domingo, 31 de março de 2024

Minha breve experiência pascal

Foi uma das quaresmas mais difíceis que já vivi, passei por humilhações extremas e nem sei quantas vezes pedi que desaparecesse, simples assim, sumindo no ar, já que não podia simplesmente desistir, coisa que meu senso de responsabilidade não me permite fazer. E então eu fui, e continuei, e lutei, e insisti, até que não sobrasse mais nem mesmo tempo ou vontade de viver algo mais...

Não nos vemos há várias semanas, cruzamos rápidamente uma ou duas vezes e ele nem sequer notou minha presença mas, hoje, enquanto cantava, eu olhava diretamente pra ele, e era como se aquelas 300 pessoas não estivessem lá, eu só queria que a minha voz o alcançasse, e por isso cantei com todo o restante de força que ainda tinha. Vou dormir, a primeira vez que deito sem me preocupar se conseguiria ou não formar um coral com pessoas que nem mesmo se conheciam e que não queriam cantar juntas umas com as outras... 

Vou dormir, liberto, sonhando que talvez minha voz o tenha alcançado...

... Mas sem esperar mais do que nossa habitual distância.

E qual foia  minha surpresa quando ele se aproximou de mim para me fazer uma pergunta pela segunda vez, e ainda uma terceira, e o sorriso tímido mas genuíno com um sinal discreto entre servidores de altar que eu lançei a ele. Ao ite Missa est, Aleluia, aleluia, eu delicadamente toquei a mão dele, que repousou sobre a minha, fresca, delicada, não parecendo alguém que joga vôlei todas as noites.

O salmista canta que sua "alma tem sede de Deus, e deseja o Deus vivo" no salmo 41 (42)  e mais à frente ele afirma "subirei aos altares do Senhor, Deus da minha alegria." Numa parafráse eu trago essas palavras ao meu coração ferido de amor: a minha alma tem sede daquela presença, subindo ao lado dele eu teria a minha alegria. Essa é minha salmódia, tantas vezes tornada em Lamentações. "Ferida de amor não se cura, senão com a presença e a figura" diz São João da Cruz.

Esses dias foram, é claro, cheio de impressões que eu não podia registrar naqueles momentos. Como ao ouvir as preces pelos batizados na Vigília Pascal. Em nossa comunidade não tivemos batizados, mas nas comunidades vizinhas sim, e minha amiga mandou foto do seu afilhado de quize anos que recebeu o santo Batismo na Noite Santa, e eu me alegrei por ele e ela pois agora somos todos membros do mesmo corpo de Cristo. 

E numa conversa com minha queria amiga Patrícia falávamos sobre como nos portamos, em como nos doamos tanto a ponto de não sobrar mais a nós, e que a virtude da temperança aqui é fundamental para que, ajudando aos outros, eu cosiga manter-me firme nos meus propósitos sem me exaurir. Ela me fez perceber, uma vez mais, o quanto me dei e com isso atrai quem apenas queria me sugar, de modo que , aprendendo o equilíbrio eu devo conseguir encontrar a alegria do dar e do receber. 

E que tem a ver todos esses assuntos? Bom, tudo está interligado. Seja o meu amor, ao cantar olhando para ele que, no fundo da igreja não deve ter me visto, ainda mais com as luzes apagadas. Mas a luz do círio em meio às trevas nos lembra que há esperança, e cantei ao lado daquela luz, silenciosamente em meu coração repetindo a prece do Precônio "O círio que acendeu as nossas velas, possa essa noite inteira fulgurar. Misture sua luz à das estrelas, cintile quando o dia despontar." É uma luz que ilumina as trevas durante a Noite Escura, durante aqueles momentos de maior desesperança, mas que não se limita a isso, ela se une a luz das estrelas, enfinitamente maiores em números, e brilha com vigor quando passa o período de árduo deserto. 

Também a luz do círio não perde ao dividir o seu fulgor, quanto mais velas ele acendia, mais brilhava vivamente, e mais iluminava ao redor, O que me traz de volta ao equilíbrio de doar a minha luz sem perder com isso meu fulgor. E então, quem sabe, animado eu pois pela ressurreição do Cristo, possa vislumbrar mais uma centelha de esperança, simbolizada pelo fato de que não sei se toquei seu coração com minha voz, mas no dia seguinte recebi o toque gentil de nossas mãos...

quinta-feira, 28 de março de 2024

Firme

Anne Magill

Como já o disse tantas e tantas vezes, apenas quero me distrair com o amor e a beleza dos outros, pois que de mim já desisti há muito.

Preciso aguentar mais alguns dias. Firme. Tríduo Pascal e meu corpo e mente já no limite. Muitas perguntas, muitos compromissos, muitas respostas, muito de tudo, e bem pouco Gabriel a sobrar para oferecer assim. Admito que gostaria de ser mais. Só preciso aguentar mais um pouco, não há espaço para mudanças de humor.

Não, isso é uma mentira, eu não queria ser mais para ninguém, muito pelo contrário, queria ser menos, queria não ser, queria apenas ser uma abstração, uma ideia, sem dores, sem amores, sem cobranças, apenas algum tipo de perenialismo a pairar por sobre os homens sem a pressão de ser o suficiente, sendo que há muito deixei de ser o bastante até mesmo para mim. Já há muito não consigo ser, já há muito eu apenas estou por aqui, mesmo sem estar, mesmo sem querer, mesmo sem conseguir.

Como já o disse tantas e tantas vezes, apenas quero me distrair com o amor e a beleza dos outros, pois que de mim já desisti há muito. 

E minha cabeça não pára de doer, como se a qualquer momento fosse explodir espalhando miolos a esmo, e pior que acho que é bem possível ou, pior ainda, acho que eu gostaria disso. Na verdade eu só queria poder abrir uma garrafa de qualquer coisa forte o suficiente pra me derrubar num copo só e poder ficar bêbado o fim de semana inteiro, sem dissipar o que restou da minha vida em responder perguntas e pessoas irritadas comigo por pouca coisa. E parecem que todos têm prazer em me ver sofrer, qual é o problema com todo mundo?

Como já o disse tantas e tantas vezes, apenas quero me distrair com o amor e a beleza dos outros, pois que de mim já desisti há muito.

"Metade da sua capacidade é dedicada a iludir-se e a outra, a justificar essa ilusão." (Liev Tolstói)

quarta-feira, 27 de março de 2024

Algumas coisas felizes

Ganhei um terço, daqueles feitos à mão, e a moça que me entregou disse que ele foi feito por aquele rapaz. Meu coração deu um salto na hora e eu sorri, terno, mesmo sabendo que provavelmente foi algum tipo de sorteio e que ele não deve pensar em mim o suficiente para fazer algo assim. De todo modo ele tem meu nome, e passou alguns minutos, que seja, pensando em mim, o que já me deixa bem mais feliz do que estive nos últimos dias. Kaoru, pelas mãos do acólito de meus sonhos a tocar o vaso sagrado do meu coração.

Gostaria de estar dormindo, se tornou um hábito, certo vício em me alienar e me distanciar de todas as coisas. É simples, eu só não quero ver, não quero ter que me preocupar, não quer estar sóbrio ou consciente. 

Até tentei, algumas vezes, falar sobre o que me incomodava, sobre o que me machucava, mas tenho estado tão cheio de coisas, tão atolado completamente em obrigações, formações, dúvidas, escalas, ensaios, grupos, que tenho achado melhor tirar proveito da apatia que sa abateu sobre mim num episódio misto brutal, em que tenho experimentado uma depressão que me faz pensar na morte a cada cinco minutos ao mesmo tempo que meu corpo reage aos estímulos da pressão social. Consigo ir a todos os compromissos, mas a minha alma continua adormecida na cama, sonolenta, e minha vontade é de simplesmente voltar ao nada. 

Odeio tudo isso, odeio como me tratam como idiota, e sei que deveria dizer algo, mas me falta força para encarar esse embate, me falta vigor, tudo que quero é paz, mas mesm ficar assim não tem me deixado em paz, aliás, nem sei se isso existe. Mas tenho enfrentado isso, e meu corpo já vem dando sinais de não suportar, até porque abusei dos remédios pra dormir no último fim de semana e já comprei mais para o próximo. Não tenho dado nenhuma importância pra saúde, não quero me autopreservar, ao menos não no sentido de prolongar minhar vida, apenas não quero ser incomodado. Só isso já me basta. Já não sonho com o amor, com a fama ou o sucesso, tampouco com a santidade. Só quero poder voltar pra casa e dormir, em paz. 

Foi inesperado quando, no meio de tudo isso, uma amiga me pediu que enumerasse as últimas coisas boas que tinham me acontecido, e percebi que, embora simples, essas coisas realmente me deixaram um pouco melhor. De fato me abriram a perceber esses pequeninos detalhes que, no meio de todo oceano que me tem acontecido, tornam alguns momentos um pouco mais leves. 

Fiquei feliz pela chegada do outono, com alguns dias um pouco mais frescos. Poder chegar até a parada de ônibus sem estar suado é um diferencial e tanto, talvez devesse considerar morar numa cidade onde é sempre mais frio. Encontrei uma nova playlist com músicas leves, mas não tristes, e a ouvi inteira três vezes nos últimos dois dias. Embalado pelo ritmo simples, delicado, das vozes e dos poucos instrumentos eu respiro um pouco mais fundo, me recordando que esse dia vai acabar e essa semana também. O café que fiz ficou uma delícia, e desde que comecei a tomar café me esqueci de como é parar para apreciar uma caneca assim, fumegante e perfumada, sentindo o sabor e o aroma ao meu redor. E fiquei feliz ainda pelo terço que ganhei, e me recordo de ter dormido segurando-o, em algum dia daqueles de depressão mais profunda, seja numa centelha de esperança de uma ajuda divina ou pelo conforto da memória de saber que, por alguns minutos, ele pensou em mim ao separar cada uma daquelas pequenas contas de rezar. 

Nem tudo precisa ter um significado profundo, discutido exaustivamente pelos maiores filósofos e pensadores. Na verdade, no meu atual estado, sentir o perfume do café enquanto escuto uma boa música, mesmo em meio ao caos, tem sido tudo que eu posso tirar da vida. E o mais qu faço não vale nada!

E claro, mais uma coisa me fez feliz: ver uma foto dele, sorrindo, simplesmente tentando me fazer feliz num dia como esse. Isso fez toda a diferença.

"Meu amor, essa é a última oração, pra salvar seu coração..."

terça-feira, 26 de março de 2024

Um fim de semana difícil

Playing Their Song, Joseph Lorusso

"Pequeno estudo sobre o consolo
Dorme-se"

(Ricardo Domeneck)

Sei que disse que está ao meu lado, meu amigo, mas eu ainda me sinto só, não importa para onde eu olhe. Sinto que toda vez que converso estou a falar sozinho, e sei que isso não é culpa sua, e nem minha, pois essa é minha condição, a solidão é minha condição por algum pecado não lembrado, uma fraqueza da minha personalidade, uma falha fundamental. Sei que disse que está ao meu lado, mas eu não vejo ninguém. Você está com seus filhos na sua casinha branca, de varanda, no campo, e eu estou sozinho, no meio da tempestade.

Ela me perguntou qual a origem da minha dor, eu não sei o que responder, eu realmente não sei. Me sinto cansado o tempo todo, mas acho que é mais do que isso. Não importa o quanto durma, não me sinto melhor. Algumas pessoas dizem que preciso mudar a dieta, fazer exercícios, parar de beber, e talvez estejam certas, mas hoje eu nem consegui sair da cama, elas têm alguma ideia do que estão me dizendo? Eu não sei a origem da minha dor, eu sei que estou sempre cansado, que estou sempre sozinho, e que sempre me aparecem mais e mais coisas para resolver, e eu já não consido dar conta nem das mais simples. E tudo me incomoda e machuca. Minha família, pelo desrepeito comigo, a falta de amigos, por ver todos tendo alguém ao seu lado, o trabalho, com as obrigações sem fim. Mas eu achava que era só cansaço, que eu só precisava dormir muito, mas é mais do que isso. É um vazio imenso, é uma vontade de voltar ao nada, é um simples desejo de não ser, não sentir. É mais do que eu consigo dizer.

"Estou fervendo por dentro e por fora. 
Tudo está queimando, minha alma, corpo, fora, dentro, coração, carne... 
Entende?" 

(Albert Camus)

E esse tem sido um dos fins de semana mais difíceis de que me recordo. Muitas vezes senti que apenas meu corpo estava presente, e as pessoas ainda me faziam perguntas e eu precisava dar respostas precisas, e ainda têm coragem de me criticar. Acontece, quando a gente acha que já está morto vem um sujeito e mostra que talvez haja espaço pra uma última pira de ódio antes de se apagar completamente.

Dormi ontem o dia inteiro, e hoje espero que seja igual. Não quero ver nem ouvir nada. Quero apenas me recolher ao casulo da minha insignificância e, se possível fosse, retornar ao nada. Sim, vou encher a cara de remédios hoje de novo, e isso deve estar destruindo meu organismo por dentro, mas quem é que liga? Não sei o que eu farei se não conseguir mais comprar esses remédios, esse maldito governo que em tudo se mete. Só quero dormir o bastante pra não ver nada, nada em casa, dessa família ridícula que insiste nos mesmos erros, insiste em acreditar numa criatura que não tem nenhum futuro. E eu sou obrigado a conviver, eu sempre sou obrigado a conviver, eu sempre sou obrigado, só queria, por uma vez, não ser obrigado a nada.

Só consigo pensar agora em como amanhã precisarei estar de pé e sorrindo. Essa maldita exigência de sorrir. Eu penso na minha morte em cada momento do meu dia e ainda querem que eu sorria. Malditos!

"Pensar tão profundamente cansa.
Bebo mais uma desta 
e vou me deitar."

(Alberto Pimenta)

segunda-feira, 25 de março de 2024

O que atrai meu coração

Claude Monet (Le Liseur), 1872 -  Pierre-Auguste Renoir

"Sou o homem indicado para uma tarefa à qual talvez me atraiam os impulsos de meu coração mais do que qualquer afinidade justificadora." (Thomas Mann)

Em alguns dias eu mesmo me pergunto o que atrai meu coração. Pareço ter certa propensão, eufemística, para o sofrimento. Sou algum tipo de alvo, como se descontar em mim ansiedades fosse algo comumente prazeroso. Ao mesmo tempo que sou, como já o disse tantas vezes, aquele que faz o que ama e que por isso acham que eu sou capaz de fazer tudo, não poderiam estar mais enganados. Eles assim acabam por engessar qualquer vestígio de capacidade que poderia haver. É uma completa falta de perspectiva. Ou talvez eu já não tenha perspectiva de mais nada... Me enfureço, me entristeço, me encho de preguiça, me vem uma vontade pular de uma ponte, de abraçar e ser abraçado, de ficar em silêncio, de pedir demissão, de dizer umas verdades, de simplesmente desaparecer. E eu quero tudo e nada disso ao mesmo tempo, mas apenas uma coisa permanece imutável em meio a toda a tempestade de sentimentos, é o amor por ele, é a única coisa que se mantém firme. Em qualquer um desses momentos, se fecho os olhos, eu consigo ver claramente a sua imagem diante de mim. E esse fato diz mais sobre mim do que qualquer palavra que eu possa escrever.

X

Foi uma cena patética, e tenho certeza que teriam rido de mim, se alguém tivesse me visto. Achava que sairíamos para beber, nuam sexta de folga inesperada mas, quando olhei ao redor, estava sozinho, esquecido por todos assim que viraram as costas para mim. Voltei pra casa no ônibus meio vazio sem que ninguém notasse. Assim como esvaziei uma garrafa inteira sem que ninguém notasse, assim como chamei aquele garotinho pra conversar porque me sentia sozinho e porque o outro, o que eu amo, não consegue entender uma só palavra do que digo, então se for pra ser incompreendido, que eu ao menos possa dizer qualquer coisa. 

Estou ouvindo músicas num idioma que não conheço, mas reconheço bem que algumas falam de sexo e outras só dos sentimentos, e todas de algum modo falam de alguém, companhia parece ser o tema comum a todas elas, e todos seus autores, poetas e amantes. 

Misturei leite condensado no vinho, porque queria algo doce, mas queria mesmo aquilo que escorre, ou jorra, do membro dele, e não me envergonho de dizer isso, nem por estar bêbado ou tão brutalmente cansado que já não dou a mínima pra mais nada. Ele também está tão cansado que não entende o que eu digo, e talvez só ouvisse a putaria se eu dissesse, por isso mudei de assunto, por isso abri outra garrafa, por isso estou bebendo sozinho, pensando em como seria ter ele dentro de mim, numa proximidade completamente oposta a nossa distância. Mas ter seu pau parece tão impossível quanto seu coração.

X

Acordei por apenas uma hora nessa manhã, e já tomei remédios para voltar a dormir, e voltar a acordar somente à noite, quando tenho ainda mais um ensaio para a semana santa. Preciso apagar, descansar nem que seja à força, porque meu corpo está cada vez mais próximo do limite, e ontem, enquanto bebia sozinho, numa solidão mais dolorida que as tantas outras que já vivi, percebi que meu coração também está próximo do limite.

Me recordo dessa solidão, ainda com dor ao peito, sei bem que não sou companhia desejável a ninguém. Não encontrei quem pudesse me consolar, e agora já não quero mais, pois não existo mais, como os filhos de Raquel a gemer e chorar.

"Assim como, à sua vista, muitos ficaram embaraçados, tão desfigurado estava que havia perdido a aparência humana." (Is 52, 14)

sábado, 23 de março de 2024

Aforismos sobre eu e os outros

"Sur le Pont de I'Europe" - Gustave Caillebotte

Ficaria grato se as pessoas aprendessem o seu lugar. Aprendessem que as coisas não funcionam como elas supõem com sua simples visão de mundo. E ainda sou obrigado a ouvir as piadas, como se a depressão fosse algo que eu escolhi ter, como pintar o cabelo. Me olham com a barba desgrenhada ou as unhas sem fazer, como era de costume, e dizem que estou relaxado, e aí eu lembro de ontem, quando olhava as fotos dos meninos bonitos na internet e pensava em me levantar, tomar um banho, fazer a barba e as unhas, uma limpeza de pele, e que eu nem mesmo conseguia me mexer, que eu simplesmente fiquei ali parado, por horas, olhando o céu, as madeiras das paredes, e nem sequer conseguia prestra atenção na música. Essas pessoas não imaginam como é. Nem mesmo sonham em como é limitante, como é sentir-se tão pesado que nada faz com que seu corpo reaja. Eu poderia ter morrido sentado ali, por horas, e acho que eu realmente queria ter morrido ali. 

X

Você deve saber como é isso. Como é olhar-se no espelho e ver os olhos fundos, as noites de sono já não adiantam muita coisa. O brilho se esmaeceu e o sorriso, já não consegue mais se acender como antes. E então parece que os dias passam sob um véu, distantes, sem cor, e aí aprendemos que não adianta o esforço, que os outros vão continuar esperando que nossos olhos estejam sempre brilhantes, a pele linda, as unhas bem cuidadas, sem perceber que nesses dias fazemos um esforço enorme apenas pra sair da cama, e em alguns dias nem isso conseguimos. 

E os problemas se acumulam, e continuam esperando que demos conta de todos eles, e os dias passam, quentes e úmidos, e parece que ninguém nos vê, e talvez não vejam mesmo. E só continuem falando, e reclamando, e esperando de nós mais do que podemos dar, e mais do que eles mesmos poderiam. 

X

Observo que todos experimentam certo nível de solidão, desde o homem que, todas as noites, se apaga de remédio porque não quer enfrentar a cama vazia ao seu lado, que se perde nas histórias e personagens porque não quer enfrentar a verdade de que não há histórias e nem personagens na sua própria vida. Também a criança deixada pelos pais, que só queria seu carinho e aprovação, que ainda hoje se esforça para ser o melhor em tudo que faz, que ainda espera um abraço ao voltar para casa, mas que se acostumou, acostumou a sentir-se inseguro e insuficiente. Estamos todos sozinhos, irremediavelmente sozinhos. 

Me disseram que, às vezes, a solidão é necessária. Imagino que deva ter nela algum aprendizado. É, deve ser assim. Mas ainda me sinto triste, e sozinho, e ainda olho ao meu redor pensando que todos parecem se encaixar, de algum modo, enquanto eu continuo desonfortável, onde quer que seja, sempre esperando ou procurando alguém... Por isso todas as noites são uma tortura, pois estendo os braços, olho ao redor, e não vejo ninguém. Ninguém. Qual a necessidade disso?

X

Uma vez mais eu sou tomado daquele cansaço extremo, daquela angústia ansiosa, naquela fase em que a fadiga começa a cobrar de mim uma taxa mais alta do que consigo pagar. Ânimos exaltados também, e eu precisei me impor, coisa que só fiz com uma consequente ansiedade. Mas acho que já aguentei demais sem conseguir reagir. 

Reagir. 

É interessante usar essa palavra no atual contexto pois parece que tudo que faço é reagir ao meio, nunca agir realmente. Numa passividade mórbida, apática e vazia. Essa tem sido a minha existência. E só queria um abraço forte onde pudesse repousar. 

X

O mais difícil em nossas relações com os outros é o que talvez pareça ser o mais simples: é reconhecer essa existência própria, que os faz semelhantes a nós e no entanto diferentes de nós, essa presença neles de uma individualidade única e insubstituível, de uma vocação que lhes pertence e que devemos ajudá-los a realizar, em vez de nos mostrarmos invejos ou de querermos infleti-la para conformá-la à nossa. (Louis Lavelle)

sexta-feira, 22 de março de 2024

Aforismos sentimentais

"The Reader" - Ferdinand Hodler


Diagnóstico
Sentimento faz mal pra saúde

(Cacaso)

Não posso mentir, nem mesmo em meio ao caos de todas as conversações e preocupações, ouvi-lo me chamando de amigo fez algo se remexer aqui dentro, como se as borboletas no meu estômago, há muito mortas, voltassem brevemente a vida apenas para reagir a essas palavras. Sei que ele poderia estar bêbado, afinal era seu aniversário de 18 anos e ele já pode beber oficialmente, ou ele talvez só estivesse ocupado e distraído. Mas, poucos minutos depois da meia noite, ele me chamou de amigo, e parecia contente. Talvez algumas borboletas possam voltar a voar aqui dentro...

X

O vazio toma conta de mim nessa manhã quente. Parece que todos estão se escondendo do calor. Eu também estou me escondendo ainda, embora nesse momento de luto quisesse alguém que ficasse ao meu lado, em silêncio. Por isso eu não respondi à mensagem dele. Eu entendi a profundidade daquilo, que a distância não era suficiente para separar corações que estão juntos, e é verdade, mas é verdade também que ele não vê o que isso implica e o que isso significa de verdade. E então me machuca quando diz isso sem saber o que significa para mim. E então eu me entrego ao vazio e me escondo de tudo e todos também, nessa manhã de calor.

Me entrego ao vazio de nunca ter tido uma resposta clara, mesmo sabendo a verdade com clareza. Me entrego ao vazio do abismo que cavei com minhas próprias mãos que, agora vejo, estão cheias de sangue e terra. Me entrego ao vazio de ser patético, e sempre amar sem ser correspondido, de ser esquecido quando qualquer pessoa dá as costas à mim. 

Mais uma vez ele usou aquela palavra para me machucar, mostrando não algo que nos aproxima, mas um limite que ele levantou entre nós. E mais uma vez eu desejei do fundo coração não sentir isso novamente por mais ninguém, não sentir isso por ele que, à distância, não percebe o laço que nos une e insiste em nos separar, e nem por ninguém mais, como os meninos que passaram pela minha rua de madrugada, sorrindo e brincando, inconscientes da minha existência. É claro que eu não faria parte disso, afinal quem sou eu? 

Você entende o que significa dizer que a distância entre nós não nos separa? 

Talvez seja a dolorida lição que aprendi ao rever I Told Sunset About You, o quanto é duro esperar por alguém que não sabe o que quer, que não diz a verdade inteira e que está confortável do jeito que está por medo de encarar a si mesmo. O quanto é cruel e humilhate dar tudo de si a alguém que não pode, ou muitas vezes não quer, fazer o mesmo.

Já na noite de domingo eu sinto o quanto sou dispensável na vida de todos, ocupados com seus problemas, com seus encantamentos... Com aquele convite daquela pessoa especial que, embora conheça há bem menos tempo que eu, já goza de grande prestígio, ou das ansiedades e medos futuros.

Fico aqui, na noite escura, ouvindo música baixinho, e pensando em todos aqueles que sequer se lembram de mim.

Se eu o abraçasse, num abraço apertado ou num daqueles ternos carinhos, ajudaria alguma coisa? Mas não é por mim que ele quer ser consolado. Eu tenho uma serventia limitada, faço o que ninguém mais quer fazer, e isso poderia ser motivo de orgulho para mim mas, se isso também é a causa de tamanha solidão, não faço senão amaldiçoar a minha vida por estar sempre só. 

X

"O que sempre e em toda parte me surpreendeu na vida real é que, até a idade avançada, nunca consegui formar uma noção razoável da pequenez e da miséria do ser humano." (Schopenhauer)

X

Quando olho ao meu redor já não vejo mais pessoas, nem mesmo as que convivem comigo, ou as que estão distante. Tudo o que vejo são os muros que nos separam, as barreiras levantadas, os limites de suas consciência que, não raramente, são usados como arma para me afastar, e assim eu continuo sozinho, numa existência miserável. Não porque me faltam comida ou um teto, não, mas porque me faltam pessoas, humanas.

Não consigo deixar de pensar, quanto mais olho e escuto as pessoas ao meu redor, que aquele homem que tirou a própria vida tomou a decisão certa. Não havia mais razão para continuar. E os outros falam em pedir ajuda? Para quem? Houveram sinais, e mais do que simples rumores, mas as pessoas continuam sendo um peso umas para as outras. Quando alguém pede ajuda ela recebe um sermão, ela recebe essas estúpidas mensagens de positividade, otimismo e gratidão. Gratidão pelo quê? Pelas pessoas patéticas que nos rodeiam e que ignoram o óbvio? Que se recusam a ver o outro? 

Eu sabia que isso ia acontecer e, de algum modo, senti quando aconteceu. Mas todos os outros só souberam apontar o dedo e dizer que ele deveria ter pedido ajuda de quem menos poderia ajudar. Não o culpo, pelo contrário, me solidarizo, e talvez siga os passos dele um dia, sem pedir ajuda para receber em troca um sermão ou que me peçam para me animar. 

Olho para essas pessoas e só consigo pensar que tirar a própria vida e se livrar de todos nós foi a melhor coisa que ele poderia ter feito.

quinta-feira, 21 de março de 2024

Aforismos

"Tantas pessoas viviam fechadas em si mesmas como se fossem caixas, mas de repente se abriam revelando-se de um jeito tão lindo se você demonstrasse interesse por elas." (Sylvia Plath)

X

Uma boa conversa, tão simples quanto encantadora, com desconhecidas, conseguiu me despertar um pouco do torpor no qual estava mergulhado nos últimos dias. Acredito que trate-se de um episódio misto, minha mente estava completamente enevoada ao passo que meu corpo experimentava certa inquietação e ansiedade, o que deve ser uma das definições não formais do inferno. Nos últimos dias não consegui nem mesmo pensar em todos os problemas que tenho em andamento e menos ainda nos novos que começam a aparecer. Não pensei em nada, apenas fitava o computador com jeito sério quando, na realidade, eu olhava um vídeo estático apenas prestando atenção numa longa playlist de MeloMance, e quase nada nesse dia me chamou atenção, só queria voltar pra casa e, com custo, não fui dormir imediatamente, querendo apenas e tão somente deixar de existir e voltar a mergulhar na inconsciência. 

X

“Agora me causaste a primeira dor,
uma dor profunda.
Dormes, homem cruel e sem piedade,
o sono da morte.
Abandonada, olho em torno:
vazio o mundo.
Eu amei e vivi.
Agora, a vida me deixou
Recuo, entro em mim mesma.
Que tombe o véu.
Em mim tenho a ti
e a minha felicidade perdida.”

Schumann

X

Tudo bem, já nem penso muito nisso também. Ele nada disse e eu nada perguntei, e talvez seja melhor assim. Todos sabemos que não estou com muito tempo para me preocupar com coisas, nem mesmo as do coração. Na verdade não tenho conseguido lidar com nenhuma questão. Consigo acompanhar com bastante atenção aos livros, aos personagens das séries... Mas quanto aos meus problemas, bem, esses eu não faço ideia nem de como vou começar. Na verdade não sei se vou, talvez só espere uma mudança no panorama geral, assim mesmo, sem pensar muito. Talvez seja isso que todos queriam não é? Me deixar num estado de torpor e me impedir de agir... De algum modo parece que essa era a vontade do mundo. 

Estou acordando depois de mais de oito horas de sono durante o dia, um dos poucos em que consigo descansar, e só consigo pensar no quanto isso é bom, no quanto o não viver é doce tanto mais se parece com a morte, com o não ser. 

X

Será que as pessoas percebem e simplesmente fingem que não estão vendo? Assim como muitas vezes eu também finjo não ver e não perceber várias coisas, talvez elas façam o mesmo. Em alguns dias simplesmente bate a depressão, vem como um grande peso sobre minhas costas, e aí tudo desmorona. Como hoje de manhã eu acordo e, olhando a luz que entra pela janela, eu desejo só poder ficar ali, não para voltar a dormir, não estou falando de preguiça, mas de algum modo porque desejo me enfiar na cama e me fundir com ela, num desejo de me diluir no ser, de voltar ao nada, como costumo dizer. 

X

"O meu estado não é o da infelicidade e tampouco o de felicidade, não é o da indiferença nem o da fraqueza, não é cansaço nem o interesse em outra coisa, mas o que é então?" (Franz Kafka)

segunda-feira, 18 de março de 2024

Quem me dera fosse o último

"Teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar me abres sempre pétala por pétala como a primavera abre (tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa [...] não sei dizer o que há em ti que fecha e abre; só uma parte de mim compreende que a voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas." (E. E. Cummings)

X

Mais um. Vamos lá pra mais um dia. Quem me dera fosse o último. O que eu faria se fosse o último? Certamente não iria trabalhar, mas também não faria nada de muito extravagante. Acho que simplesmente ficaria em casa, ignoraria mensagens e, deitado, ouviria as minhas músicas favoritas. Com certeza teria Mahler, Tchaikovsky e aquela minha playlist especial. Faria isso acompanhado de um vinho e, depois, dormiria com uma boa dose de remédios. Sim, dormiria, não vejo qualquer razão para, no meu último dia, ter uma expectativa diferente dos demais. Não há palavras que eu gostaria de dizer, disse "eu te amo" vezes o suficiente para umas duas vidas, e nenhuma delas funcionou, então não há porque insistir nisso. Todas as vezes que disse "eu te amo" eu me passei por ridículo, e ouvi em resposta as desculpas mais bem elaboradas que podem todas ser traduzidas como "não te amo dessa forma".  Tampouco haveria porque me despedir de alguém se, no fundo, eu não faria tanta diferença assim. Não seria um fim heróico, nada daquele drama que viveu Aquiles, longe disso, seria apenas um fim medíocre, digno de uma vida inteira vivida em plena mediocridade. Mas agora eu também não vou partir, não vou apenas dormir, e até assim será um sono mediocre. 

X

"O amor permanece numa pessoa; e quando tudo para ela se torna confuso, quando os pensamentos se erguem em acusação, quando as angústias levantam a cabeça em condenação, então, o amor intimida-os, dizendo-lhes: tende simplesmente paciência, eu fico convosco e testifico convosco, e o meu testemunho há-de, enfim, derrotar a confusão." (Soren Kierkegaard)

domingo, 17 de março de 2024

Prantos que correm

Já estou experimentando aquela fase do luto, aquela em que ainda na presença da pessoa me preparo para sua ausência. Porque é sempre assim, antes da ausência real ela se anuncia em sinais que, para o observador, são claros como a luz do dia. Isso porque o amante tem o amado sempre diante de si, então é fácil perceber quando ele está prestes a dar as costas e partir. 

Então isso vai acontecer mais uma vez, mais uma despedida, e ainda dói tanto quanto a primeira. Não deveria ser assim, achei que já estaria acostumado, tanto em corpo quanto em espírito. Mas já ando por aí como se uma parte de mim tivesse me sido arrancada com violência. E o foi, não sobrou nada além de uma casca vazia a vagar, meu coração lentamente a parar.

Mas eu já sabia que ia ser assim, sabia e fingiar não saber. Mas, em algum lugar, em algum cantinho remoto, havia ainda uma centelha de esperança que me dizia que, dessa vez, o meu esforço seria recompensado. Estava errado. Apenas fui útil enquanto necessário, apenas era companhia quando ninguém mais queria, mais uma vez eu fui descartado.

Claro que, mesmo em meio a todo esse pessimismo, ainda me restam alguns questionamentos, eu ainda não consigo identificar o que exatamente há em mim que afasta a todos... Será que, em algum breve instante, ele pensa no meu amor? Mas, não adianta perder tempo com esse tipo de devaneio, de todo modo é tarde demais.

Eu só preferiria que ele me enfiasse logo uma lança ao peito, dando cabo de mim de uma vez por todas, sem fazer com que, lentamente, meu sangue se esvaia assim, em choros e prantos que correm a noite toda.

"Ques és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada." 
(Hilda Hilst)

quarta-feira, 13 de março de 2024

Nota de Pesar | Germano Camargo Busch

Momento de choque ainda não processado completamente com a notícia do falecimento do meu chefe. E já é irônico começar assim porque uma das poucas exigências dele era justamente de não ser chamado chefe. E assim foi, era como a gente se falava lá: sempre que algum problema sério aparecia a conversa ia pra outras bandas... As disputas políticas locais e internacionais, a construção de vias de esgoto, o sistema educacional, até aleatoriedades como alguma história sobre um músico ou político da região. 

Vou me lembrar por muito tempo dessas longas conversas, que tínhamos só por distração, por ser bom conversar e não pensar em problemas. Também não vou esquecer das vezes que reconheceu meu esforço, que viu meu cansaço e me deixou ficar quieto, quando me ligava preocupado, como sorria quando eu dizia que estav bem e pronto pra outra. Poucas vezes conheci pessoa tão simples e gentil, que falava manso no telefone e conseguia tudo de todos assim, sorrindo e lembrando das histórias que ninguém mais lembrava. As piadas sem graça, o dom pra inventar de me fazer trabalhar quando eu já queria ir embora e de me mandar embora quando eu ainda tinha muita coisa pra fazer. 

Repito, poucas vezes conheci e sei que dificilmente vou conhecer pessoa tão simples e gentil. Que conhecia os donos das maiores empresas mas preferia passar o tempo falando com os funcionários ou com o ilustre desconhecido que veio visitar.

Germano Camargo Busch me mostrou um mundo de arte que eu não conhecia, literalmente. Aprendi os bastidores das exposições, que o trabalho intelectual muitas vezes precisa pegar no martelo e arregaçar as mangas, que a simplicidade é o segredo pra não se deixar levar pela loucura acumulada e crescente. 

Não vou esquecer dessa gentileza, que agora tomo como lição a ser seguida e levada em frente. Mas é isso, ele agora se foi, e na outra semana temos que voltar ao trabalho. E como ele sempre dizia "e não tem o que fazer." Ainda assim, obrigado por tudo. Ainda que meu chefe sem querer, foi um dos primeiros que se preocupou comigo aqui em Joinville e que conquistou uma amizade inesperada. Não só me deu um emprego quando eu tanto precisava recomeçar numa nova cidade, ele acreditou em mim. Obrigado.  

Germano Camargo Busch
Vice-Presidente e Diretor do Instituto Internacional Juarez Machado
Fumante de cachimbo em tempo integral e administrador nas horas vagas, músico aposentado, pai e amigo
04/02/1975 - 13/03/2024

Desejo de Aniversário

 "Antes de ti, povoaram a solidão que ocupas,
acostumadas mais que tu às tristezas minhas." 
(Pablo Neruda)

Sabe, não sei se tenho esse direito, mas se pudesse fazer um pedido, ao soprar velinhas, nesse dia tão idiota, tudo que pediria seria uma noite tendo direito a fazer de tudo com você. Me perdoa a baixaria, sei que poderia desejar coisas tão românticas quanto viver uma vida longa ao teu lado, ou coisas desse tipo, mas admito que não sou tão otimista assim. Para alguém que, como eu, já desistiu da vida e possivelmente de céu, ter um vislumbre do paraíso por entre as tuas coxas brancas deve bastar, e o mais que desejo não vale nada. Já não me atrevo a sonhar mais do que isso. 

Sim, não me envergonho de já referenciar o poeta chileno no primeiro parágrafo que escrevi depois de começar a ler seus Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada, que me foi presenteado pela caríssima Aline que, além de bons versos também partilha comigo uma certa inquietação existencial que dá largo à boas conversas e risadas. Me encantei de cara com o que disseram do autor ao representar "o espanto do ser humano diante da experiência amorosa" e senti exatamente o que o autor disse sobre a obra "apesar de sua aguda melancolia, esta presente nele o prazer de viver."

E talvez eu tenha descoberto nesse poeta mais do que versos inspiradores, mas uma realidade que eu fingia não ver muitas vezes: é que sua obra é repleta de saudade, de erotismo, de docilidades em expressões que eu tenho até dificuldade em entender e que justo por isso me despertaram interesse. Mas, ao mesmo tempo em que ele entoa esse adágio lamentoso do que amor que se foi ou que nunca virá, os serus versos não são daquele cinza niilista, frios e fechados em si mesmos, ao abrirem-se ao amor, mesmo na triste perspectiva do amor que não virá, ele floresce: como uma rosa branca que abre suas pétalas em delicado cálice a esperar o rocio do amor. 

Minha abertura é de outro modo, e ando controlando os vícios a que me entrego. Mais cedo li, não em Neruda mas em algum post do Instagram que, vivida como fazemos hoje, nosso futuro terá apenas uma galeria de imagens repletas de pessoas com quem não falamos mais. E é verdade, essa péssima mania que o Google e o facebook têm de mostrar as lembranças dos anos passados mostram que aquelas pessoas se tornaram estranhas. Que declarações de amor se foram (mas voltarei a isso mais tarde), que os sorrisos esmaeceram ante a rotina e que amizades sinceras se transformaram em punhaladas por trás. 

Creio, num parêntese, que o amor sincero possa ser coberto por uma grossa camada de poeira, mas que ele permanece lá. Permanece lá o que sentia por um e por outro, transmutado, ressignificado, mais ainda amor. 

Eu continuo aberto ao amor, embora não vá mais atrás dele por não ter forças humanas suficientes. Estou esgotado, já o disse e o repeti tantas e tantas vezes. E então me deito, numa fresca noite de meia estação, o perfume combinado de Melaleuca, Cânfora Branca e Ylang Ylang impregnando no ambiente numa luz violeta indireta e confortável. Observando o teto eu me imagino como uma rosa branca, de pétalas delicadas abertas a esperar o néctar, pela última vez contemplando a paisagem dos montes formados por suas coxas brancas, num suspiro antes de cair em sono pouco antes do amanhecer.

terça-feira, 12 de março de 2024

Em busca de redenção

Arcos de redenção são complexos de serem construídos, por isso são tão bons. O homem percebe, com certa demora, que as consequências negativas das escolhas erradas são, na maior parte das vezes, irreversíveis do ponto de vista humano. Por isso o cristianismo se destaca como uma novidade tão escandalosa: a condição do homem desde o pecado original é a de se ver prisioneiro de suas ações destrutivas e, no plano da vida corporal, da sociedade, não há perdão e nem misericórida. Mas ao se deparar com um perdão no plano da eternidade, o homem se vê então na possibilidade de mudar o seu destino eterno, infinitamente maior que as consequências temporais de seus crimes.

Enquanto acompanhava o passado de Tee, interpretado pelo ainda novato JJ Patiphan Fueangfunuwat em Dead Friend Forever, eu percebi essa diferença essencial na relação do homem com a culpa que o persegue. 

Não preciso ir longe ao dizer que, no tribunal dos homens, não há perdão. Seja do ponto de vista social, onde na era das redes sociais o linchamento se tornou norma até nos casos mais idiotas e todos agem inescrupulosamente como júri, juízes e executores de crimes que muitas vezes sequer temos o detalhes, ou ainda de quando realmente há uma culpa real e, independente do grau, o homem sempre é obrigado a lidar com as consequências. Por mais que os escândalos políticos ou de ordem sexual de celebridades e outras pessoas consideradas importantes pela massa muitas vezes saiam como impunes, elas enfrentam sim, o que acontece é que nem sempre a consequência é tão chamativa aos outros quantos seus crimes, pois podem se passar em lugares muito mais profundos e, por vezes, inacessíveis aos estranhos. 

Mas, basta observar como muitos dos grandes, ricos e poderosos, que parecem viver sem nenhuma, culpa ou consequência, na realidade terminam tristes, abandonados e definhando como se a força de suas vidas fossem tiradas em pagamento de seus pecados. Os homens enfrentam um decaimento brutal e do qual não se pode fugir e nem mesmo adiar, 

E o homem sempre esteve consciente da culpa temporal que sempre vem lhe cobrar o que é seu por direito. Desde as penas mito-poéticas de Tântalo ou Sísifo, a condenação pelos erros sempre foi o normal, o código de Haburabi, as antigas práticas tribais, mesmo em caso de heróis que recebiam os louros pelas vitórias, seus fins também eram no calor da batalha e da guerra. E ninguém ousava questionar os deuses. 

Mas, ao cristão, é oferecido não apenas um sacrifício pelo peso de seus pecados, mas um perdão que, passando por cima de suas penas temporais, lhe concede uma recompensa eterna, atemporal. O homem paga aqui, ou na montanha do Purgatório, pelos seus crimes, mas a sua alma pode repousar na eternidade: e isso é uma novidade sem igual! 

A morte é então, não uma condenação, mas um prêmio oferecido de bom grado aos homens arrependidos. Por isso é que a redenção é vista com desconfiança pelos homens, foi assim no tempo de Cristo e o é ainda hoje. Como pode um criminoso, crucificado publicamente, ser perdoado e ainda no mesmo dia encontrar seu Senhor no Paraíso, antes daqueles que julgavam ser mais merecedores do que ele? Discussão mais longa do que eu planejo ter aqui, mas a sua crucificação foi já pena de seus pecados e o perdão recebido, em verdade, lhe deu um prêmio eterno que não poderia ser visto por esses mesmos homens que deverias, eles mesmos, enfrentar cada um juízo particular onde se apresentará sem nenhuma máscara diante de Deus, como São Dimas o fez ali mesmo ao lado do Cristo. 

As pessoas vão seguir desconfiando dos arcos de redenção. O passado problemático dos homens, as suas dores, não são justificativas para suas escolhas erradas, mas até pelos crimes mais brutais há uma pena temporal a ser paga, seja na solidão da vida humana ou nas dores centenárias do Purgatório, mas a todos é oferecido o perdão em troca de arrependimento verdadeiro. É simples e vai continuar sendo causa de desconfiança, mas o perdão é, por definição, divino demais para ser entendido pelos homens. A nós é oferecido recebê-lo e entendê-lo, apenas na eternidade.

O Tee de JJ Patiphan fez coisas terríveis. Tratou o pobre Non como lixo. O enganou, sabendo de sua frágil condição, onde só queria ser aceito como parte do grupo, para fazê-lo entrar num esquema complexo de tráfico muito maior do que ele jamais viria a entender. O garoto foi usado não apenas para fazer um trabalho de colégio, mas se tornou parte de um esquema criminoso e, ao se ver abandonado pela família, foi capturado, torturado até encontrar seu fim num covil imundo, descartado como um animal morto, o qual perdendo sua utilidade de divertir o dono, é enterrado no fundo do quintal e logo esquecido. 

Em dado momento Tee percebe as graves, e irreversíveis consequências de suas ações. Ele se lamenta por ter entrado nesse mundo, a doença mental que reduziu seu pai a um demente, e até tenta ajudar o pobre que ele mesmo condenou. Mas era tarde, tarde demais, e agora, não havia nem mesmo uma consequência violenta a enfrentar, sua condenação, embora tão brutal quanto, seria a condenação a solidão e a observar, dia após dia, a sua miséria. 

No entanto, ao encontrar White (Fuaiz Thanawat), é lhe apresentado uma chance, uma pequena chance, uma centelha de perdão, de recomeçar. É lhe apresentada então, na figura daquele garoto fofo e que vinha todos os dias para vê-lo, a possibilidade de algo que ele, embora perseguisse, desconhecia: redenção. 

Tudo o que passa
É mera aparência;
O inalcançável
Aqui se alcança;
O indescritível
Aqui se completa;
O eterno feminino
Enfim nos enleva.
Eterno! Eterno!
Tudo o que passa
É mera aparência;
O eterno feminino
Enfim nos enleva!

(Palavras finais do Fausto de Goethe na 8° Sinfonia de Gustav Mahler)

A busca pela redenção, no entanto, é complexa demais para terminar simples assim. E o fim enlouquecido do Tee que havia matado com suas mãos o homens que lhe oferecera a redenção, foi o preço alto a se pagar pelas dores que causou ao destruir uma família inteira.

segunda-feira, 11 de março de 2024

Nuances

Fico tocado quando chama a atenção para essas nuances que, muitas vezes, nem eu mesmo percebo em mim. Às vezes volto a pensar que esse personagem que criei, essa criatura sorridente e inteligente, é uma condenação a qual eu mesmo me inflingi. Acontece que as pesssoas simplesmente não percebem nada disso, no máximo às vezes notam o meu cansaço físico, apenas isso, mas captar essas minhas nuances, saber a diferença entre meu cansaço, minha depressão, entender quando estou nas mais diversas fases e trocas de humor, quando me chateio com algo relacionado a ele ou aos outros, quando estou preocupado, quando estou irritado, essas coisas ninguém mais vê. 

E talvez por isso mesmo eu me preocupe, em ficar tão exposto assim porque isso significa que ele poderia fazer o que quisesse comigo, e quantas vezes as pessoas não usaram essa oportunidade para me destruir? Mas não era esse o ponto de hoje. 

"O animal sente e intui; o homem, além disso, pensa e sabe. 
Ambos querem. 
Enquanto o animal comunica sua sensação e disposição por gestos e sons, 
o homem comunica seus pensamentos aos outros mediante a linguagem, 
ou os oculta por ela. 
Linguagem que é o primeiro produto e instrumento necessário da razão." 
(Arthur Schopenhauer)

Ele falou sobre como eu perdia tempo falando com ele, sendo que é a única pessoa com quem converso todos os dias, inclusive nos mais difíceis. E isso, antes de ser perda de tempo, é algo que eu teria grandes dificuldades em conseguir explicar, senão por simbolos e imagens. 

Isso porque ele nem imagina quantas vezes me salvou, me arrancando da letargia, quantas vezes me lembrou do caminho certo justamente por me pedir que lhe indicasse esse caminho, quantas vezes me fez melhor, por buscar conhecer mais coisas que me pedir para lhe ajudar a entender. É uma relação complexa mista de vida intelectual, espiritual e amizade, amor.  

Essa trama complexa, onde palavras com aparência de banalidade revelam desejos e virtudes profundas, uma luta constante contra vícios e uma busca pela sinceridade e pela verdade, essa trama é onde nos encontramos. 

E claro que eu poderia fazer aqui uma longa defesa em como isso seria motivo mais do que suficiente para que ela fosse aprofundada, oficializada, de todos os modos possíveis. Mas ele não enxerga assim. E aqui talvez ele consia enxergar o quanto essa divisão final me machuca. É como se conseguisse conquistar um império inteiro depois de grandes batalhas, de cercos intermináveis, mobilizando toda uma população que se dividia entre guerreiros e vigilantes que oravam pela vitória mas, depois de vencidos os inimigos, os aliados se recusam a unir-se verdadeiramente, desfazendo então tudo o que fora conquistado. 

E claro que já nem mesmo penso em dizer isso, argumentar, explicar, me abrir. Já não sou levado à sério. Talvez, assim como eu, ele não queira prestar atenção a certas coisas que seriam sérias demais para lidar, e talvez ainda ele já tenha se decidido por nunca lidar com isso, me fazendo apenas aceitar silenciosamente a verdade que ele escolheu seguir.

"[...] O ser humano 
Não tolera muita realidade." 

T.S. Eliott

Acho que, algum dia, a única coisa que eu lhe pergunte seja se ele realmente me convidaria para o seu casamento, mesmo enxergando em minhas nuances que isso seria para mim a pior das dores? E creito que já sei qual seria sua resposta. E é por isso que eu deveria partir antes que ele me respondesse. 

Já não sonho nem mesmo com o outro jovem, aquele de alva ao lado do ancião da ordem de Melquisedeque. Ele nem olha para mim e o olhar desinteressado para tudo mais é ainda mais indiferente em se tratando de mim. 

E, falando em nuances, nom será que ele enxerga todas as nuances nas entrelinhas do que disse aqui? 

domingo, 10 de março de 2024

Indivíduo e Destino da Humanidade

A internet não precisa de mais uma análise dizendo o óbvio que se recusam a enxergar que o segredo para uma boa adaptação está na fidelidade ao material original em equilíbrio com os elementos necessários a, pasmem, serem adaptados na mudança da mídia em questão. Claro que, em se tratando de mídias diferentes, onde se explora modos diferentes de dizer coisas sobre a experiência humana essa passagem é sempre complicadíssima, por isso temos tantas adaptações lamentáveis mas, por outro lado, outras promissoras em vários sentidos. Mas, como disse, muita gente já fala sobre isso e, espero que quem tenha dinheiro para financiar as próximas temporadas de Avatar: O Último Mestre do Ar os escute e continuem o trabalho que, ao meu ver, foi nada menos do muito primoroso nesse primeiro livro dos três que compõem a saga do mestre dos quatro elementos.

Mas não é isso que quero falar, sendo apenas um elemento central da trama e que perpassa por todos os três livros que me faz querer refletir num aspecto que pode ser tomado para crescimento particular. 

Olavo de Carvalho fez um trabalho primoroso ao descrever a sua Teoria das Doze Camadas da Personalidade e, hoje em dia, com a rasa maturidade das pessoas no geral, é raro ver uma construção efetiva ser feita nesse campo. No entanto, em se tratando desse aspecto, acredito que A Lenda de Aang tenha bons exemplos a serem observados, sendo um dos que mais me chama ateção, mesmo vendo a longa jornada de crescimento de todos os protagonistas, é a jornada de Zuko em busca da retomada de sua honra. 

O príncipe exilado da Nação do Fogo, rejeitado pelo pai desde a tenra idade, que lhe disse as duras palavras que seu filho teve apenas sorte por nascer, não sendo mais do que um degrau para sua irmã, a legítima herdeira do trono por sustentar em seu espírito o desejo se tornar-se senhora de todo o mundo através da conquista por meio da superioridade do elemento violento do fogo. 

Zuko, e aqui me admiro ter ficado atento mais ao personagem do que à beleza do ator Dallas Liu que o interpreta (com exceção da cena do combate em que ele aparece sem camisa, ali eu não lembrava mais nem do meu nome), inicia sua jornada apenas como um príncipe que queria retomar ao seio de sua nação e assumir seu lugar de direito. No fundo, encontrando-se em plena camada 4, em busca da aceitação do meio, ele já acreditava lidar, desde muito novo, com a questão de sua vocação ao trono. 

Os constantes fracassos, a rejeição da família bem como a aceitação vinda de onde menos esperava, como seu retono a tripulação que anteriormente salvara e o jovem Avatar que sinaliza sua vontade em buscar conciliação entre suas jornadas, o fazem avançar a camada seguinte de desenvolvimento ao perceber que deve crescer e realizar por si os seus feitos, mas ainda preso ao objetivo inicial que cria ser a única ponte de volta ao trono. 

É no ápice de sua jornada, quando ele reconhece os erros da sua nação, a fixação de sua família pelo poder e pela dominação do mundo, quando ele aceita a punição de ser julgado pelo grupo a que se juntou tomando para si a missão de treinar na dobra de fogo o Avatar que antes era apenas uma criatura a ser capturada e um empecilho nos planos dos dominadores de fogo. Zuko ao longo dos anos passa de um príncipe que apenas queria ser aceito como tal e se vê diante de uma vocação muito maior do que a de Senhor do Fogo. Embora o papel de mestre do Avatar seja menos glorioso no sentido hierárquico daquilo que ele acreditava ser sua vocação, ele na realidade acencd aos patamares das camadas mais altas da personalidade ao tomar controle de um destino que vai além da sua história ou da de sua família: ele se torna parte da história do mundo, e muda o fluxo dessa história, assim como reaprende a sua dobra por meio da respiração primordial dos dragões. 

Ele não se encontra mais apenas diante da sua irmã prodígio da dominação ou do pai, temido em todos os povos, e nem mesmo pelo tio, o exemplo de virtude que contrasta com o seu berço falido. Ele se encontra diante do destino da humanidade e do seu papel como indivíduo que vai ajudar a moldá-la, um destino, uma vocação, muito maior que qualquer trono poderia lhe oferecer. O príncipe Zuko, então Mestre Zuko, aquele que ajudou o Avatar a parar a guerra que colocaria todos os povos sob a bandeira de uma única nação, se encontra então numa missão infinitamente maior, que abarca e transcende até mesmo aquela que ele antes tinha pra si. 

E isso não e feito sem a dor das derrotas, sem as constantes digladiações com o outro que parece sempre mais senhor de si e de seu destino. Zuko encontra nos sucessivos fracassos a força necessária para alcançar uma vitória tão maior quanto mais silenciosa, que se revela apenas muito sutilmente na mudança de sua aparência, onde o antigo cabelo comportado e a farda principesca dão lugar ao jeito desleixado que inclusive tampa parcialmente a cicatriz, simbolo não de sua falta de honra, mas consequência de uma época em que ele não sabia do seu papel no mundo. 

sexta-feira, 8 de março de 2024

Algum tempo

Claro que eu precisei recorrer a uma boa taça de vinho, ou três, antes de dormir ontem, ainda tendo as últimas palavras da noite com ele, mas tentando não pensar muito, tentando não derramar mais lágrimas, tentando não desistir de mim, mas já completamente entregue, apagando o que o dedo escreveu com o coração. Foi uma noite imerso em tristeza profunda.

Numa nova manhã, parece que fizeram questão de não me deixar pensar nem por um instante sequer, sendo bombardeado de imagens e informações desde cedo. As mensagens se acumulam, nem sei quando conseguirei responder a todos, minha única vontade é de permanecer em silêncio, se possível no escuro, me concentrando em alguma música, como foi ontem à noite enquanto ouvia a Paixão Segundo São Mateus do Bach, sem entender uma só palavra mais ainda atento a cada compasso como se nas partituras daqueles instrumentos caminhassem meus pensamentos mais profundos, como se aqueles violinos e as vozes do coro pudessem levar embora meus sentimentos. 

Também observo a chuva pela janela com algo parecido em mente. Seria mais fácil se tudo que sinto simplesmente fosse assim, como a água que escorre, mas parece que ao fim tudo acaba desaguando em mim novamente. Queria que fosse fácil assim, mas não é. Já faz um tempo que não estou legal.

X

De algum modo vai respingar em mim, sempre assim. Em todo lugar parece que as pessoas gostam de empurrar problemas para mim. Já tinha visto aquele rosto cansado, mais do que o normal, e sabia que havia algo por vir, só não imaginava que seria tão sério. De todo modo já estou habituado a notícias complicadas e problemas que, em algum momento, vão voltar para mim. Acho que sou a pessoa que resolve problemas, ou melhor, que recebe os problemas.

Um problema em si, quando o é de fato, dificilmente pode ser solucionado pela mera análise e ação, como pensam os pragmáticos, mas envolve uma mudança no quadro geral que dificilmente depende apenas da ação individual. 

Ontem ouvi alguém dizer que "ter um dia difícil é normal, mas uma vida difícil não" e parece ser exatamente o que acontece comigo. Os problemas se multiplicam, as pessoas me mandam mensagens com coisas triviais ou enormes esperando que eu resolva tudo, naquele instante, com facilidade e sem erro. 

E é assim, 

dia após dia, 

dia após dia, 

dia após dia

Eu pensava que precisava dormir um pouco mais, e então tentei ir pra cama mais cedo, ou tirei um fim de semana inteiro para ficar na cama. Mas era mais do que isso, não era algo tão simples assim. Queria que fosse fácil assim, mas não é. Já faz um tempo que não estou legal. Já faz algum tempo que eu não vejo nada do caminho, sempre ansioso, nervoso, respondendo um sem número de mensagens e ouvindo áudios, intermináveis, insuportáveis. Já não tiro mais fotos como antes, mesmo que minha pele esteja bonita, não vejo beleza em nada mais, ainda que o jardim aqui na frente esteja pleno, que o sol brilhe a pino me dando oportunidade de experimentar a luz antes do retorno do inverno, ao que eu já deveria me preparar para as fotos bonitas de casaco e cachecol, mas nada disso me anima. Nada me encanta, nada me desperta. Tudo que eu espero é o golpe final e derradeiro.

É, já faz um tempo que não estou legal. 

quinta-feira, 7 de março de 2024

Uma mensagem que foi vencida

Acabei de experienciar um livro com uma mensagem que foi completamente vencida pelo pessimismo, à medida que justamente tentava mostrar alguma esperança, alguma força no sonhar, mas acabou se perdendo numa louca melancolia, sem destino, que evaporou. 

O Livro de Líbero, de Alfredo Nugent Setubal, conta a história desse rapaz com nome engraçado, magricela e fraco que, um dia ao conhecer um estranho num circo mambembe que chegara a pequena cidade onde ele morava, se vê diante de um livro que conta sua vida. Assustado com a possibilidade de não ter controle sobre nada, ele foge. Mas daí em diante ele se torna obcecado pelo livro que se perdeu nas estradas.

Controle. Um tema recorrente a qualquer um que pense um pouco no futuro. 

Lidar com expectativas é sempre um problema, as pessoas imprimem umas nas outras o que elas esperam, mas muitas vezes não conseguem alcançar, de si mesmas. Os filhos são pressionados a seguir os passos ou superar os pais, seja no campo profissional ou pessoal. Os chefes esperam que os funcionários correspondam fielmente a todas as suas expectativas. Amantes e amigos fazem a mesma coisa, todos esperam uma certa cota ideal de fidelidade, carinho, compreensão, companheirismo, etc... Aprender a lidar com essas expectativas e equilibrar o que se quer, o que os outros querem e o que é possível fazer, é uma equação complicada que todos estão, de certo modo, tentando empreender.

Mas diante da perspectiva de uma vida que já está escrita Líbero se apavora. O estranho que lhe entrega o livro, no entanto, lhe acalma mostrando que as páginas futuras mudam de acordo com as decisões que ele toma. Mas aí há outro problema que se revela: o futuro que depende de si mesmo.

Se, por um lado, um destino escrito lhe dá o desespero de não poder escolher a própria vida, seja boa ou ruim, fazendo dos homens meras marionetes num teatro de comédias ou tragédias incontornáveis, por outro, se a vida depende absolutamente de nossas escolhas, o resultado, seja bom ou ruim, faz de nós prisioneiros de uma comédia ou tragédia incontornável que ainda tem o peso de se culpa nossa.

No fundo o autor tentar apresentar o problema, antigo diga-se, entre determinismo e livre arbítrio, mas a sua própria história mostra que estamos presos a ambas as realidades, que há sim elementos determinados e que nós escolhemos e que ainda assim somos prisioneiros. De algum modo estava determinado que Líbero seria sempre um trapo de gente, sempre sofrendo por ver demais ou por não conseguir ver nada, mas ao fazer uso de seu livre arbítrio e não ler seu livro, e depois decidir partir em direção a buscá-lo até perceber que, ao fim, sua jornada fora em vão porque perdera tanto tempo tentando encontrá-lo que as possibilidades que tinha de transformar seu destino se limitaram de tal modo que a tinta se tornou seca, não mudaria mais. 

O final é deprimente, ele embarca numa missão de autoconhecimento, ou descobrimento de si mesmo em que, pegando elementos que ele fotografou de dezenas de pessoas em décadas de vida errante enquanto procurava por seu livro da vida. Ele não viveu, passou sua existência esperando, buscando, procurando por uma perspectiva, mas ignorou tudo que ele poderia ter vivido e, só percebeu isso tarde demais. Num amálgama de Capitão Nemo e Dom Quixote, ele acaba então vivendo a vida desses personagens, ou melhor, aspectos recortados da vida deles. 

Até concordo com o fato de que nossa identidade se contrói nessa compelxa relação com os outros e o meio, em como coisas que estão em nós em potência vão se revelando ou se tornando mais escondidas à medida que as pessoas ao nosso redor vão nos moldando, por imitação ou negação, numa complexa texa de nexos causais. 

O meu ponto é que o autor tenta mostrar que nada disso importa, que nunca é tarde pra sonhar e recomeçar, todas essas coisas, quando na verdade ele apresenta personagens todos destrúidos, presos ao passado, que só conseguem pegar do meio o suficiente para uma subsitência muito abaixo da de uma pessoa normal. Todos estão acabados, e bem o sabem, e apenas continuam por teimosia, mas não chegam a mostrar um sonho de fato, apenas continuam, lutando contra um futuro que já os venceu. Se era para me sentir motivado, não funcionou, mas se era para mostrar que a vida é esse fluxo ininterrupto que, a qualquer momento, pode se mostrar tarde demais para mudar, aí sim eu concordo completamente, que estamos condenados a ficar eternamente trabalhando contra um tempo que já venceu. 

quarta-feira, 6 de março de 2024

Salmo 21

Mesmo com as chuvas intensas o calor não amenizou, eu ainda suava e minha pele estava oleosa e macilenta, e a cidade inteira debaixo d'água. Em certo ponto da noite, enquanto ignorava mensagens de pessoas preocupadas comigo, ecoava na minha alma as palavras do velho profeta "Ouve-se por toda terra uma voz, lamentos e soluços amargos, é Raquel a chorar por seus filhos. Já não quer ser consolada, pois eles não mais existem" (Jr 31, 15). A chuva caía com força, as portas estavam abertas e eu podia ouvir tudo, e imaginando que, quando o sol voltasse, reabriria claro e forte, triunfal como rei que regressa da batalha. Pensei, por um brevíssimo instante, que eu também poderia voltar, deixar que toda aquela água levasse consigo as minhas dores e essas lamentações. Mas foi um pensamento breve, e acho que fui todo seguindo aquela enchente, sem rumo, apenas destruindo tudo por onde quer que passasse. Era noite violenta, e meu coração também estava inquieto, e ainda agora não sei se aquietou ou se já se encontra ao fim do luto, do luto esperado, do golpe derradeiro de que falei dias atrás, do golpe que me permitiria partir, seja para os braços da irmã morte ou para o despertar de uma nova vida. Muitas coisas passaram pela minha cabeça, é verdade, mas em nenhum momento houve um lampejo de disposição, seja para tomar algo além da garrafa de espumante caro que ganhei de presente, e nenhum sinal daquela energia que vinha tendo nas últimas semanas. Fui deixado só, na companhia da chuva que caia forte e que, pelo tempo, já deveria ter alagado boa parte da cidade, e só conseguia pensar em como estava absolutamente sozinho. Ele até tentou dizer que estava comigo, mas não é verdade, estamos distantes, em todos os sentidos possíveis. Não só ele de mim, mas eu estou distante de tudo o mais, senão que me sinto um intruso até mesmo nessa chuva. Não foi com essas palavras, mas eu também, naquele momento, só conseguia pensar "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Sl 21).

X

E mesmo assim não é suficiente. Que eu o entenda, ou que me esforce para ajudá-lo, ainda que lute bravamente contra minhas próprias vontades para dizer o que é certo para tentar fazê-lo continuar no caminho que ele deseja, ainda assim é insuficiente, não o faz querer que eu fique ao seu lado desse modo. Essa é a distância ideal entre nós, ele não quer que me aproxime mais. Como sempre sou o amigo, o conselheiro, mas não o amor, não aquele escolhido. Sou uma lamparina que aponta o caminho a seguir, mas eu mesmo não posso acompanhá-lo. Não consigo imaginar outra prece que não seja "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Sl 21).

X

Eu vou dormir pra não ficar no meio de toda essa bagunça. A exterior e a interior. Da interior sempre costumo tecer longos rosários de lamentos, mas a exterior também me incomoda. Me incomoda como todos parecem acomodados, como a falta de harmonia, de ordem, de um mínimo que seja de beleza e organização não incomoda a ninguém, e todos vivem no completo caos, e acham isso normal. Não percebem que essa é uma forma diminuta do ser, que o homem enquanto imagem e semelhança de Deus, que é a ordem de todas as coisas, deve aspirar ordenar a própria via, mas eles se comprazem no chafurdar na lama. E tudo parece sempre sujo, sempra bagunçado, e para eles, está tudo bem. Por isso eu vou me apagar, por isso eu prefiro passar todo o tempo em que fico em casa, dormindo, porque sei que enquanto estiver aqui vai ser assim, e ninguém quer mudar, ou se me chamam pra igreja não percebem ainda a desordem que se encontra lá, e se digo isso, entendem tudo errado, como se estivesse falando desse ou daquele hábito em particular mas não, estou falando do todo, o todo desordenado, o todo que parece tender apenas ao caos, o todo que parece não enxergar mais nada de belo, de verdadeiramente belo e que não seja um arremedo mal feito influenciado pela estética pobre da teologia da libertação que faz com que toda a realidade dessas pessoas seja apenas uma imanentização da escatologia. E então, pela terceira vez, antes de apagar, digo "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Sl 21).

terça-feira, 5 de março de 2024

Um dia errado

E então tem toda essa ansiedade, todas essas coisas que desprezo, o tempo que não tenho, e tenho você, e nem sei que nome posso dar pro que nós temos, então posso chamar por você?

Não, isso está errado... As coisas não podem ser assim, eu não posso te chamar de "meu amor" quando, esse direito, na verdade pertence a outra, e você espera pra entregar a ela. O direito e a si mesmo. Talvez eu só devesse chamá-lo assim no meu coração. Mas como eu deveria te chamar então?

Suprimindo então esse "meu amor" eu continuo alguma piada boba, ou tento fazer você ficar mais à vontade comigo, tento fazer você se abrir. Sei que são dias difíceis para ti também... Guardo o meu amor, num lugar profundo, e continuo fingindo que aceitei a distância entre nós dois.

Talvez saia daqui e passe numa loja de decoração, mesmo sabendo que eu não deveria gastar mais, mas eu quero me sentir melhor, mesmo que seja só um pouco, mesmo que seja só um instante... Mesmo sabendo que isso é só uma distração pro fato de não saber o que fazer com esse sentimento, nem como devo te chamar...

Em dias assim tudo perde a cor, a graça, o sabor... Tudo fica meio assim, sei lá. E só consigo pensar em você. Mas não é como se você pudesse me salvar, ou pelo menos me amar. Se digo que estou com dor nos rins as pessoas se compadecem, me perguntam se estou bem, se preciso de algo... Mas se digo que estou depressivo, elas simplesmente agem como se eu tivesse inventado uma mentira absurda. Talvez acreditem quando disser a elas que tenho algo como câncer, e que recusei o tratamento para não prolongar a vida ao lado de pessoas como elas.

Mas até agora deixo a ira de lado e volto a pensar nele. Em como deveria chamá-lo.

Sem resposta para minha pergunta eu tomei metade da garrafa de vinho barato em dois goles, e fui dormir, incomodado com o calor e com o silêncio. Sempre podendo descer ainda mais fundo nos infernos.

Só queria não acordar amanhã, ou nem mesmo terminar esse dia. Mas o que há de errado com esse dia, esse dia maldito? Não é bem com o dia, a pergunta deve ser: o que há de errado com a minha vida?

Não vou pular de uma ponte, tampouco tentar me matar com remédios de novo, mas é provável que beba uma garrafa inteira de vinho e que dance um samba bravo na minha própria tumba. 

sábado, 2 de março de 2024

Do cansaço

Até pensei em perguntar algo a ele, mas sei que era efeito dos remédios que tomei para dormir, então é melhor deixar isso quieto. Não há razões para imaginar que a resposta, se é que ele fosse me dar alguma, seria diferente agora. Tenho tentado deixar de lado qualquer coisa que vá me fazer ficar cansado ou chateado, tenho deixado passar tudo, mas mesmo assim eu continuo cansado, parece que tudo o tempo todo tem me deixado exausto. 

E eu cruzo a cidade num ônibus cheio, tento me concentrar nas páginas de algum livro e não pensar muito em nada, e mesmo assim é como se o peso do mundo estivesse nas minhas costas.

Meu plano para ontem era chegar mais cedo, me deitar e dormir, nada muito complexo, mas ainda tive de lidar com ligações, reuniões de emergência e sair atrás de um remédio caseiro feito sabe Deus com que ervas na promessa de que melhore dores nos rins. Mas eu só queria dormir. E não entendem isso. E parece que eu tenho que resolver todos os problemas do mundo, e se reclamo são problemas pequenos, não são nada, eu que estou errado. Todos são tão fortes, todos eles...

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa

Até pensei em perguntar algo a ele, mas sei que era efeito os remédios que tomei para dormir, então é melhor deixar isso quieto. Ele sempre guarda as coisas para si mesmo, não gosta de se expor, e não sou para ele o repouso que ele é para mim. Já me acostumei, com os silêncios, as mudanças repentinas de assunto, ou assuntos que servem para me distrair dos meus sentimentos... Tudo me diz que o que sinto é algo fora da realidade e que deveria morrer em mim mesmo. 

sexta-feira, 1 de março de 2024

Prudência e Silêncio

"O amor é um sentimento autônomo, que a prudência pode ajudar a evitar, mas não saberia vencer." Choderlos de Laclos

Quero só ver, que é uma forma de dizer que eu preferia morrer a ter de ver realmente, quando todo esse cansaço resolver se manifestar. Noites sem dormir direito, energético, café, mudança nos móveis do trabalho... Já sinto algumas partes do corpo doerem mais do que deveriam, e me preocupo com o surto de dengue que assusta as autoridades, principalmente ao ver meus braços cheios de picadas. Mas então eu continuo chegando em casa tarde da noite, faço um macarrão instantâneo e vou dormir depois de várias horas ainda acordado. Vindo hoje cedo pro trabalho eu passei num mercado e comprei duas latas de energético, o que mostra que, no auge do meu Transtorno Bipolar, estou prestes a um colapso físico, mas ainda tenho missa esse fim de semana e, na terça, um evento que vai até mais tarde. 

Mas o que me impressiona nem é o quanto essa fase eufórica tem perdurado, não, mas é que, no meio de tudo isso, eu ainda consigo pensar nele, e ainda consigo, mesmo depois de outra forte resolução, ou talvez não tão forte assim, prometer a mim mesmo que não iria mais tratá-lo como namorado. Ato falho, não que seja preciso dizer de novo. Menos de uma semana depois de uma, outra, conversa decisiva em que me abriu aos olhos esclarecendo minhas confusões, eu estava enviando a ele fotos de casais dormindo abraçados, sem a necessidade de dizer que, mesmo com todo o turbilhão na minha cabeça, a imagem de nós dois juntos tem, em mim, esse efeito meio hipnótico mas, ao mesmo tempo, também terapêutico e, last not least, essa aparência de sonho acordado dirigido: um lugar calmo. Paz.

Pelo menos consigo brevemente voltar a sanidade do ceticismo romântico ao ver que, no meio de todo esse caos também, ele se importa mais com outras questões do que esses sentimentos bobos que me afetam tão profundamente. É interessante o quanto minha mente é turva diante desse assunto sendo que, essa imagem significa justamente uma clareza no turbilhão das ideias, ao mesmo tempo que é justamente um completo aviltamento do intelecto em detrimento do meu subjetivismo sentimental.

Um homem apaixonado é o pior inimigo de si mesmo. Talvez a melhor coisa que se possa aprender a se fazer quando se ama tão descontroladamente é ficar quieto e em silêncio. 

"Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentando pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade
O olhar estático da aurora."
(Vinícius de Moraes)