quarta-feira, 6 de março de 2024

Salmo 21

Mesmo com as chuvas intensas o calor não amenizou, eu ainda suava e minha pele estava oleosa e macilenta, e a cidade inteira debaixo d'água. Em certo ponto da noite, enquanto ignorava mensagens de pessoas preocupadas comigo, ecoava na minha alma as palavras do velho profeta "Ouve-se por toda terra uma voz, lamentos e soluços amargos, é Raquel a chorar por seus filhos. Já não quer ser consolada, pois eles não mais existem" (Jr 31, 15). A chuva caía com força, as portas estavam abertas e eu podia ouvir tudo, e imaginando que, quando o sol voltasse, reabriria claro e forte, triunfal como rei que regressa da batalha. Pensei, por um brevíssimo instante, que eu também poderia voltar, deixar que toda aquela água levasse consigo as minhas dores e essas lamentações. Mas foi um pensamento breve, e acho que fui todo seguindo aquela enchente, sem rumo, apenas destruindo tudo por onde quer que passasse. Era noite violenta, e meu coração também estava inquieto, e ainda agora não sei se aquietou ou se já se encontra ao fim do luto, do luto esperado, do golpe derradeiro de que falei dias atrás, do golpe que me permitiria partir, seja para os braços da irmã morte ou para o despertar de uma nova vida. Muitas coisas passaram pela minha cabeça, é verdade, mas em nenhum momento houve um lampejo de disposição, seja para tomar algo além da garrafa de espumante caro que ganhei de presente, e nenhum sinal daquela energia que vinha tendo nas últimas semanas. Fui deixado só, na companhia da chuva que caia forte e que, pelo tempo, já deveria ter alagado boa parte da cidade, e só conseguia pensar em como estava absolutamente sozinho. Ele até tentou dizer que estava comigo, mas não é verdade, estamos distantes, em todos os sentidos possíveis. Não só ele de mim, mas eu estou distante de tudo o mais, senão que me sinto um intruso até mesmo nessa chuva. Não foi com essas palavras, mas eu também, naquele momento, só conseguia pensar "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Sl 21).

X

E mesmo assim não é suficiente. Que eu o entenda, ou que me esforce para ajudá-lo, ainda que lute bravamente contra minhas próprias vontades para dizer o que é certo para tentar fazê-lo continuar no caminho que ele deseja, ainda assim é insuficiente, não o faz querer que eu fique ao seu lado desse modo. Essa é a distância ideal entre nós, ele não quer que me aproxime mais. Como sempre sou o amigo, o conselheiro, mas não o amor, não aquele escolhido. Sou uma lamparina que aponta o caminho a seguir, mas eu mesmo não posso acompanhá-lo. Não consigo imaginar outra prece que não seja "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Sl 21).

X

Eu vou dormir pra não ficar no meio de toda essa bagunça. A exterior e a interior. Da interior sempre costumo tecer longos rosários de lamentos, mas a exterior também me incomoda. Me incomoda como todos parecem acomodados, como a falta de harmonia, de ordem, de um mínimo que seja de beleza e organização não incomoda a ninguém, e todos vivem no completo caos, e acham isso normal. Não percebem que essa é uma forma diminuta do ser, que o homem enquanto imagem e semelhança de Deus, que é a ordem de todas as coisas, deve aspirar ordenar a própria via, mas eles se comprazem no chafurdar na lama. E tudo parece sempre sujo, sempra bagunçado, e para eles, está tudo bem. Por isso eu vou me apagar, por isso eu prefiro passar todo o tempo em que fico em casa, dormindo, porque sei que enquanto estiver aqui vai ser assim, e ninguém quer mudar, ou se me chamam pra igreja não percebem ainda a desordem que se encontra lá, e se digo isso, entendem tudo errado, como se estivesse falando desse ou daquele hábito em particular mas não, estou falando do todo, o todo desordenado, o todo que parece tender apenas ao caos, o todo que parece não enxergar mais nada de belo, de verdadeiramente belo e que não seja um arremedo mal feito influenciado pela estética pobre da teologia da libertação que faz com que toda a realidade dessas pessoas seja apenas uma imanentização da escatologia. E então, pela terceira vez, antes de apagar, digo "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Sl 21).

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