segunda-feira, 25 de março de 2024

O que atrai meu coração

Claude Monet (Le Liseur), 1872 -  Pierre-Auguste Renoir

"Sou o homem indicado para uma tarefa à qual talvez me atraiam os impulsos de meu coração mais do que qualquer afinidade justificadora." (Thomas Mann)

Em alguns dias eu mesmo me pergunto o que atrai meu coração. Pareço ter certa propensão, eufemística, para o sofrimento. Sou algum tipo de alvo, como se descontar em mim ansiedades fosse algo comumente prazeroso. Ao mesmo tempo que sou, como já o disse tantas vezes, aquele que faz o que ama e que por isso acham que eu sou capaz de fazer tudo, não poderiam estar mais enganados. Eles assim acabam por engessar qualquer vestígio de capacidade que poderia haver. É uma completa falta de perspectiva. Ou talvez eu já não tenha perspectiva de mais nada... Me enfureço, me entristeço, me encho de preguiça, me vem uma vontade pular de uma ponte, de abraçar e ser abraçado, de ficar em silêncio, de pedir demissão, de dizer umas verdades, de simplesmente desaparecer. E eu quero tudo e nada disso ao mesmo tempo, mas apenas uma coisa permanece imutável em meio a toda a tempestade de sentimentos, é o amor por ele, é a única coisa que se mantém firme. Em qualquer um desses momentos, se fecho os olhos, eu consigo ver claramente a sua imagem diante de mim. E esse fato diz mais sobre mim do que qualquer palavra que eu possa escrever.

X

Foi uma cena patética, e tenho certeza que teriam rido de mim, se alguém tivesse me visto. Achava que sairíamos para beber, nuam sexta de folga inesperada mas, quando olhei ao redor, estava sozinho, esquecido por todos assim que viraram as costas para mim. Voltei pra casa no ônibus meio vazio sem que ninguém notasse. Assim como esvaziei uma garrafa inteira sem que ninguém notasse, assim como chamei aquele garotinho pra conversar porque me sentia sozinho e porque o outro, o que eu amo, não consegue entender uma só palavra do que digo, então se for pra ser incompreendido, que eu ao menos possa dizer qualquer coisa. 

Estou ouvindo músicas num idioma que não conheço, mas reconheço bem que algumas falam de sexo e outras só dos sentimentos, e todas de algum modo falam de alguém, companhia parece ser o tema comum a todas elas, e todos seus autores, poetas e amantes. 

Misturei leite condensado no vinho, porque queria algo doce, mas queria mesmo aquilo que escorre, ou jorra, do membro dele, e não me envergonho de dizer isso, nem por estar bêbado ou tão brutalmente cansado que já não dou a mínima pra mais nada. Ele também está tão cansado que não entende o que eu digo, e talvez só ouvisse a putaria se eu dissesse, por isso mudei de assunto, por isso abri outra garrafa, por isso estou bebendo sozinho, pensando em como seria ter ele dentro de mim, numa proximidade completamente oposta a nossa distância. Mas ter seu pau parece tão impossível quanto seu coração.

X

Acordei por apenas uma hora nessa manhã, e já tomei remédios para voltar a dormir, e voltar a acordar somente à noite, quando tenho ainda mais um ensaio para a semana santa. Preciso apagar, descansar nem que seja à força, porque meu corpo está cada vez mais próximo do limite, e ontem, enquanto bebia sozinho, numa solidão mais dolorida que as tantas outras que já vivi, percebi que meu coração também está próximo do limite.

Me recordo dessa solidão, ainda com dor ao peito, sei bem que não sou companhia desejável a ninguém. Não encontrei quem pudesse me consolar, e agora já não quero mais, pois não existo mais, como os filhos de Raquel a gemer e chorar.

"Assim como, à sua vista, muitos ficaram embaraçados, tão desfigurado estava que havia perdido a aparência humana." (Is 52, 14)

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