terça-feira, 12 de março de 2024

Em busca de redenção

Arcos de redenção são complexos de serem construídos, por isso são tão bons. O homem percebe, com certa demora, que as consequências negativas das escolhas erradas são, na maior parte das vezes, irreversíveis do ponto de vista humano. Por isso o cristianismo se destaca como uma novidade tão escandalosa: a condição do homem desde o pecado original é a de se ver prisioneiro de suas ações destrutivas e, no plano da vida corporal, da sociedade, não há perdão e nem misericórida. Mas ao se deparar com um perdão no plano da eternidade, o homem se vê então na possibilidade de mudar o seu destino eterno, infinitamente maior que as consequências temporais de seus crimes.

Enquanto acompanhava o passado de Tee, interpretado pelo ainda novato JJ Patiphan Fueangfunuwat em Dead Friend Forever, eu percebi essa diferença essencial na relação do homem com a culpa que o persegue. 

Não preciso ir longe ao dizer que, no tribunal dos homens, não há perdão. Seja do ponto de vista social, onde na era das redes sociais o linchamento se tornou norma até nos casos mais idiotas e todos agem inescrupulosamente como júri, juízes e executores de crimes que muitas vezes sequer temos o detalhes, ou ainda de quando realmente há uma culpa real e, independente do grau, o homem sempre é obrigado a lidar com as consequências. Por mais que os escândalos políticos ou de ordem sexual de celebridades e outras pessoas consideradas importantes pela massa muitas vezes saiam como impunes, elas enfrentam sim, o que acontece é que nem sempre a consequência é tão chamativa aos outros quantos seus crimes, pois podem se passar em lugares muito mais profundos e, por vezes, inacessíveis aos estranhos. 

Mas, basta observar como muitos dos grandes, ricos e poderosos, que parecem viver sem nenhuma, culpa ou consequência, na realidade terminam tristes, abandonados e definhando como se a força de suas vidas fossem tiradas em pagamento de seus pecados. Os homens enfrentam um decaimento brutal e do qual não se pode fugir e nem mesmo adiar, 

E o homem sempre esteve consciente da culpa temporal que sempre vem lhe cobrar o que é seu por direito. Desde as penas mito-poéticas de Tântalo ou Sísifo, a condenação pelos erros sempre foi o normal, o código de Haburabi, as antigas práticas tribais, mesmo em caso de heróis que recebiam os louros pelas vitórias, seus fins também eram no calor da batalha e da guerra. E ninguém ousava questionar os deuses. 

Mas, ao cristão, é oferecido não apenas um sacrifício pelo peso de seus pecados, mas um perdão que, passando por cima de suas penas temporais, lhe concede uma recompensa eterna, atemporal. O homem paga aqui, ou na montanha do Purgatório, pelos seus crimes, mas a sua alma pode repousar na eternidade: e isso é uma novidade sem igual! 

A morte é então, não uma condenação, mas um prêmio oferecido de bom grado aos homens arrependidos. Por isso é que a redenção é vista com desconfiança pelos homens, foi assim no tempo de Cristo e o é ainda hoje. Como pode um criminoso, crucificado publicamente, ser perdoado e ainda no mesmo dia encontrar seu Senhor no Paraíso, antes daqueles que julgavam ser mais merecedores do que ele? Discussão mais longa do que eu planejo ter aqui, mas a sua crucificação foi já pena de seus pecados e o perdão recebido, em verdade, lhe deu um prêmio eterno que não poderia ser visto por esses mesmos homens que deverias, eles mesmos, enfrentar cada um juízo particular onde se apresentará sem nenhuma máscara diante de Deus, como São Dimas o fez ali mesmo ao lado do Cristo. 

As pessoas vão seguir desconfiando dos arcos de redenção. O passado problemático dos homens, as suas dores, não são justificativas para suas escolhas erradas, mas até pelos crimes mais brutais há uma pena temporal a ser paga, seja na solidão da vida humana ou nas dores centenárias do Purgatório, mas a todos é oferecido o perdão em troca de arrependimento verdadeiro. É simples e vai continuar sendo causa de desconfiança, mas o perdão é, por definição, divino demais para ser entendido pelos homens. A nós é oferecido recebê-lo e entendê-lo, apenas na eternidade.

O Tee de JJ Patiphan fez coisas terríveis. Tratou o pobre Non como lixo. O enganou, sabendo de sua frágil condição, onde só queria ser aceito como parte do grupo, para fazê-lo entrar num esquema complexo de tráfico muito maior do que ele jamais viria a entender. O garoto foi usado não apenas para fazer um trabalho de colégio, mas se tornou parte de um esquema criminoso e, ao se ver abandonado pela família, foi capturado, torturado até encontrar seu fim num covil imundo, descartado como um animal morto, o qual perdendo sua utilidade de divertir o dono, é enterrado no fundo do quintal e logo esquecido. 

Em dado momento Tee percebe as graves, e irreversíveis consequências de suas ações. Ele se lamenta por ter entrado nesse mundo, a doença mental que reduziu seu pai a um demente, e até tenta ajudar o pobre que ele mesmo condenou. Mas era tarde, tarde demais, e agora, não havia nem mesmo uma consequência violenta a enfrentar, sua condenação, embora tão brutal quanto, seria a condenação a solidão e a observar, dia após dia, a sua miséria. 

No entanto, ao encontrar White (Fuaiz Thanawat), é lhe apresentado uma chance, uma pequena chance, uma centelha de perdão, de recomeçar. É lhe apresentada então, na figura daquele garoto fofo e que vinha todos os dias para vê-lo, a possibilidade de algo que ele, embora perseguisse, desconhecia: redenção. 

Tudo o que passa
É mera aparência;
O inalcançável
Aqui se alcança;
O indescritível
Aqui se completa;
O eterno feminino
Enfim nos enleva.
Eterno! Eterno!
Tudo o que passa
É mera aparência;
O eterno feminino
Enfim nos enleva!

(Palavras finais do Fausto de Goethe na 8° Sinfonia de Gustav Mahler)

A busca pela redenção, no entanto, é complexa demais para terminar simples assim. E o fim enlouquecido do Tee que havia matado com suas mãos o homens que lhe oferecera a redenção, foi o preço alto a se pagar pelas dores que causou ao destruir uma família inteira.

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