sábado, 23 de março de 2024

Aforismos sobre eu e os outros

"Sur le Pont de I'Europe" - Gustave Caillebotte

Ficaria grato se as pessoas aprendessem o seu lugar. Aprendessem que as coisas não funcionam como elas supõem com sua simples visão de mundo. E ainda sou obrigado a ouvir as piadas, como se a depressão fosse algo que eu escolhi ter, como pintar o cabelo. Me olham com a barba desgrenhada ou as unhas sem fazer, como era de costume, e dizem que estou relaxado, e aí eu lembro de ontem, quando olhava as fotos dos meninos bonitos na internet e pensava em me levantar, tomar um banho, fazer a barba e as unhas, uma limpeza de pele, e que eu nem mesmo conseguia me mexer, que eu simplesmente fiquei ali parado, por horas, olhando o céu, as madeiras das paredes, e nem sequer conseguia prestra atenção na música. Essas pessoas não imaginam como é. Nem mesmo sonham em como é limitante, como é sentir-se tão pesado que nada faz com que seu corpo reaja. Eu poderia ter morrido sentado ali, por horas, e acho que eu realmente queria ter morrido ali. 

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Você deve saber como é isso. Como é olhar-se no espelho e ver os olhos fundos, as noites de sono já não adiantam muita coisa. O brilho se esmaeceu e o sorriso, já não consegue mais se acender como antes. E então parece que os dias passam sob um véu, distantes, sem cor, e aí aprendemos que não adianta o esforço, que os outros vão continuar esperando que nossos olhos estejam sempre brilhantes, a pele linda, as unhas bem cuidadas, sem perceber que nesses dias fazemos um esforço enorme apenas pra sair da cama, e em alguns dias nem isso conseguimos. 

E os problemas se acumulam, e continuam esperando que demos conta de todos eles, e os dias passam, quentes e úmidos, e parece que ninguém nos vê, e talvez não vejam mesmo. E só continuem falando, e reclamando, e esperando de nós mais do que podemos dar, e mais do que eles mesmos poderiam. 

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Observo que todos experimentam certo nível de solidão, desde o homem que, todas as noites, se apaga de remédio porque não quer enfrentar a cama vazia ao seu lado, que se perde nas histórias e personagens porque não quer enfrentar a verdade de que não há histórias e nem personagens na sua própria vida. Também a criança deixada pelos pais, que só queria seu carinho e aprovação, que ainda hoje se esforça para ser o melhor em tudo que faz, que ainda espera um abraço ao voltar para casa, mas que se acostumou, acostumou a sentir-se inseguro e insuficiente. Estamos todos sozinhos, irremediavelmente sozinhos. 

Me disseram que, às vezes, a solidão é necessária. Imagino que deva ter nela algum aprendizado. É, deve ser assim. Mas ainda me sinto triste, e sozinho, e ainda olho ao meu redor pensando que todos parecem se encaixar, de algum modo, enquanto eu continuo desonfortável, onde quer que seja, sempre esperando ou procurando alguém... Por isso todas as noites são uma tortura, pois estendo os braços, olho ao redor, e não vejo ninguém. Ninguém. Qual a necessidade disso?

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Uma vez mais eu sou tomado daquele cansaço extremo, daquela angústia ansiosa, naquela fase em que a fadiga começa a cobrar de mim uma taxa mais alta do que consigo pagar. Ânimos exaltados também, e eu precisei me impor, coisa que só fiz com uma consequente ansiedade. Mas acho que já aguentei demais sem conseguir reagir. 

Reagir. 

É interessante usar essa palavra no atual contexto pois parece que tudo que faço é reagir ao meio, nunca agir realmente. Numa passividade mórbida, apática e vazia. Essa tem sido a minha existência. E só queria um abraço forte onde pudesse repousar. 

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O mais difícil em nossas relações com os outros é o que talvez pareça ser o mais simples: é reconhecer essa existência própria, que os faz semelhantes a nós e no entanto diferentes de nós, essa presença neles de uma individualidade única e insubstituível, de uma vocação que lhes pertence e que devemos ajudá-los a realizar, em vez de nos mostrarmos invejos ou de querermos infleti-la para conformá-la à nossa. (Louis Lavelle)

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