terça-feira, 23 de novembro de 2021

Uma experiência gnóstica

Os gnósticos creem num mundo hostil e que, justamente por isso, a humanidade é inviável. Isso decorre de uma experiência humana real, comum a todos nós, mas elaborada erroneamente como doutrina, sendo que deveria, no máximo, ser expressa poeticamente, como o faço agora. Muito embora eu não creia no demiurgo que criou o mundo material inferior em que vivemos eu participo da experiência que criou essa doutrina. Não sendo um gnóstico eu tenho plena consciência que não vivo num mundo de maldade pura, que conspira contra a vida de todos os seres, mas que é completamente indiferente a todos os seres. 

Essa indiferença por vezes se mostra como uma resistência a vontade do ser, o que gera dor e sofrimento. A liberdade do outro com frequência também é fonte de desentendimentos mas, sendo o universo indiferente, a impressão que fica no coração do homem é que sim, ele conspira contra nós e tudo está contra nossa vontade, sendo o universo hostil e a humanidade absolutamente inviável. Mas isso é uma forte impressão que se impregna na alma e acaba por se expressar desse modo não expressando, no entanto, o teor real da crença, de que o universo é apenas indiferente e que, o mesmo coeficiente de maldade que há pode ser encontrado em bondade, misericórdia e altruísmo. 

Mas não é assim que a alma se sente. Na noite escura a alma não se lembra da bondade, apenas vê-se aprisionada numa roda do destino onde todas as paradas simbolizam uma forma diferente de morte. A alma que sofre sente que tudo dá errado para ela nos mínimos detalhes. É assim que me sinto.

Olhando ao meu redor eu vejo como as coisas dão errado, e nada de bom consigo apreender da minha realidade, mesmo que, em algum recanto profundo do meu ser eu saiba que essas coisas existam. Olhando ao meu redor eu sinto que o universo me odeia e tem como seu divertimento particular me ver em desespero. Olhando ao meu redor eu vejo espíritos pequenos, mentes vazias, amizades falsas. 

Eu me olho no espelho e me vejo acima do peso, resultado dos remédios para depressão e do meu ócio somado a péssima alimentação. A vontade que tenho é de arrancar a minha pele com minhas próprias mãos, tamanha raiva por ter um corpo disforme, que já nem pode ser disfarçado pelas tatuagens. Minha conta bancária, no vermelho, me faz sentir raiva das propagandas de produtos de beleza que prometem a pele perfeita dos meus idols, mas que eu não posso pagar pois custam centenas de reais, e eu me contento com um tratamento paliativo que, sei bem, tem efeitos mínimos. E cada vez que me olho no espelho o ódio só aumenta, mas é o ódio que tenho por mim mesmo, pelo meu destino.

O fantasma da mudança volta a me atormentar, as dívidas que aumentam sem controle e, com menos controle ainda, eu me vejo no meio da tempestade sem ação. A vontade de sumir ao invés de voltar para aquele inferno invade meu corpo como a ânsia de um cardíaco. Quantas vezes pensei na morte desde que me disseram que voltaríamos pra lá? E eu que esperava logo ir embora daqui estou regredindo cada vez mais. Na internet um passatempo perigoso é o de ficar vendo anúncios de casas de luxo, destrutivo por motivos óbvios. A contraposição com o lugar onde vamos morar é abissal. 

E então eu chego em casa depois de andar de ônibus sob o sol quente e não consigo dormir, virando de um lado para outro, pensando em quantas coisas deram errado para que voltássemos pra lá. E então me cobram disposição, bom humor, quando meu humor só pensa em se atirar da ponte rio abaixo, em engolir todos os comprimidos de uma vez, ao invés de lidar com a insegurança do futuro, com vislumbres de um amanhã que nunca melhora e nunca vai melhorar.

Tenho tanto medo, do futuro, que me incapacita de agir. Não vejo saída, não vejo como tirar forças pras saídas que me indicam. Como eu posso conseguir um trabalho se em alguns dias em nem levanto da cama? Como eu posso voltar a dar aulas se em alguns dias eu não quero ver ninguém? Mas eu preciso fazer alguma coisa, preciso agir e não ficar aqui com medo, paralisado pela roda da fortuna. 

E essa é a essência da experiência gnóstica, do universo que conspira contra o homem nos mínimos detalhes. De um homem que já está paralisado, de uma vida que já acabou, que só espera para ser enterrada, finalmente, com um punhado de terra na boca, na esperança de que essa terra preencha o vazio que passei a vida inteira tentando preencher. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário