sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Peito florido

Queria você aqui comigo, ao menos me fazendo companhia, ao menos me deixando encostar a cabeça no seu peito. Queria ficar deitado com você, ouvindo alguma coisa, um álbum romântico talvez, você sabe que eu sou um bobo apaixonado. 

Chocolate quente, bateu uma brisa um pouco mais fria no últimos dias, aproveitamos pra ficar juntos no sofá enrolados no cobertor. Imagina nós dois numa cabana no alto de uma colina, com aquelas janelas de vidro, o céu estrelado, as coníferas salpicadas de neve. Eu queria ver algo assim, longe dessas paredes que sufocam, dos muros que aprisionam, da miséria humana que me cerca como lama, me puxando cada vez mais para baixo, enquanto tento alcançar a sua mão...

Sabe, é que de repente eu me senti assim, subitamente necessitado de ti, meu coração palpita, ignorando tudo o mais, fugindo do mundo em direção aquela realidade onde só há nós dois, mesmo sabendo que, na verdade, nela habito sozinho. 

Não há ninguém deitado comigo, em meu peito florido que inteiro para você eu guardo a brisa faz as pétalas voarem para o céu distante, mesclando suas pequeninas formas com os pingos de luz salpicados pela gigantesca tapeçaria que se abre acima de mim. Sinto a brisa fria dos cedros ao meu redor e, mesmo sendo reconfortante saber que não há mais ninguém aqui para me machucar, também é assustador perceber que não há ninguém aqui para me amar. Como pode, o objeto do pensamento que me faz sonhar ser o mesmo que me faz chorar?

Dramático não? É bem patético, e nem precisa pensar muito pra sentir o quanto isso é ridículo, mas infelizmente não avisaram isso e, quando dei por mim, já me sentia assim, fugindo para um mundo só meu, prestes a entrar em colapso uma vez mais, onde não há possibilidade de resgate, onde a brisa se transforma na massa de ar quente que destrói tudo por onde passa. 

Esse mundo de fantasia, onde os casais ficam felizes, do outro lado do mundo, é mais bonito e mais agradável do que as paredes descascadas do meu quarto, do que a cerâmica encardida da casa ou das portas batidas com força. Na verdade qualquer lugar é melhor do que aqui. 

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

O que eu disse ao sol sobre você

Parte I

O passado costumeiramente gosta de maltratar, gostar de jogar algumas coisas na nossa cara. E tem de sutilezas que sequer percebemos, até grandes atos heroicos avassaladores. Ele pode colocar frente a frente inimigos, antigos amigos, que se afastaram devido a suas incertezas, devido as suas diferenças, devido aos seu sonhos que colidiam. E então cada um seguiu seu caminho. Os que juraram ser amigos para sempre não se olham mais, ignoram-se mutuamente. 

Mas, não é possível que algo assim morra e permaneça assim. Como o sol nasce novamente mesmo depois de um rigoroso inverno a amizade, o amor, pode novamente aquecer os corações que se fecharam para o frio da inimizade. 

A confusão que isso gera é como uma tempestade no mar, agitando com violência as águas brilhantes e calmas do oceano. É repleta de raios, trovões, e até mesmo destrói. Mas após isso, o sol se abre novamente, por entre as nuvens, delicado e tímido, até que uma vez mais as praias sejam banhadas por seus raios dourados, até que seu calor dissipe todo frio, todo rancor, deixando apenas na pele o toque delicado de um amigo que voltou a ser isso mesmo: um amigo. 

Parte II

A aproximação é algo lento mas, quando dois estão destinados a ficarem juntos, a se reencontrarem, as coisas aos poucos vão encontrando seu rumo, tudo parece lentamente se ajeitar. Tudo parece ficar bem. Encontra-se no outro o consolo nas dificuldades, um parceiro de estudos ou companhia nos passeios da noite. 

Mas algo nasce, algo desperta, um clique faz abrir uma caixa que há muito parecia ter sido lacrada no fundo do coração. E de repente o que há lá dentro começa a vir para fora, silenciosamente, como a névoa matutina, a circundar o mundo antes do sol lhe dissipar. É algo bom, mas que costuma confundir aqueles que não o conhecem. 

Não sei o que sinto, mas sei que sinto. Não sei dizer o que quero, prefiro ficar em silêncio e ignorar, mas isso é só porque ainda não sei o que dizer, pois para isso precisaria entender o que sinto. Mas, como disse, no fim as coisas se acertam, de um jeito ou de outro, quer entendamos ou não, e algo simples, pode fazer estalar novamente aquela percepção que estava lá, guardada no fundo do nosso coração, esperado para ser despertada.

Parte III

Um sentimento novo, que há muito estava adormecido, desperta lentamente, mudando o rumo de todos ao seu redor. O que antes era banal passou a ter uma importância gigantesca. O calor do sol é sentido agora com mais intensidade, notamos o quanto o seu toque em nossa pele é importante. Os sentidos estão aguçados, cada vez mais presentes. Cada toque, cada olhar, cada cheiro, tudo isso tem uma força sugestiva gigantesca, da qual não se pode fugir, nem mesmo quando se corre para longe. O contato entre dois corações que se amam, o contanto entre dois que se desejam, é avassalador demais para ser esquecido, é poderoso demais. 

Seja brincando nas areias de uma das praias de Phuket ou correndo para observar o pôr do sol, seja numa madrugada desperta depois de sonhos incertos, seja numa rede que se balança pela brisa de um novo amor, em tudo isso está as pequenas descobertas do que é o amor, desse amor que está no perfume de coco, no encostar dos dedos, do simples olhar silencioso, da companhia muda repleta de significados. Aos poucos é possível começar a entender. Eu não sei, mas que quero ficar perto de você e não quero que fique com mais ninguém. E isso assusta, pensar demais assusta, o novo assusta! Mas nem o medo consegue pôr fim a isso, senão que apenas o atrasa, não podendo apagá-lo completamente, ainda que se vá para longe do outro o sentimento o acompanha, seja no quarto do outro andar ou do outro lado do mundo.

Parte IV

Aquele sentimento, que apareceu quando menos esperava, de repente tomou proporções oceânicas. Já não cabe mais no peito e, tampouco podendo ser dito em voz alta, transborda em suspiros e lágrimas. E ele cresce, cada vez mais, mostrando que suas raízes estão fincadas mais profundas no coração do que se poderia imaginar. O medo também aumenta, mas a necessidade do outro é mais forte. Como conciliar o medo de si e do seus próprios desejos e a vontade de estar ao lado de quem se ama, mesmo que ainda não se saiba como se dará esse amor?

O que antes fazia feliz agora não faz mais. O que antes chamava atenção agora não é mais do que as cores que passam nas fachadas das ruas. O que prende a atenção do coração é o objeto amado, é aquele oceano que, sendo majestoso por si só, atrai todos os olhares, abafando com o som de suas ondas todo e qualquer barulho que possa interromper o seu reinado.

Mas esse oceano nem sempre fica calmo, senão que não se intimida em demonstrar a força de sua vontade. Atraindo para seu interior ele mostra, em um espelho de águas cristalinas, a verdade que há muito fingia-se não ver. E ali, no interior daquelas águas, com as bolhas de ar como testemunhas eles se entregam ao primeiro beijo, após as carícias, um beijo onde revelam a extensão do sentimento que vinha correndo entre eles como uma poderosa corrente elétrica, e que explodiu como uma onda na costa. 

O coração e o corpo agora experimentam um mundo novo. O toque dos lábios e das mãos deslizando nos corpos molhados. O bater pulsante e a respiração rápida em trazer à tona a confusão que, já prefigurada agora se manifesta em toda sua potência. É a hora da fuga, do correr para longe para não enfrentar a verdade, do negar-se a si mesmo, e do transbordar em lágrimas por querer, e por querer não querer. 

A confusão, por maior que seja, não supera o amor. Já não se sabe se amor é a palavra que conseguimos dizer ou o que sentimos com tanta intensidade que sequer conseguimos dizer. A confusão, por maior que seja, não supera o amor. E até onde se pode ir para fazer feliz aquele que se ama? O que podemos sacrificar em nome da felicidade do outro, em nome do sonho do outro? E aquele que recebe pode se apossar assim do sonho sacrificado? O amor é doação, mas nem sempre fica claro o que precisamos entregar ao outro. O amor é doação, mas de que adianta dar o mundo e perder aquele que se ama? De que adianta sacrificar-se se, no final, a infelicidade virá com a distância entre eles? 

Parte V

As nossas ações, todas e cada uma delas, têm um peso e uma consequência. E precisamos enfrentar, que oportunidades podem ser perdidas por causa do nosso medo, por causa da dificuldade em aceitar quem somos? Mas, afinal, quem somos?

Podemos nos preocupar muito com esse ou aquele aspecto do nosso ser. A entrada na universidade, a resposta a cada uma das perguntas do teste ou as respostas para as perguntas que nosso próprio coração exige resposta... Nos preocupamos em fazer os outros felizes, em não decepcionar e em não sair daquela linha que nos ensinaram desde pequeninos que deveríamos seguir, mas a questão é: não temos o direito de seguir nosso próprio caminho? Mas se nem mesmo nós aceitamos que queremos, como poderemos ser felizes? 

A felicidade também é uma questão, tão intimamente ligada ao amor que ouso dizer que são irmãos inseparáveis, de algum modo. O amor está em querer a felicidade  do amado, e essa é a forma mais bela, plena e pura de amor. É amor em seu sentido mais estrito e mais perfeito. O amor que se derrama em lágrimas pela dor que há em nós, mas que sabe que a felicidade do outro é, para quem ama, a nossa própria felicidade. Aceitar isso é de uma maturidade incrível, característica das pessoas de alma mais grandiosas que já andaram pelo mundo, e que normalmente ensinam aos outros o que é o amor, o amor ao outro, já dito, e o amor próprio, aquele que se aceita e que tem desejo de tornar-se cada vez mais si mesmo. 

E voltamos a quem somos. Somos um eu, um todo substancial, maior do que a soma de todas as pequenas partes que nos compõem, um todo tão grande quanto o pôr do sol que consegue passar pela grossa parede de nuvens e pintar o mundo todo com seu laranja, dissipando o cinza da dúvida, do medo, da insegurança, e trazendo à vida o que antes parecia tão triste. É da ponta de um cabo que o pôr do sol pode ser visto em sua totalidade, aos poucos sumindo no horizonte, pintando de rosa e laranja o céu azul do entardecer, o entardecer da vida, o amadurecer, o crescer, o ser. O ser que você me ensinou a ser. E é isso, com lágrimas nos olhos transbordando de ser, que eu disse ao sol sobre você!

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Resenha - My Gear And Your Gown

Atenção: pode conter SPOILERS, prossiga por conta e risco. 

Por "consequência do destino", duas pessoas com uma antiga promessa acabam se encontrando de novo... Essa é a história de amor entre um jovem talentoso estudante e um atleta que precisa aprender a estudar para realizar o sonho da mãe de ver o filho na faculdade de engenharia. 

Desde quando My Gear And Your Gown (GMM TV / WE TV) foi anunciada os fãs já ficaram animados por causa da presença finalmente desenvolvida do Fiat num BL. Eu já fiquei animado pelo Marc, desde que conheci o ator em Blacklist

Conta a história de Pai e Itt que, depois de vários encontros do acaso, acabam tendo de estudar juntos pra resolver um problema entre seus clubes no colégio. Também temos seus amigos, Waan, o parceiro de Pai no clube do Bispo, e Pure, do clube dos Guerreiros. Depois somos apresentados a Folk, que logo se interessa por Pai ao entrar na faculdade. 

Essa é mais uma proposta levinha da GMM TV, sob a direção de New Siwaj (Love By Chance, Until We Meet Again) baseado numa novel bem longa, com mais de cem capítulos. Embora a história trate de alguns assuntos delicados, como a pressão dos pais em cima dos filhos e doenças sexualmente transmissíveis, de uma forma bem delicada, como já é próprio da produtora. Infelizmente que lê uma novel desse tamanho pode até esperar que o casal demore a se resolver, afinal se tem tanto capítulo é porque tem trama pra ser explorada, mas isso numa série é diferente, quando se tem apenas treze episódios de pouco mais de quarenta minutos cada, a história precisa ser contada de jeito a prender a audiência. 

O desenvolvendo do casal principal é bem lento. Embora fique claro desde o primeiro episódio o interesse de ambos, demora muito pra eles começarem a interagir de verdade e, quando isso finalmente acontece, eles entram num jogo de gato e rato interminável. O casal secundário PureFolk se desenvolve bem mais rápido e, pelo menos aqui no Brasil, pegou bem mais o coração da galera. 

Pai (Win Pawin, de The Stranded) é novato na escola, mas é bem atrapalhado e por isso acaba sendo salvo várias vezes por um herói desconhecido. Como em ambas as vezes os óculos dele caíram, ele demora a descobrir quem o salvou. Ele é filho de dois médicos bem sucedidos, donos de um grande hospital e, por isso, desde cedo sofre a pressão dos pais para ser um médico e herdar os negócios da família. Como presidente do clube do Bispo (uma espécie de clube de jogos) ele precisa ajudar a melhorar as notas do presidente do clube dos guerreiros (atletas) para assim ela ajudar o clube dele a ficar com a sala, já que a escola passa por um corte de orçamento.

Itt (Marc Pahun, de Blacklist) é um atleta, famoso na escola, e um pouco nervosinho. Embora ele tenha essa pose de fortão perto dos amigos ele esconde que na verdade é um garoto sensível, que cuida da mãe, internada com câncer em estágio terminal no hospital dos pais de Pai. Sua mãe tem o sonho de que ele entre na faculdade de engenharia, ao que ele se empenha bastante, mesmo não levando o menor jeito pra isso. Precisa começar a estudar com Pai, sem saber do acordo entre este e a professora para negociar a sala do clube do Bispo. 

Eles então constroem uma forte amizade e fazem uma promessa um ao outro, com Pai se comprometendo a levar Itt até a faculdade, e este adotando como objetivo secreto conseguir melhorar o bastante pra seguir o outro aonde quer que ele vá. Itt ajuda Pai a ser mais corajoso e, como símbolo, o futuro estudante de medicina começa a usar um brinco de jaleco, sinal da influência do outro na sua vida. Quando Itt acha o seu brinco, depois de descobrir sobre o acordo de Pai e a professora, o brinco se torna uma forma dele conseguir convencer Pai a fazer o que ele quer, como entrar na competição de calouros contra sua vontade, já que ele fará qualquer coisa para conseguir seu brinco de volta.

Enquanto isso nós temos o novo amigo autodeclarado de Pai, Waan (JJ CHayakorn, He's Coming To Me e 2gether) que acaba se aproximando do melhor amigo de Itt, Pure (Fiat Pattadon, The GiftedA Gift to the People You Hate) que é um grande pegador no colégio, sendo abertamente bissexual, iludindo meninos e meninas. Eu sei que você shippou os dois, porque eu também fiz isso, mas o par romântico de Pure só aparece na segunda parte, com Folk (Aun Napat) que se apaixona por Pai nos primeiros dias da universidade mas não é correpondido, já que ele ainda gosta do antigo amigo. Waan se apaixona por Beau (Neen Suwanamas, SOTUSUgly Duckling Series: Pity Girl) uma garota da faculdade, responsável por recepcionar os calouros. 

Eu gosto da perspectiva do New como diretor, que se dividiu entre as gravações dessa série e de A Chance To Love, inclusive tendo algumas locações em comum (a casa de Pai e Tin, por exemplo). O problema foi que ele obviamente estava se sobrecarregando, com alguns errinhos de continuidade bem perceptíveis, nada que realmente me incomodasse. A atuação dos meninos não é ruim mas também nada muito primoroso. Destaque pras cenas dramáticas envolvendo Itt e a mãe. A trilha sonora me chamou atenção pela música do Getsunova, Stay, que marcou a primeira parte da série. Ganhou muitos pontos comigo, já que é uma das minhas bandas favoritas.

O problema maior para mim foi a enrolação de desenvolvimento do casal protagonista. O beijo demorou doze episódios pra sair e eles só ficaram juntos de verdade no último. A incessante disputa entre os dois pelo tal do brinco, que ficou sendo trocado a série toda, também foi meio chatinha, embora eu reconheça que o símbolo tem um significado muito bonito. Quando eles se entendem Itt passa a usar o brinco de Pai, com o jaleco, enquanto este passa a usar o brinco de engrenagem daquele. Isso tornou o clima bem arrastado, embora ainda fosse possível notar o sentimento de ambos.

Itt tem um jeito muito estranho de demonstrar a preocupação com Pai, obrigando o garoto a falar em público pra superar a timidez ou tendo a brilhante ideia de arremessar uma bola de basquete (foto) nele sabe-se lá por qual razão. Pai, por outro lado, não consegue se impor e acaba sendo um protagonista sem presença quase o tempo todo. 

O desenvolvimento de PureFolk já é bem mais rápido. Folk fica chateado depois de ter seu pedido de namoro negado por Pai e encontra consolo nos braços do baixinho. Os dois se tornam então amigos com benefícios, por um tempo até perceberem que havia também um sentimento crescendo entre eles. Acabou que os dois viraram um casal mega fofo, com Folk aos poucos conquistando a fidelidade, e o juízo, de Pure.

Enfim, apesar da enrolação, a série é divertida, quase sempre bem gostosinha de se ver, e é um típico romance adolescente, com dramas adolescentes. Não é ruim mas infelizmente não ficou entre as melhores do ano, num ano em que tivemos tantas grandes produções, como I Told Sunset About You,  as coreanas Mr Heart e Wher Your Eyes Linger e as filipinas Hello Stranger e Gaya Sa Pelikula, contrariando as minhas expectativas, que eram bem altas. 

Nota: 7/10

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Aforismos e Tensão

Há uma tensão, entre a companhia e a solidão, entre o contato com o outro, seu coração, e o silêncio muitas vezes sepulcral de um sentimento diapasão. E aquela tensão, essa que a carne faz arder e que ao tutano derreter, que é como o osso da espada, deseja sem saber o que realmente se quer, deseja contradizendo a própria artéria que pulsa, deseja desejando não desejar, aorta. 

É aquela tensão, mais uma vez, que faz sentir uma solidão em meio a multidão e o som de gritos e gemidos da mesma multidão, no quarto repleto da mais completa solidão. A solidão é interna, a multidão externa, mas as coisas também se invertem, e escuto as vozes de dezenas ao meu redor, mesmo quando fujo de todos aqueles quanto me cercam. 

E então eu desejo voltar, voltar aquela turba borbulhante, sentir o calor das mãos, o hálito doce e o cheiro forte do perfume de algum amante. E é por isso que quando ele chega, me agarro ao seu braço, deito sobre seu peito, seguro firme a sua mão, é como meu porto seguro, uma rocha firme, peito tenro, quando no barulho uma vez mais me vem a solidão. 

Para mim ele representa isso, ou ao menos eu queria que fosse assim, que ele abrisse o coração a mim, como abre os abraços ao me ver, como aquele peito aberto onde me deito, feliz, abandonado, entre os amplexos do meu amado. Mas agora padeço de apego a esse sofrer, infeliz, abandonado, sob a sombra do morrer, morrer sem ser amado. 

X

Ele nunca me deixou segurar a sua mão. E eu sabia que era porque ele não me amava, sabia que nossa relação devia manter certa distância, embora nossos corações estivessem ao mesmo tempo tão distantes e tão próximos. Você, por outro lado, sempre esteve ao meu lado e eu sempre segurei sua mão, mas isso só até o dia que alguém tomar o meu lugar. Isso porque aqui, ao seu lado, não é meu lugar.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Resenha - I Told Sunset About You

Atenção: contém spoilers, prossiga por conta e risco! :) 

Quando Billkin e PP apareceram em My Ambulance, discutindo e trocando agulhadas, os fãs não esperaram por mais do que um episódio para perceber que havia ali mais do que implicância, mas que era o comecinho de algo um pouco maior, que não chegou a ser porque a série decidiu que o fim dos personagens não seria ao lado um do outro, o que foi bem triste. Mas a alegria foi imensa quando a Nadao Bangkok confirmou que, para felicidade geral da nação, os dois ganhariam um BL só deles. 

A promessa ficou logo carregada de expectativas. Não é querendo desmerecer não, mas as produções da Nadao são, ainda que focadas no público jovem, bem mais sérias, lidando com sentimentos e situações com uma complexidade bem diferente daquela que estamos acostumados nas séries da GMM TV. Mas qual a razão de comparar as duas? Bom, além de que ambas fazem parte do Conglomerado GMM Grammy, o maior da indústria do entretenimento tailandesa, a GMM TV gosta muito de explorar o fanservice dos BLs, mas sem explorar tanto assim o mundo gay propriamente dito. Como assim? Embora séries como SOTUS e Theory Of Love tragam personagens e situações de uma complexidade emocional grande, no geral, o tom geral das produções ainda é mais leve, ao que a proposta da Nadao veio para oferecer um bom contraste com as da colega. 

I Told Sunset About You é um drama, daqueles, e já foi anunciada assim desde o primeiro dia, e cumpriu a promessa até o último segundo, só deixando subir as letrinhas dos créditos depois de extrair a última gota refinada de lágrima dos fãs. Não há razão para enrolar com o veredito: é de longe A MELHOR produção do ano, talvez de toda a indústria BL Thai. 

Antes de explicar o veredito vamos ao plot não é? Okay. A história se passa no litoral tailandês e conta sobre a amizade, a vida e as descobertas de Teh e Oh-aew. Os dois eram melhores amigos na infância mas uma briga acabou por afastá-los, deixando cicatrizes profundas. Anos mais tarde eles se reencontram, como rivais, competindo pela mesma vaga no curso de artes cênicas na universidade. Depois disso, algo mais forte do que os dois, faz com que eles se reaproximem, revivendo a amizade e algo ainda maior entre ambos, que precisam lidar com as dificuldades da vida de estudantes, em perspectiva do futuro, e da vida amorosa, em perspectiva de suas próprias identidades. 

Pois bem, pra começo de conversa a construção da história, desde os primeiros minutos, já foi simplesmente impecável. Nós somos apresentados a dois personagens com muitas questões, com sonhos, desejos e uma juventude que grita pela descoberta do eu. Cada episódio mostra um crescimento enorme de ambos que, pouco a pouco, vão descobrindo como é viver a própria vida. 

Oh-aew (PP Krit) é um garoto que sempre desiste de tudo, enjoa fácil das coisas, mas ao ser escolhido como protagonista na peça da escola ele percebe que gostou daquilo, de verdade, e que finalmente achou algo do qual não vai desistir. Mais tarde, já decidido, percebe que gosta do melhor amigo e, com muito mais intensidade, que é apaixonado pelo antigo melhor amigo, que voltou para sua vida revirando tudo de cabeça para baixo.

Teh (Billkin) é um moleque que sonha em ser um grande ator, ele conhece de cor todas as falas da sua novela favorita e, quando se dedica a fazer alguma coisa, é sempre o melhor no que faz. Ele fica triste quando percebe que o amigo resolveu "roubar" o seu sonho e isso acabou levando os dois a discutirem depois da apresentação que ele tanto ajudou o amigo a fazer. Os anos se passaram e eles nunca voltaram a se falar, com uma mágoa acumulada e empoeirada que escondia um grande amor, amor que ele ainda não entende, mas que não consegue ignorar, quando sente ciúmes ao se reaproximar de Oh-aew e ver que não consegue ficar longe dele mais uma vez.

A jornada dos dois é algo que muitos homossexuais, senão todos, se identificam. Teh não se aceita, e nega, mesmo percebendo que não consegue fingir que não sente nada. Ele quer, deseja, e se detesta e se culpa por isso. Oh-aew já é mais esclarecido quanto à sua sexualidade. Desde o começo já parece confiante de que gosta de Bas, o melhor amigo que o acompanha sempre. Mas, quando ele percebe os sentimentos que têm pelo antigo amigo, e vê que ele também sente algo forte os aproximando, ele precisa lidar com o medo de não ser amado como é, com o desejo de querer ser o suficiente, com a dificuldade que é estar entre os dois, tão diferentes, mesmo sabendo claramente quem ele ama de verdade. 

Outros dois personagens importantes que eu quero mencionar são Tarn (Smile Parada) e Bas (Khunpol Pongpol), os outros interesses dos meninos. Tarn é uma garota com grande paixão por desenhos que quer estudar arquitetura, e Teh já vem dando em cima dela há vários anos, e ela começa a corresponder o rapaz. Infelizmente quando ela percebe isso ele já está confuso com o que sente pelo antigo amigo. Bas é o melhor amigo de Oh-aew, e seu motorista particular, além de nutrir uma paixão, não muito, secreta pelo amigo. É compreensivo e tem um grande coração, mesmo tímido sabe como apoiar e ficar ao lado de Oh-aew, mesmo quando isso significa ver o que o amado sente por Teh.

Esses dois se mostraram o pináculo da maturidade e do amor verdadeiro. Eles desejam a felicidade dos meninos acima de tudo e, melhor do que ninguém, conseguem entender que o amor é algo que não se pode controlar e, se as coisas são assim, é melhor não lutar contra ele.

O primeiro episódio já é suficiente para derramar lágrimas, e o resto então, nem se fala. A produção toda é simplesmente impecável, e eu não vou me cansar de dizer isso nunca. A fotografia é belíssima, cada cena foi construída com muita atenção e cria um diálogo entre o interior dos personagens e o ambiente que os cerca, e essa aura é passada ao espectador numa experiência de sinestesia impressionante, combinando as cores, as formas, os sons e, claro, a atuação dos meninos, que é simplesmente fenomenal!

Billkin é um ator incrível, e consegue mostrar uma gama gigantesca de pensamentos, dramas, sofrimentos, alegrias, incertezas, apenas com olhares e uma linguagem corporal inquieta. Suas lágrimas o traem o tempo todo, e são o reflexo daquilo que ele quer gritar ao mundo inteiro. PP é igualmente maravilhoso em tela, o que não parecia ser o caso em My Ambulance (ao menos pra mim ele só sabia fazer cara de irritado lá), mas ele também é capaz de mostrar várias e várias camadas de uma personalidade que vai se descobrindo e se construindo pouco a pouco. Tem um olhar poderoso, um sorriso misterioso e uma aura sonhadora, alguém que só quer ser feliz. É dele a cena que, na minha opinião, é a mais impactante da série, quando Oh-aew questiona seu próprio corpo por causa das dúvidas de Teh, chegando a conclusão de que ele não é capaz de satisfazer o outro.

A trilha sonora, em sua maioria cantada pelos próprios protagonistas (pra jogar na cara dos meros mortais que atuar não é suficiente, precisa ser cantor e modelo também) é também um show à parte. O tema principal, em thai na voz do Billkin, é uma das músicas mais lindas do ano, seja na versão normal, a capella ou piano, é simplesmente sublime. Chorei várias vezes não só quando ela tocava na série mas também quando ouvia em outros momentos, parte fixa da minha playlist de todo dia. 

No fim o que temos é uma série cuja primeira parte, curtinha com cinco episódios, consegue entregar mais do que muitas séries com o dobro disso. A história não é corrida, o roteiro é bem feito e tudo tem um ritmo calmo como o mar, outro personagem importante, mas que ao mesmo tempo é poderoso, arrebatador. Tudo transcorre de modo linear mas ao mesmo tempo inevitável, como o próprio pôr do sol.

Já havia sido anunciada uma segunda parte, mas ninguém tinha entendido por aqui porque o pôster estava em tailandês, mas ao final do último episódio já deixaram marcado nosso reencontro com os meninos, em março de 2021, enfim, a ansiedade.

Espero, terminando por aqui, que essa série seja de fato um marco na indústria BL Thai, já que os filipinos tão vindo com tudo também, e que seja explorado um mundo mais profundo e complexo, sem medo de chocar ou parecer afetado demais ao público. Uma história de amor gay não é diferente de uma história de amor, aliás, o último adjetivo é desnecessário, pois não tem problema nenhum em uma história ter dois protagonistas.

Nota: 15/10

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Resenha - A Chance To Love (Love By Chance 2)

ATENÇÃO: Contém spoilers, e muitos, então prossiga por sua conta e risco.

Uma chance para amar... é só o que precisa um coração frio e triste para conhecer a felicidade, para descobrir que pode existir uma razão para viver, alguém que faça esquecer as dores e que seja a única razão até mesmo para o respirar...

Love By Chance foi um tremendo sucesso, mesmo depois de um caos completo na produção e até mesmo na distribuição. Foi problema com o licenciamento, desistência dos patrocinadores e distribuidores, treta dos managers tentando destruir a carreira dos coleguinhas, a autora sendo acusada (não sem alguma razão) de romantizar estupro e relacionamentos abusivos, enfim, toda sorte de coisas que teriam destruído qualquer outra obra por muito menos. Mas o sucesso garantiu uma continuação além, é claro, do spin-off baseado em outra obra do mesmo universo, TharnType, que também já ganhou segunda temporada, aclamadíssima mesmo antes da estreia. 

A Chance To Love é a continuação de Love By Chance e, pelo menos deveria, começar imediatamente de onde parou a primeira temporada, mas algumas coisas aconteceram e esse plot precisou sofrer algumas mudanças. Antes de continuar eu quero dizer que aqui só vou levar em consideração a série, em nada depondo contra ou a favor da novel. 

O primeiro golpe na produção, pelo menos para os fãs, foi a confirmação de que o Saint Suppapong (Love By Chance, WhyRU?) não iria voltar para essa temporada que, perdendo o protagonista iria se focar no casal que foi secundário na primeira temporada, já que TinCan caiu no coração de todos nós não é mesmo? Particularmente eu estava muitíssimo animado pois a ideia do garoto maluquinho e falante que conquista o riquinho frio de passado complicado é excelente! 

E as coisas começam a dar errado... de novo!

A produção decidiu então dar um reboot na história de TinCan, ao passo que os outros casais continuariam mais ou menos de onde pararam. Primeiro problema. Se você, assim como eu, preza por uma obra com uma linha do tempo coesa isso aqui vai te incomodar profundamente. Eles levaram uns sete episódios pra contar a história que já tínhamos visto na primeira temporada, com uma mudança aqui e ali, o que foi muito estranho porque vimos os dois se conhecendo quando obviamente ambos tiveram uma boa participação nos eventos anteriores. Todo mundo lembra do Can (Plan Rathavit, de Make It Right) surtando quando o Tin (Mean Phiravich) queria se meter no relacionamento de AePete, e todo mundo lembra que foi justamente isso que fez os dois se aproximarem. 

Se você fizer vista grossa e ignorar esse fato ainda sobram coisas pra incomodar: A saída do Saint deixou uma brecha grande demais pra ser preenchida com o drama "ele fez isso pra te proteger", aludindo ao fato de que a saída encontrada pelos roteiristas foi a de que Pete foi embora pra evitar que o seu pai trouxesse problemas para o pobre Ae (Perth Tanapon, de The Stranded e Until We Meet Again), que passou a temporada inteira chorando inconsolável pelos cantos, tirando foto e postando todos os dias com uma legenda triste, chamando atenção de todo mundo pra como ele estava infeliz, porém com o cabeli lindo, isso também conta. Foi duro ver que o casal que terminou tão bem na outra temporada tenha acabado assim, na real, porque o fechamento de AePete já tinha sido perfeito e aqui, bem, só acabaram com tudo. Okay, entendo que a saída do ator tenha sido um problema, mas essa não foi a melhor solução. Até se tivessem trocado o ator teria sido menos sofrido. Não se iludam, a cena na praia no último episódio foi pra que o coitado do perth pudesse tomar água de coco e repor a grande quantidade de líquido que perdeu em lágrimas (e eu também).

Os outros casais nem se fala, se somar as cenas de todos nos 13 episódios não dá meia hora, zero desenvolvimento. TumTar ficou no churrasco, pra ser jogado pra escanteio aos 45 do segundo tempo e KlaNo, que apesar da polêmica do estupro até que podia ter se desenvolvido bem a partir de uma saga de redenção, também mal saiu do zero a zero. Admito, pra infelicidade geral da nação, que achei o final deles fofo. 

Vai só criticar mesmo?

Tá bom, eu não vou só criticar não. Teve muita coisa boa também, admito. A reconstrução de TinCan, embora ainda desnecessária, foi bem feita. Temos um Tin que continua arrogante, mas não tanto quanto antes, e que logo se deixa derreter pelo Can, que continua bobo e irritadinho como sempre. É impossível não ter um ataque de fofura quando eles finalmente ficam juntos, ou quando Can finalmente começa a admitir que gosta mesmo do veterano de coração de gelo. Aliás, que apenas aparenta ter um coração de gelo. Na verdade quase tudo que o Plan faz em tela é motivo pra um ataque de fofura.

A construção do Tin foi de longe a mais bem feita aqui. O personagem demonstra uma personalidade extremamente complexa, que tem de lidar com uma família disfuncional e com os sentimentos que surgem pelo garoto que ele até então só considerava um estorvo, e o Mean conseguiu passar isso com perfeição, mostrou um crescimento tremendo como ator, justificando porque ele disse que não quer mais fazer BLs, ele tem potencial pra muita coisa! Tin teve um passado difícil, traído pelo irmão que ele tanto amava, e passando a desconfiar de todo mundo, não acreditando que possa existir um amor sem interesse ou que não envolva dor e manipulação, o que nos leva ao segundo ponto alto da temporada.

Aqui temos a introdução de TulHin. Na minha nada humilde opiniçao o ponto alto da história. O Tul a gente conheceu na primeira temporada, mas lá ele só pareceu ser arrogante mesmo. Aqui, embora ele ainda pareça esnobe e sádico, ele usa essa máscara para esconder um passado dolorido demais pra ser dito em voz alta, e um relacionamento complicado com Gonhin, que é seu porto seguro numa família onde todos o odeiam ou o desprezam. Esses três, Tin, Tul e Hin, tem uma carga emotiva impressionante e, obviamente, conseguiram trazer um ótimo clímax pra temporada, com um fechamento que deixou todo mundo com o coração quentinho. Eu, pelo menos, chorei de alegria no final. 

Não preciso apresentar os personagens de novo, porque já tem resenha da primeira temporada aqui. A única adição substancial foi a de TulHin mesmo. 

Tul (Meen Nichakoon), o irmão mais velho de Tin, é nos apresentado como um cara arrogante, sádico, que só quer se divertir às custas das lágrimas do irmão. Mas não é bem assim, um passado difícil pode destruir qualquer um. Ele na verdade esconde um coração que ama muito, mas que não sabe bem como demonstrar esse amor, e que vive numa tensão entre amar e invejar o amor dos outros, fazendo parecer que ele na verdade odeia todo mundo, mas só parece mesmo. No fundo ele só quer ser amado. É um bebê e eu quero cuidar dele com amor e carinho. 

Gonhin (Est Ravipon, ou podem chamar ele de meu marido também) foi o pobre alvo voluntário onde Tul sempre descontava a raiva de crescer numa família disfuncional. Ele suportava calado ser usado como válvula de escape, ainda que amasse Tul de verdade e fosse capaz de fazer qualquer coisa para vê-lo feliz, inclusive sacrificar a própria felicidade, indo morar no exterior para não atrapalhar o casamento do homem que ele amava, e que continuou amando mesmo depois de tantos anos. É outro bebê que merece ainda mais amor por ser tão bonzinho. Esse personagem realmente me tocou. 

Sobre a produção: New Siwaj continua sendo um excelente diretor. As cenas são bem feitas, a fotografia continua colorida e limpa e a trilha sonora continua muito boa, embora não tanto quanto a da temporada anterior. Boy Sompob continua cantando a faixa principal, o que já é de praxe, mas não teve nenhum grande hino como normalmente. 

Pra isso aqui não ficar muito longo vamos aos finalmentes: quiseram forçar uma segunda temporada porque TinCan e TulHin realmente mereciam, mas pecaram tentando resolver os problemas ousando demais, apostando no plot da mudança do Pete e deixando os outros casais de lado, sendo que são histórias que também poderiam render bastante. TumTar mereciam mais tempo de tela e KlaNo algum tipo mais aceitável de redenção, ou até mesmo outros amores. Enfim, continua sendo uma grande série, mas nem de longe tão boa quanto a temporada anterior que, mesmo com tantos perrengues, ainda é um dos melhores BLs de todos os tempos. 

Nota: 7/10

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Sonhos do futuro

Sabe, eu já tinha até mesmo planos para o nosso futuro!? É sério! Com bastante frequência eu imaginava, provavelmente uma brincadeira de Phobetor ou Fântaso, que você diria sim, e dali em diante viveríamos juntos. Os oneiros me deram a capacidade de planejar uma vida inteira ao seu lado, esses pequenos malvados, divertindo-se às minhas custas, sussurrando em meus ouvidos as palavras que eu disse a você, sabendo eles qual seria a sua resposta, diferente da que colocaram em meu coração. 

Eu imaginava nós dois casados, eu, um escritor famoso, recluso e excêntrico, daqueles que só concede entrevistas à pessoas que muito insistiram e que provaram conhecer bem a sua obra. Você, dono de seu próprio negócio, bem sucedido, satisfeito consigo mesmo e com a vida que partilhamos.

Moraríamos numa daquelas casas de alto padrão que aparecem nas propagandas do Instagram, com uma grande porta de madeira maciça, o piso de um mármore nobre, rosa e branco. Uma casa grande, decorada com esmero, simplicidade e um bom gosto especial. Eu teria um escritório, com as paredes cobertas de prateleiras cheias de livros, e uma mesa no centro, de uma madeira escura, com papéis rabiscados e o computador de onde saem as palavras que preenchem os livros que vendem como água nas gôndolas das livrarias de mais de trinta países.

Eu passaria o dia em casa, o típico filósofo estranho que passa dias sem trocar o pijama, tentando entender uma única expressão lida num livro em alemão que em português não faz o menor sentido. Ficaria feliz e romperia com o êxtase teórico quando ouvisse você chegando, no fim da tarde, camisa branca, a calça apertada marcando o corpo forte, a mão soltando a gravata preta enquanto larga a pasta sobre o balcão. Você sorri, e eu já estou saltando em seu colo, colando nossos lábios num abraço apertado. 

Costumamos cozinhar juntos, aos fins de semana, entre maratonas de séries e filmes ou simples tardes ouvindo músicas, deitados num grande sofá ou no tapete da sala. A cozinha foi toda feita em um mármore preto, um elegância ímpar, sorrisos quando percebemos que colocamos tempero demais, ou que perdemos o ponto de caramelizar a cebola. Na bancada atrás de nós duas taças de vinho branco, a garrafa já pela metade, talvez seja melhor pedir alguma coisa pelo aplicativo? Só dessa vez. 

O vinho começa a fazer efeito, e o que era risada passa a ser uma expressão de provocação; Minha mão desce sobre o avental, você não usa mais do que isso, e percebo que não sou o único a pensar nisso. Num movimento rápido você me coloca sobre o balcão, a respiração já alta e decidida, como as nossas mãos apertando com força, eu, os músculos de seus braços, você, pressionando seu corpo sobre o seu, me empurrando lentamente contra a pedra fria, enquanto...

Gosto das tardes tranquilas, em que escolhemos algum álbum, uma sinfonia ou algum nome importante daqueles que ninguém conhece, e ficamos deitados, ouvindo, deixando que a música nos preencha, deixando que durante os minutos de acordes e fermatas o tempo pare, e esse se torne o nosso infinito particular. 

Mas essas são apenas as imagens que os deuses dos sonhos colocaram em minha cabeça, sonhos que se repetiram tantas vezes que mesmo acordado eu consigo me lembrar em detalhes, deste a cor cinza do sofá até o quadro laranja e vermelho da entrada, de um moço novo que vendia seu trabalho numa feira de artes que eu convenci você a ir. Mas esse é apenas o trabalhos deles, brincando comigo, como devem fazer com tantos outros, inclusive com você mesmo. Quem disse que deixaram de existir? Apenas influenciam os homens com uma discrição que os faz ter ainda mais poder pois, podendo agir livremente, sabem que ninguém mais culpá-los por nada, e talvez eu seja tremendamente castigado por terríveis pesadelos por dizer isso. 

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

O Grande Panteão

Em algum ponto sem localização precisa aos homens ergue-se uma imponentíssima fortaleza. Parece que ela muda de lugar, para que ninguém a possa encontrá-la pelos meios convencionais conhecidos pelos mortais. Ao seu redor há uma permanente muralha de nuvens e tempestades de neve e, ainda assim, quando o sol brilha no alto, ainda que timidamente, o contato de seus raios com a superfície de cristal faz com que ela brilhe tão intensamente quanto o próprio sol, uma morada para os deuses.

Parece poder abrigar centenas de famílias com luxo e espaço de sobra, ainda que esteja quase sempre completamente fazia. Suas inúmeras torres erguem-se como flores que se abrem ao céu, ao passo que incontáveis passagens, janelas e corredores visíveis dão uma vaga ideia da importância daquele palácio no centro do mundo, rodeado de nuvens. 

Ali são decididas as questões mais relevantes, e as mais discretas, acerca de toda a humanidade. Ali se reúnem não apenas um panteão grego ou nórdico, mas todos os deuses da humanidade, que governam e zelam pelos homens. 

Em dias especiais, os cavaleiros reais, divididos em três grandes classes, guardam o palácio do Grande Panteão e recebem as comitivas das grandes divindades. Centenas de carruagens puxadas por cavalos alados, de pelos tão branco que chegam a brilhar, rodas de ouro e adornos das mais ricas e raras joias que possam ser encontradas ali. São os deuses do Olimpo, chegando um a um ou em pares. Zeus, com pequenos raios saindo de seus olhos, e Hera, Atena, Apolo e Ártemis e tantos outros. Trajam suas armaduras sagradas, forjadas por Hefesto de um metal extremamente raro, juntamente com pó de estrelas aquelas armaduras são as mais poderosas já criadas, além de que brilham como se fossem feitas do brilho das próprias estrelas, cintilando com graça extrema. Todos descem e entram, andando altivamente, quase como se flutuassem sobre o chão, em direção ao grande umbral, que os conduzirá a grande Assembléia Central. 

Algum tempo depois do último olimpiano ter passado, Dionísio, gracejando com os cavaleiros de bronze próximos da entrada, com um cheiro doce e inebriante de vinho, uma nuvem dourada surge em contraste com o branco da paisagem. Do alto das torres os cavaleiros de prata observam aquela nuvem crescem, e se perguntam se pode haver uma tempestade de areia naquele deserto de gelo, mas logo percebem que se trata de outra coisa, areia não brilha daquela maneira. 

É uma imensa tempestade de ouro, pó de ouro, que logo cobre o chão com uma nobreza antiquíssima, precedendo a chegada dos próximos convidados.  O panteão egípcio é tão vasto quanto o olimpiano, mas essa é a única semelhança entre eles, além é claro da aparência divinal de cada um de seus pares. Eles chegam de diversas maneiras, alguns em grandes carruagens puxadas por diversos animais, outros vem em suas próprias formas animais, como um grande falcão e um gato negro gigantescos, ou a jovem com grandes asas coloridas que brilham no céu em verde e amarelo que, tão logo pousam com uma graciosidade na terra, transformam-se em homens, ou melhor, em deuses com aparência de homens. Os deuses são altos, de pele escura e brilhante, os corpos desnudos em contraste com a terra de gelo, são bronzeados pois vêm de um mundo onde o sol reina absoluto. E ele, o sol, Rá, chega por último, em uma carruagem maior que todas as outras, cujas rodas são de fogo puro, tão brilhante quanto a armadura de Apolo, o outro deus sol que há pouco entrou no castelo.

Do céu se abre uma clareira naquele cinza mortal, e um enorme feixe de luz atinge o chão, fazendo o ouro rodopiar e se dispersar, misturando-se com a neve. A luz é de várias cores, um grande arco-íris que rasgou o céu, trazendo consigo o panteão nórdico. A frente da comitiva vai Thor, o grande deus trovão, e a cada passo parece fazer tremer o mundo, seguido por seu irmão, Loki, pequeno mas de aparência astuta, e outros guerreiros, trajando pesadas armaduras, não brilhantes como as dos gregos, mas que pareciam ser ainda mais indestrutíveis. Algumas das deusas são as mulheres mais graciosas que já se vira e, por fim, numa imponência única, Odin com sua grande lança e sua capa esvoaçante, fechando o séquito.

Outros chegam durante todo o dia, e juntam-se aos colegas na mais estranha das convenções. Poseidon e Hórus conversam seriamente, como amigos de longa data tratam de negócios. Ísis e Afrodite riem-se enquanto olham para alguns dos belos deuses que as cercam. Hades e Anúbis riem de alguma piada. 

Como grande gigantes, maiores ainda do que o castelo, Brama, Vixenu, Ganesha e Xiva se aproximam,  com muitos outros atrás, em tamanho menor, desfazendo-se em poeira colorida conforme aproximam-se da entrada, já em tamanho normal. Os babilônicos chegam numa única grande carruagem, descendo dela Marduk, Enki, Ishtar e muitos outros e os ameríndios, Tezcatlipoca, Quetzalcoatl, Ometeotl  e seu séquito voando em gigantescas criaturas aladas de plumas coloridas, surgidas de um grande circulo de pedra sola que se abriu no céu. Tantos outros vão chegando até que se completa a reunião.

Finalmente os últimos a chegar, os quatro grandes seres. O tigre branco, o dragão de Avalon, a Fênix e a Tartaruga Negra, chegam em silêncio, não de fora do panteão, mas de seus próprios quartos, em algum lugar naquela imensa fortaleza. 

O hall da assembléia é enorme, construído sob o mármore branco mais nobre. De aparência frágil, no seu todo, com seu piso branco e paredes em cristal, parece que não aguentariam um arranhão, mas aquela fortaleza, literalmente construída pelos deuses poderia suportar o impacto de milhares de bombas atômicas que, mesmo destruindo todo o planeta, não a deixaria mais do que com algumas marcas de fuligem, que o vento logo trataria de lançar para longe, mantendo todo seu esplendor. O mesmo se pode dizer do Olimpo, dos Jardins Suspensos da Babilônia ou de Valhala, cada uma em sua indestrutível solidez e beleza. Todos os deuses estão sentados em um grande cemi-circulo, na parte principal, um pouco mais atrás, os quatro tronos dos quatros seres, que a essa altura já se tornaram humanos novamente. A frente desses mais três tronos, em outra altura, sendo que nenhum fica á frente do outro. O trono do centro é o mais luxuoso de todo aquele templo. Não é como o de mármore como o dos gregos, ou de ouro como o dos egípcios, mas é como se fosse feito de luz, pairando acima do chão, brilhando mais do que todas as pedras preciosas do mundo, em seu encosto, uma grande cruz brilha em vermelho, como se fosse sangue, ainda sendo bombeado dentro do corpo.

Ao lado dele estão dois tronos menores, talvez os mais simples dali, mesmo sendo talvez os mais importantes, já que o do centro, o do Cordeiro, não será ocupado. Esses tronos são de um material, nobre, é verdade, um branco e o outro preto, mas simples, apenas com um pequeno adorno na parte de cima, o sol, no branco, e a lua no preto. São os tronos dos arautos, aqueles que congregam todos os panteões numa só unidade. Nele sentam-se dois humanos, protegidos por doze cavaleiros de ouro, postos atrás de seus lugares. Cada um segura um grande báculo encimado com o sol, a lua e  uma cruz ao centro, e vestem túnicas em cores opostas as de seus tronos. 

O guardião do sol, o pequeno Heron, de cabelos castanhos e sorriso doce, porém sério, mantém em silêncio, de pé, enquanto o guardião da lua, Gilgamesh, em sua túnica branca, cabelos negros na altura do ombro e báculo encimado com uma lua, dá início a reunião daqueles que guiarão a humanidade, acordados de seu sono de milênios, desde que pouco a pouco os homens foram esquecendo-se deles. E a grande reunião dos deuses no centro do mundo começa. 

Ainda é cedo amor

Ainda é cedo amor, o dia mal começou e ainda estou um pouco tonto, de sono e de ressaca. Ainda é cedo para dizer como me sinto, embora eu saiba que sinto algo, e que está me incomodando. Acontece que há pouco eu já não sou mais o que era. Ainda não entendi os movimentos que estão acontecendo dentro de mim.

Sinto algo se revirar e algo se acalmar. Acho que uma parte de mim, o realista, filósofo, discípulo de Aristóteles, sabia e só precisava ouvir a verdade, verdade que já havia constatado por meio da experiência, experiência que me deixou uma profunda impressão e que se tornou conhecimento dessa mesma verdade. 

Por outro lado também sinto que essa minha reação fria, que mal chegou as lágrimas, seja reflexo do entorpecimento dos sentidos. De tanto caminhar e cavar os meus pés tornaram-se insensíveis, e eu nem percebia que estava caminhando para a frente do abismo que eu mesmo acabara de cavar. 

É, ainda é cedo para explicar, ou entender. Mas algo precisava dizer. 

Acho que, para conseguir um pouco mais de tempo, vou recorrer há alguns velhos amigos. Ao meu lado tem uma caixa de papel, uma caixa preta, onde guardo os remédios que uso quando quero fugir de tudo e todos, e hoje claramente é um desses dias, principalmente agora quando a música no player desperta algumas recordações, como quando andávamos por Brasília ouvindo música e de mãos dadas. É, de fato eu não estou me sentindo bem. Melhor comer alguma coisa e dormir, quem sabe em algum sonho me seja dada alguma intelecção, ou ao menos eu consiga, não sei ao certo, entender onde estou e o que estou fazendo, e principalmente entender o que deveria fazer de agora em diante. Mas a verdade é que eu gostaria de dormir e não acordar mais, não ser obrigado a pensar em nada disso. 

Não posso estudar hoje, minhas aulas estão suspensas por falta de pagamento. Assim como a luz e a água. Não sei se pagaram a internet, talvez em alguns dias perca também a oportunidade de dizer aqui o que sinto, sendo obrigado a guardar para mim. Não quero procurar alguma aula aleatória na internet, mesmo sabendo que poderia ser bom para me distrair e aprender, mas eu não quero. Não quero tampouco ler um das dezenas de livros que ainda não li, não estou com vontade de nada, eu só quero ficar aqui, ouvindo música quietinho enquanto espero o torpor do tarja preta me envolver e me fazer esquecer de que aqui há um mundo, de que nele há pessoas e que uma delas, a que eu desejei que estivesse comigo, ontem me disse que não sentia a mesma coisa, que eu não deveria sequer me iludir com essa possibilidade. 

E aos poucos as lágrimas começam a brotar, umedecendo os meus olhos e se tornando lentes, ou espelhos, pelas quais eu consigo ver um pouco o que se passa comigo. Eu estava otimista, há dias adiando o que disse, e o disse com coragem, que é algo que costumeiramente me falta, disse e... Deu tudo errado. Eu achei que dessa vez eu conseguiria dar um passo, eu achei que dessa vez estava certo em apostar, mas não, não poderia estar mais errado. Continuo parado, exatamente onde estava e de onde nunca vou sair. Eu recebi um 'não' mas não de apenas uma pessoa, mas o 'não' do próprio universo que decidiu ser esse o meu destino. E eu fiquei, e continuo, aqui de pé, com os olhos marejados, as mãos trêmulas e os lábios cerrados, vendo, com uma tristeza profunda, a verdade sobre mim mesmo, de saco cheio de tanto esperar ser feliz, ou ao menos ter um leve vislumbre de felicidade, mas sendo frustrado uma vez mais. É, não dá pra conter as lágrimas. 

domingo, 15 de novembro de 2020

Daqui do meu lugar

Eu entendi, acho que finalmente, qual o meu lugar em relação a você. Não é ao seu lado, não é partilhando alegrias e tristezas, não é segurando a sua mão ou sentindo seu toque, ouvindo seu coração. Daqui do meu lugar eu só posso olhar para você, e isso é o máximo que me é concedido.

Percebi que, embora sejamos políticos, somos também solitários, cada um fechado dentro de si mesmo. Eu achei que a minha sinceridade poderia ser a lança a quebrar esse escudo, entre você e eu. Mas estava enganado. A sinceridade apenas desvelou a verdade que eu fingia não ver, a verdade de que não existe, e nem há de existir por sobre a terra, um nós. 

As coisas são assim. Alguns pedem por uma chance de ser e fazer feliz, outros tomam outro caminho, preferem tomar suas próprias decisões, que não podem incluir a todos. As coisas são assim. As coisas são como uma rocha, ou o aço frio de uma espada que corta sem dificuldades as fibras de um coração. 

Isso me chamou a atenção para o quanto as relações humanas são complicadas. Somos hostis demais em nossa própria consciência, o outro não nos toca. Sob essa perspectiva muitas das coisas as quais dedicamos muito de nosso tempo e consideração não passam de mentiras, engodos. Amor, carinho, afeto... Sob esse prisma são apenas projeções de nosso eu egoísta, frio e estranho ao outro. 

As coisas são assim e não adianta reclamar, sequer adianta se demorar em falar sobre elas. É como uma montanha que se ergue imponente ante os olhos, é assim, de fato é assim. Não quero nem mesmo cair numa reflexão ainda mais melancólica sobre como me sinto depois de ser dispensado, não, eu só quero deitar a cabeça no travesseiro e aceitar, de uma vez por todas, que as coisas são assim e que talvez essa seja a derradeira prova de que preciso aceitar que meu destino é ficar sozinho, e apenas isso.

Não quero, tampouco, pensar que as coisas vão dar certo para mim uma hora, não, pensar dessa forma é pedir para se decepcionar uma vez mais, e eu gostaria muito que essa fosse a última. Mesmo sabendo que outras decepções me aguardam eu espero que sobre esse assunto eu agora consiga amadurecer, de uma vez por todas, e não depositar esperanças assim, de modo a me entregar de braços apertos ao abismo. 

Eu entendi, acho que finalmente, qual o meu lugar em relação a você. Não é ao seu lado, não é partilhando alegrias e tristezas, não é segurando a sua mão ou sentindo seu toque, ouvindo seu coração. As coisas são assim, é assim que acaba, esse é um dos muitos finais possíveis, e eu não quero me demorar mais. 

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Jaz derrotado

Cansado. 

O dia foi um grande desafio, e ainda nem terminou. Ser obrigado a acordar, conversar com meus parentes e amigos, ser obrigado a ir na rua, cruzar com as pessoas, andar e conviver, sorrir, responder, acenar. É tudo tão cansativo. Não consigo sequer dizer o quanto preciso me esforçar apenas para responder sim ou não, ou o quanto me manter de pé, do quarto até a cozinha, já me exige um esforço tremendo. 

Cansado.

Cansado. Fiquei umas poucas horas fora de casa, e isso foi mais do que suficiente para me deixar absolutamente exausto, sequer consigo ficar com os olhos abertos. E o maldito vírus ainda me obriga a tomar banho antes que possa deitar, finalmente, ignorando muitas obrigações pendentes, até a hora do próximo compromisso, o qual eu simplesmente gostaria de fingir que não existe, assim como todos os outros aspectos da minha vida, enquanto apenas espero o dia em que tenha forças novamente nos meus ossos e músculos para sair da cama sem que isso seja uma condenação terrível para o meu corpo e minha mente. 

Cansado.

Cansado do corpo, a respiração arfando, cada fibra tremendo em protesto contra o mínimo esforço. Cansado da mente, que não se concentra mais nos filósofos e nos livros, senão que não consegue tirar a imagem dele da minha frente, chegando ao ponto de me fazer sentir o seu perfume e o toque dos seus dedos, mesmo sozinho aqui. 

Cansado.

Cansado, cansado demais para ser qualquer coisa além de uma gosma que se derramou no chão e já não tem mais como se sustentar. Os olhos caídos, o semblante abatido, um retrato cinza do desânimo. Desânimo, a única coisa que eu conheço atualmente, a única realidade a que tenho vivido nos últimos tempos. Desânimo, a alma que se foi abandonado um corpo que já começa a apodrecer. Desânimo, o sopro que se foi, a casca que foi largada inerte sob a terra. Cansado demais para levantar, para trocar a música, para vestir outra roupa que não esteja rasgada ou fedendo, cansado demais sequer para derramar mais uma lágrima, cansado para gritar, cansado para dar o último suspiro.

Cansado.

Cansado de mim, da minha casa, do meu pessimismo, do otimismo alheio, dos sorrisos e das brincadeiras, das vozes altas, do barulho sem justificativa, do sol, dos jingles das campanhas políticas, das minhas obrigações, das promessas que não fiz e que me obrigam a cumprir. Cansado das repetições, de viver em círculos. Cansado dos abandonos, cansado de não ser o bastante. Cansado demais para continuar, cansado demais para dar um passo a mais sequer. Cansado do homem, do ser, da existência, do todo e do nada em que estou mergulhado. Cansado. 

Cansado.

Cansado da cor da minha pele e da textura do meu cabelo. Cansado do meu corpo que não o atrai, cansado de saber que não posso mudar para ele, cansado de saber que não sou bom o bastante para ninguém, cansado de saber que ninguém nunca vai me querer, cansado de viver como se houvesse uma razão para acordar todos os dias e estudar coisas das quais ninguém nunca ouviu falar e pelas quais ninguém se interessa apenas porque me dão a ilusão de que são importantes. Cansado de ser alguém que não é ninguém. 

Cansado.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

A tensão que habita em mim

A graça se fez presente novamente e superabundou onde há muito havia reinado o pecado. Onde há muito chafurdava no lamaçal da miséria humana. Mas ele deixou as suas marcas, uma cicatriz profunda, uma mancha que ainda não foi apagada. Essa mancha é como um buraco negro, que me suga, que me atrai e que tenta constantemente me levar uma vez mais para aquela escuridão abissal. Ela deixa no meu peito uma impressão de um grande vazio, um vazio que só pode ser preenchido com um alguém, ela me faz crer nisso com tamanha força, tamanha veemência que eu sequer chego a questionar se essa pode não ser a maior verdade do mundo, de que sou sozinho e incompleto, tal qual ela me faz crer. 

É estranho notar como essa tensão se dá dentro do meu ser. Num instante afundado e sem nenhuma esperança de ver a luz, em outro vendo a esperança que há muito eu já não tinha; Ao acordar, no entanto, novamente me vejo atraído, não pela luz mas pela escuridão que, estando dentro de mim se fecha cada vez mais ao meu redor. A luz que, como diz o meu mestre, não estava fora mas também dentro de mim, trava uma batalha contra as trevas, mas as trevas não a compreendem, embora eu seja ainda levado de um lado a outro, entre a luz e as trevas. 

“Os homens saem para fazer passeios, a fim de admirar o alto dos montes, o ruído incessante dos mares, o belo e ininterrupto curso dos rios, os majestosos movimentos dos astros. E, no entanto, passam ao largo de si mesmos. Não se arriscam na aventura de um passeio interior” (Santo Agostinho)

Acontece que sinto falta de algo, e já nem sei quantas milhares de vezes já disse isso. Há um vazio bem no âmago do meu coração, e eu sinto esse vazio a cada momento do dia, e procuro preencher esse vazio. Acontece que eu não sei do que é que falta em mim. Parece-me sim falta de Deus, de algo superior, que me abarca e transcende infinitamente, que sendo tão maior do que eu só pode me completar pois está muito além de mim. Parece-me, ainda, embora contra certo bom senso, que é a falta de alguém, que todo esse vazio é, somente e na verdade, apenas o meu medo de ficar e morrer só gritando desesperadamente para que alguém fique ao meu lado. Isso explica a necessidade incontrolável que tenho de ter alguém comigo o tempo todo, de precisar de um homem comigo, de sentir seus braços ao meu redor, sua voz acalmando o meu coração. 

E essa é a tensão que pulsa dentro de mim. Desde o momento em que acordo, ainda sonolento, até as tardes quentes onde os pensamentos luxuriosos me invadem a mente, até as noites tortuosas onde a solidão se faz presente fisicamente, levando-me à beira da loucura, fazendo com que eu veja amor onde não há, confundindo tesão com carinho, sendo levado por uma tsunami de confusas impressões, tão difusas entre si que facilmente poderiam me fazer crer que um pântano é um canteiro de flores ou que uma pequena mosca é um grande dragão, e em verdade é bem isso que se passa comigo, cada vez que vejo em qualquer homem a solução dos meus problemas, num estranho o meu porto seguro, numa palavra educada uma declaração de amor. É a loucura provocada pelo vazio, vazio que me enche de desespero, vazio que é como um abismo que eu mesmo cavei com as minhas mãos, agora cheias de terra, a mesma terra que a todo momento ameaça engolir-me todo o corpo e devorar-me a carne até os ossos, consumindo meu ser, me desfazendo, vazio, em mais e mais vazio. 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Universo discordante


Tenho dormido quase o dia todo, me obrigado a isso. Não tem sentido ficar acordado, não há o que fazer, não há coisa proveitosa a se pensar. Nem sequer consigo entender as aulas direito, tudo me parece confuso, como que num espelho manchado, tudo me é estranho, vazio, sem contorno. Por isso eu prefiro o mundo onírico, por isso eu prefiro lá, para onde posso voltar quantas vezes forem necessárias, ainda que às custas do meu corpo físico. Mas, quem se importa com meu corpo físico não é mesmo? Que diferença faz se durmo por dez ou dezesseis horas? Que diferença faz se não tomo banho ou lavo os cabelos? Que diferença faz? 

Quando acordado a minha mente flutua automaticamente até você. E me lembro das suas piadas bobas, ou do seu carinho tímido. Me lembro do seu abraço apertado, do seu sorriso afetado. E eu queria você aqui comigo, deitado ouvindo trilhas sonoras de romances ou vendo comédias sem sentido. Não é pedir muito é? Mas parece que o universo não concorda comigo. Foi eu dizer o quanto você é importante para mim que ele logo tratou de afastar você de mim e, o pior, fazendo parecer que foi minha culpa. 

É sempre minha culpa, é sempre meu egoísmo que afasta os outros. Já me acostumei, o que não quer dizer que não doa mais, ainda dói, mas é a mesma coisa toda vez, eu sempre vou ficando para trás enquanto os outros seguem o seu caminho, e tudo o que vejo são as suas costas, sumindo ao longe no horizonte, enquanto eu fico parado, com os pés machucados e pesados demais para ir atrás. É sempre a mesma coisa e é sempre minha culpa. O sonho dos companheiros que caminham juntos? Apenas isso, um sonho. E por isso eu torno a voltar ao mundo dos sonhos, não que lá eu viva algo assim, mas pelo menos não sou obrigado a viver a partida silenciosa daqueles que amo, um a um, sem que possa mover um dedo sequer para mudar. Lá não sou obrigado a ver o carinho que os outros têm por mim transmutado em indiferença, aumentando ainda mais o horror que tenho de mim mesmo. 

Por isso eu me puno com a solitária. Sozinho no meu quarto, sem saber o que é a luz do sol, sem saber o que é a voz do outro. Tudo o que conheço é a textura das cobertas e a sensação preguiçosa de abrir os olhos, virar para o outro lado e voltar a dormir, sem viver uma vida propriamente dita. E assim deverá ser o meu fim, dormindo cada dia mais até que, um dia, não mais acorde, não mais sinta a dor da separação, não mais sinta pesar pela solidão, não mais...

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Soledad

Eu me lembro dos momentos infinitos em que segurei a mão dele com força, em que senti sua presença real ali, total, ao meu lado. Sua respiração, a textura da pele, o perfume, seu hálito doce, os fios de cabelo cacheado nos meus olhos enquanto deitava em seu ombro. A luz tímida do painel do carro acessa. Naquele instante, naquele pequeno instante, o mundo parou, e nada mais importava. Já não era mais o ser que me mantinha na existência, mas era a sua presença ali que me mantinha, como os planetas ao redor do sol, com os seus raios de calor a iluminar a escuridão que, naquele momento, havia em meu coração. Mas o mundo tornou a girar, violentamente fui trazido de volta à realidade com um grande barulho que nos separou, uma porta que se fechou, que nos separou e não permitiu que nos aproximássemos novamente.

X

Perdi a noção do que era real. Vaguei pelos cômodos como um fantasma, cheguei a digitar várias vezes e apagar logo em seguida. Me sentei no chão, no quintal frio e escuro, observando o jardim. Todas aquelas formas, aquelas folhas e flores de várias cores e tamanhos, tudo aquilo se agitando lentamente na brisa fresca da noite me distraiu, e eu consegui me acalmar. 

Durante todo o dia havia sentido um ímpeto se mover dentro de mim. Uma vontade imensa de gritar para o mundo inteiro escutar. Fiquei dividido entre a vontade de dizer, de rasgar o meu peito e colocar para fora o que tanto me sufocava. Do outro lado a vontade contrária, bom senso ou medo, ou os dois, que não em deixava fazer isso. Fiquei paralisado, absolutamente em pânico com ambas as perspectivas, seja falar e receber de você um probabilíssimo "não" ou não dizer nada e simplesmente não acontecer nada. Nenhuma das duas perspectivas me agrada, e pensar nisso só me paralisa ainda mais. 

X

Como queria que fosse diferente, como queria não precisar me preocupar com nada disso, como queria que as coisas fossem fáceis como o são para todos os outros que estampam suas vidas felizes nas páginas das redes sociais. Sorrisos, beijos e declarações de amor em belas paisagens, e eu nem sequer consigo dizer o que sinto porque sei que isso só me traria mais dor, e não, nada de amor. Eu só queria a graça de um amor tranquilo... Mas como não me entristecer sabendo que, enquanto olho para você, você olha para o outro lado, procurando justamente o amor que eu gostaria de dar, mas que você é incapaz de ver, é como diz a música, que precisamos entender que, na vida, uns nascem pra sofrer enquanto o outro ri.

X

O resultado disso é um ceticismo pessimista que se impregna profundamente no homem até o seu tutano, que circula não mais como sangue e sim como veneno por seu corpo e que, ao exalar, acaba por matar aos poucos tantos quantos se acheguem a ele. É o veneno que mata lentamente a visão que se tem do mundo, deixando apenas a ideia de que este é um mundo hostil demais, que a humanidade, que todo amor de que se diz é mentira, é apenas um subterfúgio maligno que o destino usa para torturar todos aqueles que se encontram nessa existência. Seja de frente para um belo pôr do sol na praia ou num quarto escuro numa cama vazia o sentimento é o mesmo, de que o amor é mais ou menos aquilo que disse o pensador, que "en mi soledad he visto cosas muy claras, que no son verdad." Essas coisas enchem os olhos de brilho e esperança. apenas para verterem-se em lágrimas quando tudo se desfizer, como quando, com um grande barulho, somos trazidos de volta à realidade, separados e impedidos de voltarmos a nos aproximar. 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Em busca da felicidade

"Taci! Chi usurpò la tua corona me cerca e te persegue! Non c’è asilo per noi, padre, nel mondo!" (Giaccomo Puccini, Turandot - Ato I)

Eu vi meu nome, e sei bem da sua sinceridade quando me diz que sou valioso em sua vida. Não discuto e nunca questionei isso, mas questiono o lugar em que ocupo em relação a você. Na frente do seu nome sempre esteve um coração, um símbolo bobo e colorido do carinho que eu tenho por você. Na frente do meu nome, que nem sequer é meu nome mas um apelido pelo qual nem você e nem ninguém nunca me chamou, não há nada. Nada! Isso também é simbólico. 

À frente do nome dela havia um sorriso e um coração. E isso também é muito significativo. O sorriso e o coração são símbolos do que há entre seu coração e ela, do que você sente. É o real. Você nutre por ela um carinho, nutre um amor em gérmen. Por mim você não nutre, senão que já um amor real, mas não é o mesmo amor, é amor que já cresceu, é amor de amigo e apenas isso. É amor, um grande amor, mas não é o amor que eu queria, o amor que eu desejava. 

Todos desejam algo, porque as coisas de certa forma nos completam. Entretanto ao ter a coisa desejada, percebemos que já não desejamos como antes e passamos a desejar outra coisa. Então, não tem como a felicidade estar nas coisas, pois elas não nos preenche totalmente.

Talvez nas riquezas, mas Santo Tomas nos responde: É impossível que a bem-aventurança do homem consista nas riquezas. Conforme o Filósofo diz no livro I da Política, há duas espécies de riquezas, as naturais e as artificiais. As riquezas naturais são aquelas pelas quais o homem é ajudado a compensar as deficiências naturais, como sejam, a comida, a bebida, as vestes, os veículos, a habitação, etc. As riquezas artificiais são aquelas que por si mesmas não auxiliam a natureza, como o dinheiro, mas a arte humana os inventou para facilitar as trocas, para que fossem como medidas das coisas venais.

É evidente que a bem-aventurança do homem não pode estar nas riquezas naturais. Buscam-se essas riquezas em vista de outra coisa, para sustentarem a natureza humana. Por isso, não podem ser o último fim do homem, porque não se ordenam ao homem como fim. Donde, na ordem natural, todas elas estão abaixo do homem, e são feitas em vista dele, conforme o Salmo 8: “Submetestes todas as coisas a seus pés” (v.8).

Jesus lhe respondeu: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça." (Mt 8, 20)

E assim me vejo, a despeito de me usar das palavras de meu Senhor para justificar um sentimento tão abominável a ele quanto este... Perdão, Senhor, por mais esse pecado, mas eu vejo assim, sem ter onde repousar, sem lugar no mundo para mim, como se não me encaixasse aqui, e não me encaixo mesmo. 

Já disse, não raras as vezes, que seu abraço é para mim o melhor lugar do mundo. Já disse que não me importaria de segurar sua mão pelo tempo que fosse, que ouvir seu coração era uma doce melodia. Mas eu minto para mim, sendo que a verdade é que não há espaço verdadeiro, do amor que busco, para mim em seu abraço, tampouco em seu coração. 

Aqui me vejo como aqueles amantes do cântico de S. João da Cruz, com a alma inflamada, suspirando de amor, enquanto da ameia a brisa amena os seus cabelos afagava. E me maltrata usar tais comparações para o que sinto por você. Mas não sei me expressar de outra maneira e apenas sei falar do amor assim.

Talvez a vida seja vazia devido nossa agitação, talvez na solidão nos autoconhecendo seremos felizes... mas Nosso Senhor nos criou políticos.

Então talvez nas amizades, acho que aqui é o ponto. Porque, na Ética a Nicômaco, Aristóteles define a amizade de três modos: a primeira é justificada como a mais sublime, porque é o tipo de amizade que visa somente à bondade por si mesma, ou seja, busca o bem do amigo por amor ao amigo”. E nas palavras do próprio filósofo grego: “Essa espécie de amizade, pois, é perfeita tanto no que se refere à duração como a outros respeitos, e nela cada um recebe de cada um a todos os respeitos o mesmo que dá ou algo de semelhante. E é exatamente isso o que deve acontecer entre amigos.

Mas acontece que muitas vezes, devido a suas obrigações, os amigos não estão disponíveis, estão viajando, sem internet, estão resolvendo as coisas de suas casas, enfim. Assim como nós também não estamos sempre, a cada instante, ao lado deles. Não podemos estar com os amigos o tempo inteiro.

"Porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra." (Gabriel García Marquez, Cem Anos de Solidão)

A sensação de vazio se encontra nessa constatação que, não raramente, nos perfura o coroação como uma espada, que não raramente nos faz chorar, ao mesmo tempo que nos faz rir e sorrir. Mas ela em si não pode ser a completude, não é o Todo que procuramos, mas apenas parte. O que pensamos ser todo o nosso amor é uma metonímia, tomamos o torno pela parte. Os amigos que pensamos ser nossa completude são apenas sinal de Deus em nossa vida, mas não são o fim em si mesmo, daí o fato de que, não raramente também, as más amizades também podem nos levar aos piores pecados.

Mas "a verdadeira felicidade não se encontra aqui", a verdadeira amizade se encontra em Nosso Senhor. Eis o que nos completa e nos preenche de fato, mas Nosso Senhor sabe que somos materialistas, por isso Ele Se dá a nós de forma material no confessionário, na Eucaristia, no sacrário. 

E o material (uma coisa) não nos preenche, mas com as virtudes sobrenaturais, Fé, Esperança e Caridade,  conseguimos ir além desse material e nos unir ao nosso verdadeiro amigo. E assim encontramos, já aqui, a verdadeira felicidade.

O vazio deve ser, portanto, uma condição necessária ao homem. Se ele não sentir o vazio não buscará o amor, se não houver o vazio ele não buscará a Deus. O que vemos, como já foi demostrado, é que buscamos no lugar errado, nas coisas erradas. Nos mantemos na busca da felicidade terrena, ao passo que essa felicidade não é mais do que sombra, um brinquedo, em comparação da felicidade verdadeira.

~

Colaboração e agradecimentos: Guilherme Arthur B. Pádua (textos em itálico, com exceção da citação)