista, que tudo perdoa e deixa passar. Eu cansei de ser compreensivo, de esconder que me incomodava e ficar por isso mesmo. Sempre era eu o elo mais fraco a ter que assumir uma postura de maturidade e aceitar com resignação tudo que aparecia. Mas dessa vez não, eu não quis aceitar e preferi me afastar ao invés disso, e me sinto bem com isso porque, bem, se aquelas pessoas não valorizavam minha amizade, de fato era o certo a se fazer. Eu não quero ser lembrado apenas como alguém que aceita tudo, quero ser alguém que também se impõe quando precisa, que também diz quando se passa do ponto e não quero mais aceitar. 

De certo modo foi libertador, e o silêncio que sinto agora não é assustador, mas de calma. Em paz. 

X

De todos os meus problemas os que mais me incomodam, sem sombra de dúvidas, são os que me deixam mais vulnerável, mais exposto a toda sorte de males: as crises de ansiedade e pânico. As vezes motivadas por algum evento grande mas muitas vezes sem explicação elas me destroem completamente de dentro pra fora, e não é uma destruição lenta, é uma explosão que me consome em chamas e me reduz à cinzas. 

Em noites escuras como essa eu vejo toda minha passar diante de meus olhos, 26 anos sendo um completo inútil, um saco de estrume, absoluta e irrevogavelmente dispensável à humanidade e a qualquer outro. E vejo também meu futuro, viciado, sozinho, sem pai, mãe ou amigos, torcendo pra morte me encontrar na próxima esquina mas covarde demais pra tirar a própria vida. E é quando vejo isso que tudo desaba, que tudo retorna ao nada, que o pânico me consome num dia de ira, me transformando em cinza fria, cinza que voa ao vento, como um nada, cinza que desaparece...

Em noites como essa eu questiono toda existência, minha mente é invadida de perguntas. O que eu teria feito de tão terrível pra merecer esse castigo? E eu me vejo penando no inferno, pagando por numerosos pecados pelos séculos sem fim, e essa visão me desespera ainda mais, e eu esqueço como se respira, como se um demônio pisasse sobre meu peito. Nada do que eu faço pode aplacar o tsunami que vem na minha direção: a chuva não me acalma, a música me faz ficar ainda mais agitado e se eu coloco alguma mais lenta pra tentar diminuir ela faz com que eu tenha ainda mais vislumbres macabros de cenários mórbidos e aterrorizantes, os remédios demoram a funcionar...

Tudo parece tão errado, tão maldito, e eu sem forças pra lutar contra esse inimigo invisível mas que me bate com força, descendo seu martelo em mim, me destruindo, me rasgando, me dilacerando de todas as formas possíveis, como se espetado por uma espada centenas de vezes, rasgado por milhares de agulhas, como se andasse num rio de águas ferventes. Como não entrar em desespero? Como não deixar a mente se desfazer e esfarelar em meio a tanta dor, tantos cenários de morte? 

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Ideais

Refletindo atualmente sobre o impacto das imagens que eu vejo no meu imaginário. Nos últimos meses eu retornei aos doramas coreanos, devido a falta de títulos tailandeses que me agradassem, e então escolhi alguns títulos meio que aleatoriamente ou por sugestão de conhecidos. Primeiro foi Vincenzo e sua trama envolvendo a máfia e intricados sistemas de corrupção, Uncanny Counters com uma história de espíritos malignos, um protagonista fofo e uma trilha sonora linda, A Caminho do Céu, que me fez chorar em todos os episódios e mais alguns outros e aí eu caí no gênero que mais queria fugir, e que fora o motivo pra eu parar de ver as produções coreanas: os romances. 

Muito embora quase tudo que eu veja da Tailândia seja romance, é BL, então eu consigo acompanhar porque é meu maior interesse no ramo do entretenimento. Mas, no caso das produções coreanas os BLs ainda são muito tímidos, embora tenham se multiplicado nos últimos dois anos, o que significa que todas as produções se tratam de romances do tipo hétero. Eu nunca gostei muito desse tipo de romance pela dificuldade de me identificar com a história, e até nos livros isso me incomoda (embora seja mais fácil ler um romance do que assistir) então eu deixei de lado assim que tive contato com as produções tailandesas. 

Acontece que tem um traço específico das produções coreanas que me encantam, fascinam, ao mesmo tempo que me deixam profundamente incomodado: o nível de perfeição dos relacionamentos. Eles simplesmente colocam um padrão nos namoros tão alto que a gente se torna refém daquela imagem, passando a sonhar acordado com os idílios afetivos demonstrados. 

Isso ficou muito claro em Tudo Bem Não Ser Normal onde me perguntei onde encontrarei um homem tão perfeito quanto o protagonista, compreensivo e cuidadoso, paciente e (minha nossa) como é lindo! Agora em Hometown Cha Cha Cha eu continuo surpreso com a forma como retratam o personagem principal: ele literalmente é o homem perfeito que sabe fazer tudo e sempre tira a mocinha das enrascadas. Ali ele é elevado num nível de perfeição quase caricatural, mas a linguagem coreana deixa claro que não é isso: trata-se realmente de uma ideação e uma forma de inspirar as meninas a buscarem homens assim e incentivar os homens a serem assim. 

Protetor, compreensivo (de novo, porque isso é muito importante), habilidoso em o que quer que ele faça, deslumbrantemente bonito, humilde, romântico e extremamente carinhoso, quando não, até mesmo um pouquinho safado. Essas são apenas algumas das características dos personagens de dorama que, passados os episódios iniciais de conflito com a protagonista, desabrocham numa miríade de demonstrações de perfeição. 

Isso, como já disse, encanta, enche os olhos e arranca suspiros. É impossível assistir e não se perguntar quando será a minha vez e é justamente aí que mora o perigo. Ao idealizar um relacionamento que óbvia e claramente jamais poderia existir de verdade ele nos induz justamente a sonhar com o impossível, nos seduzindo justamente pela beleza que a vida real nos furta. Claro, por um lado eles nos inspiram a sermos pessoas melhores para o outro, a sermos sempre a melhor versão de nós mesmos, mas isso também é um perigo a medida que o padrão de comparação é sempre alto demais, o que acaba deprimindo. 

Talvez eu ache isso porque acostumado com a mediocridade dos personagens das obras brasileiras, seja literárias ou televisivas, mas devo admitir que esse contato com personagens elevados num mundo onde estamos privados da beleza e das altas virtudes pode, e isso é o mais importante, elevar as nossas concepções humanas. Num mundo tão feio e pueril ver o belo e o admirável é certamente um alívio, e por isso as produções coreana encantam tanto. 

É possível sonhar com a virilidade perigosa de Vincenzo, ou com a beleza encantadora de um chefe Hong, um super homem, ou com a simplicidade de um cuidadoso Moon Gang-tae. É impossível não se apaixonar por cada um deles e eles são feitos pra isso, para, mostrando o melhor que podemos ser nos inspirar justamente a melhorar. As decepções advindas de esperar um relacionamento perfeito como aqueles é um efeito colateral por isso sugiro o consumo consciente. 

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Uma Playlist


1. One Last Kiss - Utada Hikaru
2. Beautiful World (Da Capo version) - Utada Hikaru
3. Komm Susser Todd (Come Sweet Death) - Arianne
4. Mango From The Wrist - Takayan

Os acordes iniciais da versão Da Capo de Beautiful World, parte da trilha sonora de Evangelion 3.0+1.0 Thrice Upon a Time, por Utada Hikaru foi um dos grande presentes da música nesse ano de 2021. Na verdade toda a faixa é de uma beleza ímpar, e as versões anteriores já eram boas o bastante mas essa conseguiu beirar a perfeição. Em matéria de Jpop essa com certeza é uma obra prima. 

Uma boa escolha pra um dia preguiçoso como este, feriado na segunda, um pouco de ressaca depois do fim de semana mais cheio do que eu gostaria. A mente ainda em branco, sem se ater a nenhum aspecto realmente sério do ser, prefiro me manter à margem da existência e contemplar o universo com a cautela de um animal que experimenta entrar num território desconhecido. 

Em dias assim a beleza tem papel todo especial nessa contemplação, é ela que dá o tom das cores que meu coração vai imprimir no meu humor, por isso a minha escolha de hoje pelas faixas curtas do Jpop que exploram as vozes doces e os acordes criativos de um povo cuja música reflete o colorido da sua cultura. Japoneses tem um dom especial pra faixas, sejam elas baladas ou mais animadas, que contenham uma boa dose de experiência humana real condensada em poucos minutos de voz acompanhadas de orquestras inteiras ou de um simples piano. 

Seguindo na playlist tem ainda a faixa complementar a anterior, One Last Kiss, também de Utada Hikaru, algo sobre o amor verdadeiro enevoar toda e qualquer outra beleza que se apresente ao coração do homem. O amor presente naquele último beijo é então maior que tudo o resto, há beleza aqui também, na demonstração das relações profundas, daqueles encontros de almas, aquilo que de falavam os escolásticos na fórmula Idem velle, idem nollem, querer as mesmas coisas e rejeitas as mesmas coisas, encontrar-se no outro como que num reflexo e assim não se completar, somos seres que só se completam em Deus, mas somar-se ao outro e nos tornamos um todo maior que a soma das partes. 

É essa beleza que me dá forças para levantar hoje, em cujos compassos se tornam como que chamarizes ao meu corpo inerte na cama e prestes a voltar pra lá. Sem estar realmente preocupado ou pensando em alguma coisa. 

Chegando ao fim, a penúltima faixa, embora cantada em inglês, continua seguindo o padrão das outras duas. Tendo sido lançada muitos anos antes ela reflete um sentimento constante no meu coração: a vida efêmera e dolorida que somos obrigados a enfrentar. O adágio que eu repito tantas vezes, e que tatuei no meu corpo, "E tudo retorna ao nada" é um retrato do desespero que o homem pode encontrar ao deparar-se com a verdade da morte, em comparação com seus desejos e orgulhos as coisas ainda desmoronam de um jeito ou de outro, e nos resta o desejo de voltar no tempo, a sensação de que morremos por dentro. Experiência humana brutal, abissal, de forma quase crua, não fosse a faixa um jazz que se contrasta com a letra pessimista da doce vocalista que repete sem parar que tudo retorna ao nada e que tudo começa a desmoronar. 

Hoje é esse dia, de contemplar a experiência humana em sua crueza, sem perder o encanto que traz a beleza consigo em cada uma delas. E é por isso que eu levantei da cama hoje, mesmo com resquícios da minha última crise de depressão, levantei graças a beleza que me conquistou. 

Por fim, finalmente, escolhi o colorido de Takayan em tratar de uma coisa tão séria e pesada com uma leveza impressionante. A faixa não romantiza a depressão, não fala bem da automutilação a qual nós nos sujeitamos com frequência, ela fala do ponto de vista do desespero, desespero que muitas vezes nos faz rir de nós mesmo num acesso de humor autodepreciativo que reflete, na realidade, a destruição da mente em questão. outra experiência humana poderosa, a vontade humilhada, o desespero frente a realidade. Uma boa escolha pra terminar a audição de um modo inesperado, quase esquizofrênico, realçando o caráter ambivalente dos sentimentos humanos. 

E agora, quando os remédios começam a fazer efeito eu decido que é melhor encerrar a reflexão por aqui. Se alguém quiser ouvir as faixas que eu sugeri saiba que elas fazem parte do círculo mais íntimo das minhas experiências e, mesmo que alguém discorde completamente de mim, isso não mudará a importância que cada uma delas teve num momento da minha vida. É apenas expressão de impressões, das minhas experiências humanas profundas. Como a imagem que escolhi como capa, uma pessoa, numa miríade de cores que se contrastam entre si mas que compõem um único elemento: o ser. 

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Resenha - My Sweet Dear

A Coréia vem se esforçando para colocar os BLs na sua grade permanente de entretenimento não é mesmo? Essa é a impressão que a leva de BLs coreanos têm passado nos últimos tempos quando, de repente, vimos um espaço se abrir parar essas histórias naquelas terras e, pouco a pouco, ganhar terreno com obras como Mr Heart, Wish You e o mais recente My Sweet Dear.

Yoon Do Gun (Lee Chan Hyung, de Uncanny Counter e Hospital Playlist) é um jovem chef genial, que comanda a cozinha do Laura's Dining e conquistou para o restaurante a estrela da alta gastronomia. No entanto, insatisfeita com o estilo tradicional de Do Gun, Laura (Jo Seo Hu), a dona, resolve convidar o chef Choi Jung Woo (Jang Eui Soo, de Where Your Eyes Linger e Nobleman Ryu's Wedding) para trazer um pouco de inovação e modernidade ao restaurante. 

De início os dois já entram num embate para decidir quem vai ser o chef principal da cozinha, e Do Gun não gosta de um intrometido comandando sua equipe ao seu lado. Mas, pouco a pouco, Jung Woo começa a conquistá-lo e eles passam a se aproximar, mesmo com o clima de rivalidade.

A série é curtinha, com apenas 8 episódios de pouco mais de 10 minutos que serão compilados em um filme, assim como foi com outras séries coreanas do gênero BL, e esse é provavelmente o único ponto fraco da obra. A Coréia ainda precisa aceitar esse gênero para começar a produzir obras maiores, como os conhecidos doramas que chegam a ter mais de uma hora e meia de duração por episódio. Infelizmente os BLs ainda não são retáveis a esse ponto por aquelas bandas, mas isso vem mudando aos poucos, já que o número de títulos não para de crescer (recentemente tivemos Tasty Flórida e vários curtas com temática gay) e alguns novos já foram anunciados. 

Tirando isso a produção é tipicamente coreana: impecável em todos os aspectos. Como o tempo é curto o roteiro segue uma lógica simples, mas que funciona muito bem e que ficou bem distribuído, mostrando a aproximação dos personagens e o nascimento do sentimento de amor entre eles. Fotografia e trilha sonora perfeitas garantem um show para os olhos, com cenas lindas e um tom cativante, o brilho conquista e a doçura da história deixa aquela sensação de coração quentinho. 

Os dois chefs se aproximam mais ainda precisam decidir quem vai liderar a cozinha, numa competição que já tem um vencedor definido, o que resulta no clímax que nos leva ao desfecho, resolvido de uma forma igualmente simples mas ainda assim bem feita, levando em consideração as observações feitas anteriormente. 

A atuação de Chan Hyung e Euisoo está impecável, no mesmo nível das grandes produções, e eles realmente conseguem comover e entreter. Chan Hyung especialmente tem um talento para as cenas com maior peso dramático que ditou o tom dramático muito bem, com cenas realmente muito boas.

Com efeito, My Sweet Dear repete a fórmula agradável dos BLs coreanos: curtos mas cativantes, com a doçura especial dos doramas, sempre impecáveis em todos os aspectos. O tempo limita o potencial geral mas a série ainda consegue se manter e te prende até o final com um gostinho de quero mais. Se fosse um pouquinho maior a gente amaria muito mais.

Nota: 9,5/10

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Náufrago X De onde estou

Não senti falta, dessas crises de pânico que me sufocam e apertam o peito, não senti falta de ver as imagens mais horrendas com o cair da noite, não senti falta nenhuma de todo o desespero que me consome. Estava bem sem ele, mas ele voltou, como uma figura mortuária a me perseguir, alto e esguio, com um manto em farrapos, e faminto, faminto por devorar minha alma, meu ser, tudo o que sou. E sinto ele me consumir, de dentro pra fora, sinto ele pouco a pouco crescendo, como se fosse explodir e, assim, desaparecer com todo meu ser. Mas ele não explode, apenas consome, mais e mais, me levando ao desespero, catatônico, sem conseguir gritar, preso dentro de minha própria mente, com medo da minha sombra, assustado demais para me lembrar como respirar. 

Era tudo o que eu não queria, esse pavor de volta, o gosto amargo na boca, o medo de tudo, do futuro, da morte, do meu reflexo no espelho. E ele voltou pra me assombrar, pra me destruir sem permitir que eu morra, para me torturar até obter a última fração mínima de agonia, pra me fazer desejar, implorar, pelo fim, pela morte, pelo silêncio que faça cessar todo esse horror. 

E assim, quando isso acontece, eu não sei o que fazer, eu só desejo sumir, eu só desejo que isso pare, só desejo o fim, só desejo retornar ao nada. 

Entende o peso dessas palavras? É um pânico que cresce dentro de mim até quase sair pela boca, chega quase a ser palpável de tão grande, e faz de mim tão pequeno, tão prostrado sobre mim mesmo, tão desejado de entrar pra dentro de um lugar onde nada possa me devorar. 

Na verdade eu queria alguém, que cuidasse de mim, que não fossem meus pais, alguém que me desse segurança, pois agora o que sinto é que estou prestes a ficar à deriva, náufrago, me agarrando aos pedaços de um navio que afundou. 

X

Sentado, as pernas cobertas, a luz quase não penetra as duas camadas de tecido da cortina, o quarto está à meia luz, num espectro meio esverdeado. A música parou de tocar há algumas horas e eu não tive coragem de levantar pra colocar outra. Posso sentir que o clima esfriou um pouco, afinal estar coberto não me incomoda, e eu olho pra frente, mas na verdade não estou vendo nada, minha mente vagueia sem rumo algum, rostos, cores, sensações, o refrão daquela música da quaresma, a voz de alguém sussurrando baixinho. Os retratos de cor e luz da minha mente partem daqui rumo a um mundo completamente distinto, e aqui eu não consigo me mexer. Mas ninguém sabe disso, qualquer um que olhasse diria que estou com preguiça, que meu sono é apenas reflexo da minha indolência, mas eles não sabem de nada. 

Estou levemente bobo por ter acordado há pouco, de um sono natural, surgido da melancolia de um dia nublado. Esse sono não me satisfaz, e ter me mantido acordado durante todo o dia foi um suplício. Eu queria tomar todos os remédios de uma só vez, dormir por dias e dias, não acordar mais. Queria esquecer de tudo, das reuniões, das brigas, das obrigações que me forcei a pegar de volta e que já cansam a minha mente. Estar acordado e consciente do mundo que me rodeia é um incômodo. A sobriedade não é bela como pintam porque a realidade que vemos através dela é podre. O mundo onírico, em suas cores, é infinitamente mais bonito. Por um lado eu sei que é apenas efeito do vício que eu tenho nesses remédios, e essa dependência humilha a minha vontade, mas por outro eu penso que esse mundo realmente não merece ser contemplado, pelo menos não de onde estou. 

Carência, vícios, realmente a minha vontade está sendo humilhada, arrastada na lama, e isso tem me dado uma profunda experiência humana, mas a que preço? O peso dessa experiência é a realidade? Eu estou de verdade com os pés no mundo real? Ou isso é tudo um pesadelo? 

X

Não há como, no entanto, ignorar a célebre combinação de música clássica e o cair da chuva numa noite como essa. Depois de momentos difíceis na solidão do meu quarto eu finalmente consegui vir ate a sala e, enquanto ouvia a Sinfonia N°9 de Dvoràk a chuva começou, enchendo o ambiente de um ar fresco e do som calmante do temporal batendo na telha. É um deleite para os sentidos a combinação do mais natural dos sons com as complexas cores do scherzo da sinfonia. É um deleite para a alma, enquanto o alegro con fuoco explode num rompante de rápida grandiosidade a chuva em sua virtuosa queda acalma o coração, que pulsava inquieto até poucos instantes atrás. 

O que querer

"Cómo hacer pa’ no tenerte
Las ganas que te tengo
Cómo hacer pa’ no quererte, yey"

Uma dessas musiquinhas chiclete da internet ficou grudada na minha cabeça e eu agora fico cantarolando por aí a ponte, o que seria uma coisa normal se esse trecho não correspondesse exatamente ao sentimento que tem me dominado nos últimos dias. 

É como se de repente meu coração fosse arrebatada por esse garoto que eu acabei de conhecer e com quem fiquei menos de duas horas ao lado, mas ainda assim, algo nele me atraiu de um modo assustador. 

Mas eu sei que isso é causado apenas por uma carência momentânea, que eu estou tentando preencher um vazio que já existia, e que foi alargado pelo afastamento de meus amigos. É apenas isso, mas saber disso não o torna menos real, só me torna mais consciente da minha estupidez e da minha fraqueza. 

Meu ardente coração quer dar-se sem cessar mas deveria contentar-se em contemplar o belo. Oh quão distante estou desse ideal, já que meu coração fraco insiste em se desviar do belo, do justo, bom e verdadeiro e sempre recai nas paixões do corpo, nas potências mais baixas da alma, naquilo que há de mais próximo dos animais. 

E é assim que me sinto, bestializado pelos meus próprios sentidos, domado pela minha luxúria, em busca dos prazeres venéreos e ignorando a vida eterna. É assim que me sinto. E, se ao menos eu, ao sentir isso conseguisse realizar esses desejos, mas nem isso, fico apenas no desejar, no querer, sem jamais poder tocar, nem a beleza verdadeira e nem a beleza efêmera desse mundo carnal. 

Como queria ser cego pras coisas desse mundo que não são a beleza verdadeira, como queria não me deixar afetar desse modo por uma paixão tão baixa assim. Como queria almejar apenas as belas artes, aquilo que de melhor há mesmo feito por mãos humanas, e não apenas desejar ardentemente um alguém apenas porque me sinto carente e incompleto, porque alguma parte de mim se quebrou e eu sinto que preciso de alguém para me ajudar a remendar. 

Com o coração como que ferido por uma seta, ou um punhal, eu almejo quem possa me ajudar a curá-lo, mas bem sei que ninguém aqui na terra possui o unguento capaz de sarar tal ferida. É ferida de outro mundo, não se cura com remédio que passa.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Meu Lugar

Não era de se surpreender que eu não conseguiria me manter longe da dopada candura por muito tempo. Ontem e hoje também, com doses cada vez maiores na tentativa de fugir dessa realidade, principalmente das relações humanas, incrivelmente complexas em suas ambivalências que me fazem paralisar diante de um quadro tão incrivelmente intrincado que não posso apreender sua totalidade e, por isso, prefiro ficar com apenas um recorte do todo, já que o todo é demais pra minha mente distorcida, cansada e pequena. 

Pensei estar fazendo a coisa certa, pensei estar ajudando, pensei que seria uma melhor solução. Mas o destino tinha outros planos, e isso significa que eles vão de encontro frontal contra tudo o que eu tinha planejado. Isso me mostra que talvez eu esteja no lugar errado, e por isso as coisas parecem sempre erradas, por isso tudo o que eu faço está errado, ainda que com a intenção certa. 

Talvez o melhor seja me afastar, contemplar o quadro com um pouco mais de distância e, vendo o todo, consiga recortar um outro trecho mais adaptado a mim, o meu lugar, onde eu deveria estar. 

Onde eu deveria estar? Onde precisam de mim, mas digo isso sem a conotação de que este seria o lugar onde seria exaltado. Talvez o lugar onde estou seja onde deva estar justamente por estar sendo humilhado e desprezado, como meu pai São João da Cruz pediu que fosse para ele e certamente para seus filhos. Mas infelizmente eu sou o menor de seus filhos, o mais indigno de me aproximar de seus altos ensinamentos, o único que não deveria atravessar a noite escura por não ser digno de me aproximar das delícias do jardim ao fim da jornada. 

Que eu seja humilhado e desprezado pelos homens, assim disse São João da Cruz como pedido a ser realizado até o fim de sua vida. Homem de grande talento místico, de estatura espiritual gigantesca almejando o último lugar. 

Percebo o quanto eu procuro também os holofotes, demonstrar aos outros que eu estou aqui, que eu sou alguém, seja na alegria ou na tristeza mais profunda, eu quero ser notado, como se minha existência dependesse do outro atestá-la. É isso que devo mudar em mim, o único a quem devo ser importante é Cristo, que quer eu seja o menor como ele foi, se fazendo servo e servindo a todos. Mas isso não seria também vaidade, ou escrúpulos? Questionamentos para os quais não tenho resposta. 

Mas eu não queria que as coisas fossem assim, preferiria que descontassem em mim do que nos outros. Só queria que tudo corresse bem, que cada liturgia fosse uma fração da liturgia celeste, que pudéssemos ver os anjos cantando conosco os louvores eternos. Só queria que a beleza salvasse o mundo, com minha ajuda. Mas parece-me que este não é meu lugar. Parece que tudo o que eu faço está errado e que sempre tem consequências negativas, até pra quem eu gostaria que tivesse boas impressões de mim, que gostasse de mim... Então, qual é o meu lugar? Onde eu deveria estar? 

Todos os dias os mesmos erros, decepcionando quem eu gostaria de impressionar. Toda dia a mesma rotina truncada, permeada de muitas horas contemplando o abismo da minha existência, amaldiçoando o ser, errando tentando acertar. Querendo dormir, querendo sumir, desaparecer como folhas ao vento, não sentir medo, ou atração, não sentir nada. Nem apego ao passado ou ansiedade pelo futuro, nada. 

Por isso eu recorro a esses subterfúgios, porque é mais fácil ir até o mundo onírico donde não me lembro de nada do que viver aqui a mercê de caprichos e humilhações da minha vontade. Por isso tantas vezes eu queria dormir e não acordar mais...

Não era de se surpreender que eu não conseguiria me manter longe da dopada candura por muito tempo. Ontem e hoje também, com doses cada vez maiores na tentativa de fugir dessa realidade, principalmente das relações humanas, incrivelmente complexas em suas ambivalências que me fazem paralisar diante de um quadro tão incrivelmente intrincado que não posso apreender sua totalidade e, por isso, prefiro ficar com apenas um recorte do todo, já que o todo é demais pra minha mente distorcida, cansada e pequena. 

domingo, 7 de novembro de 2021

Resenha - Bite Me

O Mark Siwat não é novo no meio BL, já o conhecemos de obras como Love By Chance, no papel do controverso Kengkla, ou em The Stranded, no trágico par romântico com o Perth Tanapon, mas agora ele finalmente ganhou a chance de brilhar num papel principal e, pra quem acompanhava esse ator tão carismático, a série foi uma gratíssima surpresa. 

Bite Me conta a história do jovem chef Aue (Zung Zidakarn) que, embora já seja renomado, ainda sente que falta algo a sua cozinha, e Aek, personagem do Mark, um jovem entregador que tem um talento extraordinário pra cozinhar, herdado da mãe e da avó que, mesmo de forma simples, sempre cozinharam com muito amor e ensinaram isso ao garoto. Desde a primeira vista Aue se impressiona com a capacidade de Aek de identificar os ingredientes de um prato já embalado apenas pelo perfume, demonstrando uma sensibilidade excepcional pra culinária. Aue decide então convidar o jovem para fazer parte de sua equipe no restaurante, após ele demonstrar que podia até mesmo encantar o chefe experiente com sua comida. 

Aek é apaixonado por culinária, mas cursa outra coisa porque sua mãe não quer que ele tenha um futuro em que ele precise trabalhar tanto quanto ela, que tem uma modesta cozinha numa cidade do interior. Por isso ele reluta em aceitar o convite de Aue, que já está apaixonado, mas acaba cedendo depois de perceber que quer lutar por aquilo que ele ama. 

Aue, por ser mais velho, entende melhor seus sentimentos quanto ao mais novo e demonstra de um modo todo delicado seu afeto. Aliás, esse é o ponto chave da série, que acabou recebendo críticas injustas nas redes sociais por aparentemente dar um andamento lento demais pros personagens. Acontece que essa era exatamente a proposta, seguir o desenvolvimento como o longo preparo de um prato, que exige delicadeza e uma boa dose de paciência. Com isso somos brindados com muitas cenas da cozinha, inúmeros closes no preparo de diversos pratos da cozinha tradicional tailandesa, que é sensacional, e também da alta gastronomia. Quanto ao lado sentimental, os personagens vão como que se cozinhando em fogo brando até que finalmente, após passarem por todo o processo, que inclui algumas dificuldades, poderem finalmente ficarem prontos e serem apresentados como um belo prato a ser apreciado. Isso pode dificultar o entendimento da história passando uma imagem um pouco lenta demais, mas não é um defeito e sim a própria proposta.

Assim como no cozimento os alimentos passam por uma composição de sabores os personagens vão amadurecendo sua relação e, especialmente Aek, a aceitação de seus sentimentos pouco a pouco, até chegar a apresentação final. Dá gosto de ver como o personagem foi construído e a atuação impecável do Mark merece parabéns. Zung também não fica atrás, conseguindo passar uma grande carga emocional do chef em relação ao mais novo. 

A delicadeza da fotografia e do roteiro, compacto e com diálogos mega espaçados dão a dimensão citada anteriormente, o resultando é uma séria cativante que encanta o olhar e aquece o coração, assim como uma boa refeição preparada com muito carinho. 

O casal secundário, Vich (Toon Atirootj), amigo de Aek apaixonado por doces e fotografia e que acaba se aproximando de Prem (Paam Setthanan), o chef responsável pelas sobremesas do restaurante de Aue também tem um desenvolvimento satisfatório, embora só ganhem destaque mesmo no final, assim como a sobremesa depois do prato principal. Os dois são extremamente fofos e doces. 

A trilha sonora também é um show à parte, as faixas Be Mine, de Sudkhate Jungcharoen, e Taste Like You, de Four, são simplesmente sensacionais. 

Enfim, Bite Me é uma série linda, que não vai ser entendida por todos mas que deve ser apreciada lentamente, como que degustada, pra ser bem compreendida. 

Nota: 10/10



Máxima Forma

Para além das grossas nuvens de chuva que se estendem como uma luxuosa pintura barroca acima das colunas cor de creme formadas pelos prédios que dominaram a cidade eu recupero um pouco do fôlego. O fim da tarde ameniza um pouco do calor que imperou durante o dia. Não só ao calor mas também aquela sensação de que este dia não foi vivido, de que apenas existi em cima da cama, rolando de um lado pro outro e folheando algumas poucas páginas dos livros que estão ávidos para serem devorados por uma inteligência mais capaz do que a minha. 

No player eu estou repetindo Omoide Ga Ippai (parte da trilha sonora de Ranma 1/2, um anime ótimo que pouca gente no Brasil viu) uma balada japonesa que remete às discotecas e a influência dessa cultura na música nipo, me agradando o ar de nostalgia que todas as músicas estilo flashback trazem. 

Caminhando por entre a Avenida das Palmeiras eu pensava nos últimos dias, em como tenho conseguido mais ou menos manter o mínimo de controle sobre meu ciclo, mas também nos descontroles recentes. Pensei nas mensagens que mandei sem a devida reflexão e que nunca deveriam ter sido lidas por ninguém. Infelizmente a minha melancolia não é do tipo introspectiva e eu sou comunicativo demais para manter meus pensamentos só pra mim. As muitas páginas que aqui despejo são prova disso. 

Será que isso é o início de um tempo de tranquilidade em relação a minha saúde mental? Ou só um crise mais fraca antes da grande tempestade? O pessimismo também não pode ser mantido só pra mim, precisando ser dito, quase gritado, por mim que já não consigo mais acreditar no amor mas, ao mesmo tempo, não deixo de me levar pelas paixões. Alguma parte de mim ainda é fraca para demonstrações de gentileza que, não sendo mais do que isso, me encantam e ativam a parte do meu cérebro que me faz ter sonhos delirantes sobre o futuro e que aparentemente trabalha mais do que todo o resto do órgão junto. 

Um sorriso, um cumprimento fofo na pista de exercícios, um olhar sem intenção alguma, tudo dispara em mim um gatilho de onirismo poderoso, me arrebatando da realidade para um mundo que, de fato, só poderia ser produto da mente de um maníaco-depressivo ou de alguém sob efeito de drogas, o que as vezes me inclui também, já que os remédios pra dormir são minha constante fonte de inspiração para os escritos mais desprovidos de sentido, como minha rotina não tem sentido algum, sendo apenas uma pequena bolinha de ordem (a parte ainda lúcida do meu ser) flutuando num oceano caótico e abissal.

Na internet pululam mensagens sobre aproveitar a vida, o carpe diem que sempre aparece quando alguma celebridade morre e eu percebo que, de certo modo, segui a maré e resolvi fazer a mesma coisa, afinal beber e tentar se sentir um pouco vivo é também uma forma de disfarçar o desespero da morte com um pouco de alegria, ainda que efêmera e pequena como uma garrada de bebida. É a magia da bipolaridade em sua máxima forma, melancolicamente ativo. 

sábado, 6 de novembro de 2021

Sem lucidez

Silêncio

Lá se foi aquela lucidez que tinha em meu olhar, de volta às lentes sépia, lá se foram as cores, estou de volta para a névoa que me envolve. La se foi a força dos meus membros, eu ficando jogando como uma boneca de trapos, sem forças para levantar, para realizar os planos que tracei. É o início de um outro ciclo. Ou seria o fim? Já não sei mais onde estou nesse círculo infernal, nessa roda da fortuna que é a minha vida, girando sem parar, me fazendo sofrer e sorrir a cada giro ao redor de si mesma. Lá se foram os sorrisos e os "sim" que eu disse. Lá se foram as amizades perdidas, lá se foram cruzando a esquina... Lá se foi o semblante sorridente, o amigo que conseguia ouvir e entender, lá se foi aquela animação inexplicável.  

Vazio

Meu corpo não responde aos comandos mais básicos. Abrir os olhos e ver o teto branco descascando é tudo que eu consigo fazer. Está quente, mas eu não consigo tirar essa roupa apertada que me sufoca e nem essas cobertas encharcadas de suor por causa dos pesadelos que voltaram. Eu preciso sair daqui a pouco, firmei compromisso, mas eu não quero ver ninguém, não quero mexer naquela mesa de som idiota e nem ouvir broncas porque o microfone não está na altura certa, não quero lembrar que minha voz não é boa o suficiente, não quero lembrar que meu latim não basta porque eu não basto, eu sou fraco, tão fraco que nem consigo sair da cama e mesmo que a música que está tocando diga que tudo vai ficar bem eu não consigo acreditar nisso. 

Angústia

Eu queria não ter medo. Já estou velho demais pra temer a separação dos meus pais, e eu quero, tanto quanto eles, que se separem. Quero que sejam felizes, sem o peso um do outro pra carregar. Mas um e o outro não são os únicos pesos que eles carregam. E é por isso que eu temo toda a responsabilidade que vai cair sobre mim se isso acontecer. É por isso que meus joelhos tremem como se eu ainda tivesse doze anos quando penso que tudo ficará por minha conta de agora em diante. E que eu preciso encarar uma nova vida, num novo estado, sem saber se vou conseguir um trabalho que me assegure o mínimo de dignidade. No fim eu ainda sou uma criança de doze anos paralisada de medo.

Medo

As mentiras que contamos para nós mesmos com frequência são piores que as mentiras dos outros. Essas vêm do nosso íntimo, do lugar onde deveria haver aquilo que nos protege de toda dor. Mas é de lá que surgem os sonhos mais estapafúrdios, que nos cegam e nos desviam dos caminhos que devemos e podemos trilhar. A Verdade que deve guiar as nossas vidas deve vir primeiramente de nós mesmos. Ainda que doa, ainda que encará-la seja como encarar o próprio inferno. Mas isso é fácil de dizer, é até fácil de escrever, não acabei de fazê-lo? Agora, difícil é viver de acordo com essas verdade, sem os sonhos que nos alimentam, mas que também nos cegam. Parafraseando Pascal: os sonhos são as únicas coisas que nos consola de nossas misérias e, no entanto, são a nossa maior miséria. 

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Distância

Quero distância de toda positividade
quero sofrer a minha melancolia 
na quietude do meu quarto
de portas fechadas pra realidade

Quero o silêncio e a miragem
quero a noite e as luzes
e talvez uma dose da sua bebida mais forte
pra que eu não chore 

Ou talvez eu chore
e deixe você sair em cada lágrima
e torne a pôr você pra dentro
em cada gole quente de whisky

Quero que as mentiras caiam
e todos vejam que a vida 
que eles tanto lutaram para construir
não vale nada

Assim como não vale a minha
do alto do meu edifício de tristeza
observando que no mundo não há
nada pior ou mais destrutivo que as mentiras

que contamos para nós mesmos.

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

O silêncio que se fez

O céu brilha azul, vivo, e mesmo assim algumas gotas de chuva caem, num contraste interessante. De repente eu não ouvi mais nada, estava instaurado o silêncio. Minhas forças minaram ontem à noite quando, depois de dormir o dia todo, eu ainda me sentia cansado, e então percebi que não era cansaço. Hoje, quando acordei tudo o que senti foi um grande vazio se abrindo dentro de mim, como se um abismo se abrisse no meu peito e me engolisse por completo na escuridão. De repente, o nada havia voltado, e tudo retorna ao nada. 

Consegui prolongar a hipomania por mais alguns dias com exercícios e uma boa dose de positividade. Ou será que não foi obra minha mas apenas a depressão esperando um pouco mais pra voltar? Talvez tenha sido uma graça, pra que agora eu cante como Simeão: Deixai agora vosso servo ir em paz, ó Senhor!

Não quero responder as mensagens, não quero prestar atenção nas puladas de cerca do meu pai, não quero ligar pra resolver as burocracias da renovação da minha CNH, não quero existir, só quero dormir e, se possível, não tornar a acordar ou só acordar quando puder ver o brilho do sol novamente, ou quando a força retornar para as fibras do meu corpo, me fazendo caminhar mais uma vez. Até lá, eu não estou. Estou apenas lidando com o caos que se tornou meu interior. E isso já me toma todo tempo e toda disposição que, aliás, ela mesmo me roubou. 

De repente se fez silêncio
escuridão e trevas
o nada se abrindo em abismo no meu peito
um vazio no lugar onde estava a essência
a melancolia de volta ao seu trono

Me convocando
e eu gemendo prostrando e me perguntando
e eu, pobre, que farei, que patrono invocarei, 
depois de tantos pecados
restando apenas olhar o céu nesse dia lacrimoso.

Eu sei, que não podemos esquecer o passado
não podemos esquecer o amor e o orgulho
porque isso vai nos matar por dentro
e tudo retorna ao nada
e tudo começa a desmoronar