quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Náufrago X De onde estou

Não senti falta, dessas crises de pânico que me sufocam e apertam o peito, não senti falta de ver as imagens mais horrendas com o cair da noite, não senti falta nenhuma de todo o desespero que me consome. Estava bem sem ele, mas ele voltou, como uma figura mortuária a me perseguir, alto e esguio, com um manto em farrapos, e faminto, faminto por devorar minha alma, meu ser, tudo o que sou. E sinto ele me consumir, de dentro pra fora, sinto ele pouco a pouco crescendo, como se fosse explodir e, assim, desaparecer com todo meu ser. Mas ele não explode, apenas consome, mais e mais, me levando ao desespero, catatônico, sem conseguir gritar, preso dentro de minha própria mente, com medo da minha sombra, assustado demais para me lembrar como respirar. 

Era tudo o que eu não queria, esse pavor de volta, o gosto amargo na boca, o medo de tudo, do futuro, da morte, do meu reflexo no espelho. E ele voltou pra me assombrar, pra me destruir sem permitir que eu morra, para me torturar até obter a última fração mínima de agonia, pra me fazer desejar, implorar, pelo fim, pela morte, pelo silêncio que faça cessar todo esse horror. 

E assim, quando isso acontece, eu não sei o que fazer, eu só desejo sumir, eu só desejo que isso pare, só desejo o fim, só desejo retornar ao nada. 

Entende o peso dessas palavras? É um pânico que cresce dentro de mim até quase sair pela boca, chega quase a ser palpável de tão grande, e faz de mim tão pequeno, tão prostrado sobre mim mesmo, tão desejado de entrar pra dentro de um lugar onde nada possa me devorar. 

Na verdade eu queria alguém, que cuidasse de mim, que não fossem meus pais, alguém que me desse segurança, pois agora o que sinto é que estou prestes a ficar à deriva, náufrago, me agarrando aos pedaços de um navio que afundou. 

X

Sentado, as pernas cobertas, a luz quase não penetra as duas camadas de tecido da cortina, o quarto está à meia luz, num espectro meio esverdeado. A música parou de tocar há algumas horas e eu não tive coragem de levantar pra colocar outra. Posso sentir que o clima esfriou um pouco, afinal estar coberto não me incomoda, e eu olho pra frente, mas na verdade não estou vendo nada, minha mente vagueia sem rumo algum, rostos, cores, sensações, o refrão daquela música da quaresma, a voz de alguém sussurrando baixinho. Os retratos de cor e luz da minha mente partem daqui rumo a um mundo completamente distinto, e aqui eu não consigo me mexer. Mas ninguém sabe disso, qualquer um que olhasse diria que estou com preguiça, que meu sono é apenas reflexo da minha indolência, mas eles não sabem de nada. 

Estou levemente bobo por ter acordado há pouco, de um sono natural, surgido da melancolia de um dia nublado. Esse sono não me satisfaz, e ter me mantido acordado durante todo o dia foi um suplício. Eu queria tomar todos os remédios de uma só vez, dormir por dias e dias, não acordar mais. Queria esquecer de tudo, das reuniões, das brigas, das obrigações que me forcei a pegar de volta e que já cansam a minha mente. Estar acordado e consciente do mundo que me rodeia é um incômodo. A sobriedade não é bela como pintam porque a realidade que vemos através dela é podre. O mundo onírico, em suas cores, é infinitamente mais bonito. Por um lado eu sei que é apenas efeito do vício que eu tenho nesses remédios, e essa dependência humilha a minha vontade, mas por outro eu penso que esse mundo realmente não merece ser contemplado, pelo menos não de onde estou. 

Carência, vícios, realmente a minha vontade está sendo humilhada, arrastada na lama, e isso tem me dado uma profunda experiência humana, mas a que preço? O peso dessa experiência é a realidade? Eu estou de verdade com os pés no mundo real? Ou isso é tudo um pesadelo? 

X

Não há como, no entanto, ignorar a célebre combinação de música clássica e o cair da chuva numa noite como essa. Depois de momentos difíceis na solidão do meu quarto eu finalmente consegui vir ate a sala e, enquanto ouvia a Sinfonia N°9 de Dvoràk a chuva começou, enchendo o ambiente de um ar fresco e do som calmante do temporal batendo na telha. É um deleite para os sentidos a combinação do mais natural dos sons com as complexas cores do scherzo da sinfonia. É um deleite para a alma, enquanto o alegro con fuoco explode num rompante de rápida grandiosidade a chuva em sua virtuosa queda acalma o coração, que pulsava inquieto até poucos instantes atrás. 

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