domingo, 30 de agosto de 2020

As palavras como refúgio

As palavras, mesmo duras e frias, podem vir a serem nosso refúgio particular, sejam elas as nossas ou as de outros, ela podem nos ajudar com uma inesgotável inspiração ou, como armas e escudos nas muitas batalhas que travamos. 

No entanto, as palavras requerem cuidado no uso, qualquer arma pode ferir ou proteger. Ao meu redor as pessoas usam as palavras como flechas, lançadas diretamente ao coração de todos, sem distinguir amigos ou inimigos. As palavras são lançadas como uma nuvem e atinge sem mirar em nada em particular. As pessoas não percebem que, com isso, afastam de si aqueles que amam e se preocupam, fazendo das palavras aqueles espinhos do dilema do ouriço.

Conversar é, não raramente, uma tarefa sofrida, especialmente quando as pessoas, precisamente por não saberem nada, acham que sabem tudo e saem por aí alardeando sua sabedoria em ares de superioridade afetada. Todas as vezes que abro um livro ou começo a escutar uma aula eu percebo o quanto o que aprendi ainda é pífio e o percebo o quão distante estou de obter qualquer resposta. Mas os outros parecem viver justamente tendo as respostas para tudo, mesmo quando ao abrir a boca revelem não conhecer sequer as perguntas. 

Por isso o silêncio é preferível a qualquer conversa que somente tende a banalidade, as frivolidades têm me cansado demasiadamente. E sei o quão arrogante isso pode soar mas, de qualquer modo, eu sei que não sei nada, e quero aprender, ao passo que não tenho nada que aprender com quem diz que sabe tudo mas não consegue sustentar isso por mais de duas frases, antes que até mesmo seus argumentos iniciais, no que quer que seja, desde discussões sobre a mais baixa política municipal até o mais esmerado tema metafísico, está contaminado por um pensamento pequeno e viciado em frases feitas que, soando belas ao ouvido de quem diz, bastam para agradá-los em sua resposta, mesmo que não diga nada de substancial. 

Sei que me olham como quem anda de nariz para cima, como quem desdenha a todos, mas isso é porque dificilmente estou prestando atenção suficiente nos outros a ponto de querer ter essa ou aquela expressão. Meu rosto apenas reflete que eu teno ao máximo fugir da realidade empoeirada de onde vivo e me refugiar no mundo que os grandes espíritos viram e, participando com eles dessa mesma realidade, consigo plasmar um mundo distante desde que me prende a mediocridade de simplesmente dizer que sei sem saber nada.  

sábado, 29 de agosto de 2020

Espúria

Os limites da minha paciência estão sendo testados mais do que o normal nos últimos dias, e olha que sempre me considerei uma pessoa paciente, até mesmo indolente, por suportar doses anormalmente altas de burrice e ignorância por todos os lados. 

Não costumo dizer diretamente o que acontece comigo, senão que prefiro a linguagem poética e simbólica, mas hoje carece-me o perfume das flores, ao passo que tudo que tenho é o cheiro putrefato dos pântanos em que chafurdam a minha família.

Os ditos que moram sob o mesmo teto que eu parecem, há muito, ter perdido o mais básico do senso das proporções. Chegamos ao absurdo de considerar normal uma garota, nos dias de hoje, abandonar a escola antes de terminar o fundamental, sair todos os dias de uma semana chegando bêbada e sob efeito de drogas e namorar uma pessoa que foi presa em flagrante por assalto, tendo corrido o risco de ser morta como os companheiros na ação policial. Minha família, além de não se desesperar com isso que já deveria ser um absurdo pra qualquer pessoa com o mínimo de vergonha na cara, também não se espanta com a possibilidade de aceitar novamente sob o nosso teto tal bandida. 

Ao tentar abrir os olhos desses que parecem cegos ao bom senso e a toda noção de moralidade e decência, ainda sou taxado de intolerante. Isso significa que preferem, claramente, os desmandos de uma criatura flagrantemente depravada cujas obras não são mais do que realizações espúrias e francos testemunhos de estupidez e deficiência de caráter. 

Quando chegamos a esse ponto não há mais para onde descer, estamos abaixo de tudo quanto se pode considerar aceitável, somos já sub-humanos. 

Como então não se revoltar? Tenho muito me controlado para não explodir, ainda que não possa evitar de falar alto, quando parece que o tom normal já não consegue penetrar os crânios abatidos pelo cansaço da mais absoluta indolência. 

Pedido

Alguém que o entenda, que mais você poderia pedir? E mesmo dizendo que o entendo, parece que não consegue me entender. É uma mão única, aquilo que vai não retorna jamais. O homem fica sozinho, a contemplar a torrente a despencar, observando o desgaste das grandes pedras que se dobram ao poder daquela incessante insistência. A visão se guarda na memória, ou seria no coração? As lembranças certamente ficam no coração, mas com o tempo elas também vão se desfazendo, pouco a pouco.  

É uma bela pintura, verdadeira obra de arte plasmada há centenas de anos, não é como as banalidades as quais estamos acostumados a nos refugiar. É, é uma bela visão. Poderia ficar aqui pra sempre, sentindo as gotículas em meu rosto. É melhor do que olhar qualquer outra coisa menos sublime. Mesmo ainda vendo coisas que ninguém mais vê, mesmo conseguindo enxergar para além do véu que nos recobre de medos e incertezas titubeantes, que nos fazem querer fugir dos próprios pensamentos.

Como a folha se desprende das águas e repousa naquele espelho prateado, também seguimos o vento, olhamos as flores, mas também partimos. É, a água cai sem parar, parece que nunca vai ter fim. Mas tudo o que começa precisa de um final, de um jeito ou de outro e, no mais, eu já não sou água a cair sob a pedra, não, sou o rio a fluir para longe, em busca de novas paisagens, de novas terras para inundar. É reconfortante, é a mesma tranquilidade decidida daquele fluxo cujo fim não nos é permitido ver. 

O fim? Algumas dores que nos lembram a vida que continuam, os músculos retesados, rijos a protestar mesmo agradecidos, mas uma parte do corpo ainda sente, uma parte ainda quer voltar lá. Acho que todo mundo ama viajar ou, ao menos, caminhar e sentir novos ares, sentir o frescor, o peito arder sem fôlego, os pés a tropeçar mais ainda com um riso no olhar. 

terça-feira, 25 de agosto de 2020

De uma morte

Clarice Lispector disse, numa entrevista, que ela passava por momentos de grande ímpeto criativo, em que ela conseguia escrever, deixando que as palavras fluíssem naturalmente de dentro de si. Esses momentos eram intercalados por períodos de grande aridez, que ela definiu como sendo uma morte, afirmava que verdadeiramente morria e que renascia quando conseguia escrever novamente. 

Acho que entendi o que ela quis dizer no sentido em que passamos por noites escuras, experimentamos o vazio e disso pouco conseguimos tirar. Daí nos sentimos como que mortos, mas eu também vejo por outro lado e, penso eu, imagino que ela também o percebeu. Quem morreu já não sente mais nada, não sente dor ou alegria, apenas está assim, morto, e é só isso. 

Eu sei bem como é sentir-se desse jeito, não é uma experiência complexa, é apenas uma falta de experiências e, no entanto, continua sendo uma experiência. É ser tomado, não pelo medo ou pela tristeza, mas apenas não ser tomado por nada, não sentir nada, como uma parede branca que não contém nada além da inspiração de alguém surja para fazer dela uma tela, seja pelos rabiscos de uma criança ou pelos traços firmes e decididos de uma grande artista. 

É olhar o céu azul, o mar brilhante, as flores e as folhas, sentir o perfume e os sabores dos doces e, mesmo assim, não sentir nada. Não é exatamente ruim, não é nada. 

É um período ímpar, e alguns dias sou deixado assim, apenas a olhar uma grande tela em branco, morto, sem nada sentir, sem nada dizer. Existir é complicado. Essa tensão entre o sentir muito e não sentir absolutamente nada, entre as vozes que gritam coisas horrendas e o silêncio, não aquele silêncio desesperador antes da tormenta mas um silêncio, apenas isso. É uma forma de definir a morte. 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Em festa

Olhos vazios, contemplando nada em especial, uma parede, uma cadeira... Não sei bem o que está tocando no player, as vezes abro o feed das redes sociais e rolo sem saber o que estou vendo. Não é que seja um daqueles casos em que a mente está tão barulhenta que não consigo prestar atenção em mais nada, pelo contrário, a minha mente está tão vazia que sequer consegue processa o que vê ou sente. Não sente, não reflete, não abstrai, não entende.

As pessoas estão agitadas pra festa. Correm pela cozinha ajustando os últimos pratos que serão servidos para os convidados ou consertam alguns detalhes da decoração. Umas poucas pessoas chegaram mais cedo para ajudar. Eu não sei se deveria fazer alguma coisa, já fui lá fora duas ou três vezes e fiquei perdido. Voltei pro quarto e fechei as cortinas verdes, que banharam o quarto com uma luz meio fosca. 

Faz frio, e eu gosto disso. A chuva já passou mas eu ainda sinto as gotas de melancolia pousando sobre mim. Gostaria de dormir um pouco e aproveitar as temperaturas mais amenas. Não queria ser um chato com ninguém, mas preferia que não houvesse festa. Preferia não ver ou falar com ninguém, afinal não faço tanta diferença assim. 

Fique de frente pro espelho e tentei fingir um sorriso, fracassei. Os músculos do meu rosto se contraíram numa careta de desconforto. Acho que a inexpressividade vai ser a minha escolha pra hoje, desde os parabéns até a sessão de álcool que deve acontecer logo depois. Talvez se eu simplesmente sair pelo portão ninguém dê por minha falta até a noite, mas acho que seria grosseiro de minha parte. Sou forçado a usar uma máscara de contentamento, enquanto escuto banalidades meio a uma comemoração sem sentido e depoimentos de pessoas desejosas de sexo, alteradas pela bebida. Não será nada fácil. 

A noite terminou mais ou menos como começou, com uma irritante dor de cabeça, e a certeza de que prefiro socializar em doses homeopáticas. Acordei cansado, como que de ressaca, mesmo sabendo que não poderia estar de ressaca. Preferi ficar na cama por um tempo a mais, assisti uma aula mais tranquila e voltei a deitar, sem pensar muito. Agora que já chega o fim da tarde eu começo a me sentir um pouco melhor, como se uma pontinha de forças aos poucos fosse retornando ao meu corpo.

É sempre assim, eu sinto que sou sugado pelas pessoas ao meu redor, como se fosse uma esponja, e por isso mesmo meu cansaço parece nunca cessar. Talvez por isso tenha desenvolvido certa fobia de ficar em ambientes muito movimentados, sinto como se nesses lugares a energia das pessoas ficasse uma confusão só, e eu me sinto enjoado, suscetível as mudanças de humor, aos medos, as dores, tudo isso parece demais pra mim. 

Ao menos isso me rendeu uma boa reflexão, ao lado de um amigo. Nós conversamos sobre como temos vontade de partir, recomeçar em outro lugar, tentar uma vida nova, e como o sonho de nos livrarmos disso aqui tudo é algo que tanto nos encanta. Isso é pensamento recorrente por aqui, como me sinto sobrecarregado e oprimido pelo meio em que vivo, e o quanto gostaria de ver coisas novas, viver em lugar que não seja tao feio e tão depressivo, onde as pessoas tenham um pouquinho mais de bom gosto, qualquer lugar onde o mundo não seja tão empoeirado e barulhento. 

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Das sombras que me guiam

Tomado pela escuridão que há em mim, não consigo olhar para a luz, mas isso não me assusta, é essa escuridão que me guia. É essa escuridão que, colocando-me frente a frente com a minha fera, me fez ver o que de anjo também há em mim. 

Mas sinto que tentam invadir essa minha escuridão, tentam violar o meu jardim, e querem que veja a luz a todo custo, querem que veja por onde vão, que siga o mesmo caminho que eles, ainda que todos pareçam estar indo para o abismo. Ainda que na escuridão, estou seguro e minha casa está sossegada. É a agitação do dia que me assusta, é ela que eu temo sinceramente. 

A escuridão já se tornou meu refúgio particular, é aqui onde ninguém entra que eu consigo domar as minhas feras, e contemplar os meus anjos. Não suporto a luz, não suporto o furor que ela provoca, a ânsia ensandecida pelo prazer, pela afetação. A luz cega aqueles que a olham diretamente, e aqueles que me cercam estão claramente cegos. 

É a escuridão feita das cinzas dos sonhos que tinha e que deixei de sonhar. Agora pavimentam a estrada do realismo brutal pelo qual cruzo em minha jornada. É essa estrada que se estende para muito além de onde alcançam meus olhos, e é essa estrada que sinto sob meus pés, enquanto caminho e olho para os céus estrelados. 

Já não consigo mais ser ou agir como antes, eu mudei, o rio não é mais o mesmo e eu também não sou mais o mesmo. Panta Rei. O sorriso comum me parece tedioso, o discurso ignorante me provoca náuseas, aqui não é mais o meu lugar. A baixeza, a vileza, a mediocridade me causam violenta repulsa. 

Sou agora como uma folha levantada pelo ar, voando e rodopiando para longe da arvore, conhecendo novas paisagens, pousando sobre novas terras, sendo banhado pelo brilho distante de outras estrelas que, mesmo longínquas, ainda são a única coisa que brilham em mim. E é esse brilho das estrelas que me guia, uma luz que brilha com mais clareza que a do meio dia. 

Mesmo sabendo que as coisas não deveriam ser assim eu aceito, talvez não seja para sempre, talvez mude de algum modo mais uma vez, mas eu não já não rogo maldições ao destino por ter me deixado só, não, eu entendo que não conseguiria viver com os outros de modo algum. É melhor assim. 

"Quando você conhecer um ser solitário, não importa o que ele te diga, não é porque ele gosta de solidão. É porque ele tentou se misturar ao mundo antes e as pessoas continuarem a decepcioná-lo" (Jodi Picoult)

A visão do homem

Que dizer dos últimos dias, senão que foram excepcionalmente entediantes na medida em que eu pouco sei apreciar qualquer coisa fora do meu cotiano meticulosamente preparado de modo a não ter tempo para viver nada além do absolutamente essencial? 

Minha casa está em clima de festa, mesmo com toda a pandemia e os mais de cento e dez mil mortos. Acho que o medo fez as pessoas preferirem ignorar o perigo e viver normalmente, de modo a não se incomodar em pensar numa coisa que elas não têm poder para mudar. Não os culpo, o homem sempre arranja um jeito de fugir de seus medos, é natural e todos somos assim. 

Isso, no entanto, não justifica de modo algum as ações do homem. 

Infelizmente os meus mecanismos de ação são um pouco distintos. A indiferença é meu refúgio. Mas enquanto exercito a indiferença quanto a situação global, eu não consigo ficar indiferente aos subterfúgios dos que me cercam. Pelo contrário, acabo ficando ainda mais sensível as mudanças e mais receptivo do que gostaria. O fato é que torno uma esponja, absorvendo aquilo que de pior há nos outros, acabo sempre me sentindo sobrecarregado, mesmo que não tenha feito nada substantivamente cansativo. 

É o caso da animação que parece ter sido injetada nas veias de todos. Não consigo sorrir com obscenidades e futilidades da internet, não consigo ver graça na música barulhenta e simplista das rádios e nem ver profundidades de sabedoria naqueles que não possuem mais do que um vocabulário mais ou menos e um conjuntinho fajuto de macaquices que dão aos mais ineptos a aparência de intelectualidade. Não me surpreendo, embora fique ainda muito triste, quando percebo que todos ao meu redor pensar diferente de mim em situações tão essenciais, mostrando-me apenas que eu realmente não encontrei lugar entre eles, senão que ainda estou aqui por um tempo, antes de me mudar para algum lugar distante daqui. 

E talvez eu nunca encontre nada assim, já que tantos em outras décadas tiveram de sofrer na pele o peso da solidão para, de algum modo, conseguirem cumprir aquilo que lhe pedia não o meio em que vivia, mas aquela vontade íntima, aquela tendência ao conhecimento que vem do espanto, e que o homem pode trazer dentro de si, dentro de algumas poucas almas que se predispõe a sofrer para tentar entender alguma coisa. 

Trata-se de uma realidade deprimente, em última análise, ter de contentar-se com a mediocridade real e fugir, não para o mundo dos sonhos que só pode ser causa de desesperança, mas para a companhia das mesmas almas que antes foram chamadas e que agora também chamam. 

Cansativo, assim poderia definir. Ver a baixeza, a miséria, e muitas vezes esquecer o quão grandioso o espírito humano pode ser. É deixar-se engolir por esse oceano de debilidade, desejando apenas o ar da liberdade que fugir desse mundo por proporcionar. Mas muitos não se dão conta disso, e vivem presos a essa realidade que os rodeia, que os aprisiona ao chão como correntes, escravizando-os no pó da terra. 

Tenho preferido a solidão do que a companhia irreal. Tenho preferido ficar só a conversar banalidades, tenho preferido dormir a ter de presenciar certas coisas e ouvir a voz de certas pessoas. Tenho preferido a companhia das músicas e dos meus pensamentos, do que ao barulho do mundo. A agitação do mundo molda o caráter, isso é certo, mas eu não consigo viver em meio a tudo isso. Não mais. 

Não consigo ver tanta confusão, tanta destruição, tanta corrupção. E não é que esteja me colocando acima dessas coisas, de modo algum! Não contemplo a miséria de cima, mas estou no meio dela. A diferença é que também busco olhar pra cima, de modo a sair dela. Acontece que se alguém não tem contato com nada de belo, com nada de bom ou justo, passa a acreditar que tudo isso não existe, e que não passa de uma invenção. É esquecer-se do que o homem pode ser em razão daquilo que alguns são. 

Por isso não olhos mais a feiura das casas e dos muros, não ouço mais as opiniões que apenas destroem e matam, não respondo mais aos questionamentos repletos de vazio, as expressões das coisas que deveriam ficar no coração e que silenciam o que deveria ser dito mas não o é. A visão do homem hoje cansa.

E o sol brilhando forte me parece ser um tipo de combustível pra tudo isso. Não consigo entender essa disposição pra bagunça que as pessoas têm no tempo quente. Eu não consigo imaginar NENHUMA situação em que estar no meio de outras pessoas e fazer barulho seja melhor do que um quarto fresco e escuro pra um bom sono. A visão do homem hoje cansa e eu sou um homem cansado, do próprio homem e da humanidade. 

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Do alto da montanha

Na escuridão segura, pela secreta escada disfarçada eu subi até o jardim secreto, para encontrar a fonte lacrada. Na noite escura eu busco aquele por quem minha alma clama.  Como cervo fugiste, havendo me ferido. Contemplo do alto da montanha o silêncio solitário. Ele não me incomoda, sempre estive só, nada mudou. Idem velle, et idem nolle. As coisas são assim, o mundo é assim. Não há como lutar com um furacão, como não há como lutar contra o destino terrível. Não há. 

 Medo

- Tenho medo de desaparecer.

- Eu posso desaparecer porque não mereço existir.

- Por que acha isso?

- Porque eu sou inútil.

- Eu não sou desejado. Eu sou uma criança inútil. E você não se importa mesmo comigo não é?

- Usar isso como desculpa é a mesma coisa que fugir. O que você teme mesmo é falhar. Você tem medo de ser odiado pelos outros. Tem medo de reconhecer essa fraqueza até pra si mesmo. 

- Como pode me criticar quando faz a mesma coisa?

 - Você tem razão. No íntimo somos todos iguais. 

- Nossas mentes carecem de algo básico.

- E tememos a carência.

- Nós a tememos.

- É por isso que estamos tentando nos tornar um.

- Nos fundiremos e preencheremos uns aos outros.

- Esse é o Projeto de Instrumentalidade.

- A Humanidade não pode viver sem estar cercada uns pelos outros.

- A Humanidade não pode viver sozinha.

- Embora você mesmo seja único.

- Por isso minha vida é difícil.

- Por isso minha vida é triste e vazia.

- Você quer a afeição e a presença física e mental dos outros.

- É por isso que queremos nos tornar unos.

- A alma humana é feita de elementos fracos e frágeis.

- O corpo e a mente também são feitos de componentes frágeis. 

- Então através da Instrumentalidade a Humanidade deve preencher e complementar uns aos outros. Não pergunte porquê, não existe outra maneira de existir.

Na escuridão segura, pela secreta escada disfarçada eu subi até o jardim secreto, para encontrar a fonte lacrada. Na noite escura eu busco aquele por quem minha alma clama.  Como cervo fugiste, havendo me ferido. Contemplo do alto da montanha o silêncio solitário. Ele não me incomoda, sempre estive só, nada mudou. Idem velle, et idem nolle. As coisas são assim, o mundo é assim. Não há como lutar com um furacão, como não há como lutar contra o destino terrível. Não há. Não há mais nada que seja necessário dizer. 

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

De um destino traçado

Como pode o homem ser refém de seus desejos, de seus pecados, de suas paixões de tal modo que nada na sua vida é mais do que apenas uma prisão profunda e escura da qual ele nunca consegue escapar para vir a contemplar a luz do sol? 

Como pode o homem estar tão firmemente preso as correntes em seus membros que já nem se imagina sem elas, já não é incapaz de plasmar em sua mente uma existência em que não sinta sua cativa sina como parte de si, como sua única realidade, como sua única sentença irrevogável? 

Como pode o homem apenas desejar ser livre sendo que a liberdade é algo simplesmente por ele imaginada, nunca vivida em sua plenamente? Como pode desejar viver sem seus desejos mais primitivos, sem suas paixões mais avassaladoras, sendo que ele nunca vivenciou um dia sequer sem sentir-se consumido pelo fogo infernal do querer? 

O homem sempre deseja aquilo que não pode ter. Deseja o frescor da água por experimentar o consumir do fogo que nunca o extingue, mas que o destrói ao mesmo tempo que o mantém vivo, num ciclo sem começo e sem fim, algo como o ourobouros que se mata ao passo que se alimenta de si mesmo, sem que nunca saibamos se isso é vida ou morte. 

E ele já nasceu preso a esse destino, atado a estas correntes, pelo pecado de seus primeiros pais, pela letra escarlate que lançou tão pesada sentença sobre toda a humanidade. Agora o homem, condenado a viver da terra e do suor de seu rosto, condenado a ser consumido por dentro, como brasa abaixo de sua própria pele, busca algo que sequer viveu senão por aqueles de um passado tão distante que quase se perdeu no tempo, busca voltar aquele útero primitivo que perdemos há muito tempo. 

O homem já nasceu condenado a esta prisão. Uma caverna escura e correntes pesadas são sua única realidade. Apenas consegue ver as sombras daquilo que se passa lá fora, imaginando se aquilo é a liberdade, algo que ele mesmo inventou para fugir da única vida que se conhece. Mas isso aprece não existir, não parece alguém tão livre de si mesmo que consiga viver sem atender a esses clamores tão profundos, a essa chama tão sombria, a esse laço de um destino já traçado, como uma corda pela qual manipula seus bonecos o titereiro. 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Grito

O silêncio grita em meus ouvidos. 

O seu silêncio me ensurdece a alma. O peito inchado parece querer explodir, já não pode conter-se mais em si. O que foi dito não pode ser mais calado, a palavra proferida tem o poder de uma explosão, traz tudo abaixo, a tudo destrói. 

Já perdi  sono faz algum tempo, alguns dias, mas mesmo assim eu não quero voltar pra lá, não quero buscar conforto e refúgio num mundo onde bem sei que não há lugar para mim. Há algum tempo que ando sem destino, que vagueio sem ter onde ir, e já nem me preocupo que caminho tomar pois, como dizem, qualquer caminho serve para quem não sabe onde quer chegar. E estou assim, não sei por onde vou, não sei para onde vou, só sei que continuo andando por aí... 

Resignado, contrito talvez, já nem sei mais o que sinto ou como me sinto. O vazio continua aqui, ao mesmo tempo que uma pluralidade de cores e sabores, mas já não são passíveis de serem delineados, é tudo assim tão frágil e sem contorno. O mar que não é de calma parece ter silenciado. E isso é o que há de diferente. 

Me sinto doente, talvez seja a espera pela conversa com o psiquiatra, ou o olhar sonhador da minha mãe que espera que essa consulta me faça voltar ao normal, não que eu me lembre de como é ser normal. Ela me olha com aquele mesmo olhar com que olhamos um cão moribundo, que lambe suas feridas na beira de uma estrada, rodeado por moscas esperando a hora de morrer. É assim que me sinto cada vez que ela me olha, esperando por outro ataque, por outra crise. E é assim que me sinto também, numa estranha calmaria do mar que até pouco tempo atrás estava revolto, ameaçando destruir a terra em seu ímpeto de fúria. Mas acho que é assim, essa é a calmaria antes da grande tempestade, antes da grande turbulência.

Talvez eu sobreviva, como sobrevivi a todas as outras. Mas cada uma delas levou algo de mim. Me tornei um simples náufrago, sem muito o que me apegar a não ser uma pequena tábua donde busco me apoiar a espera da praia, ou da próxima tempestade. Não posso mais nadar, não me restaram forças. As últimas lutas levaram tudo de mim, o que fiz nos últimos dias foi o último suspiro, o último rugido da fera que gritou EU no coração do mundo antes de ser atingida pela lança que vem do alto. 

Já não tenho mais perguntas. Já não creio ser uma injustiça dos céus, como se o destino tivesse algo contra mim. Já não me resta a capacidade de levantar suposições. Resta-me aceitar. Fechar os olhos e deixar as lágrimas rolarem sabendo que nenhuma delas têm o poder de mudar nada. Que minhas lágrimas, meus pés descalços na terra fria não significam nada além disso mesmo.

Nada mais do que isso. 

Mas eu não vou me desculpar, não dessa vez. Não pedirei desculpas por ser quem sou e por sentir o que sinto. Eu não vou fazer isso comigo mesmo mais uma vez. É a última gota de amor própria que me resta, a única coisa que posso fazer por mim agora que já não há mais esperança ou futuro. 

O silêncio, o seu silêncio, grita em meus ouvidos. E talvez eu ainda espere, por ouvir sua voz mais uma vez, antes do derradeiro fim. Não mais do que isso. 

domingo, 9 de agosto de 2020

Velha amiga

Já se sentiu sem valor algum? Já sentiu que ninguém enxergar você, e que todos olham através de você, e que todos os outros são mais interessantes e têm mais valor do que você? Como se tudo o que fizesse nunca fosse o bastante ou bom o suficiente?

Pois eu nunca me senti diferente. Eu nunca me senti importante, sempre me senti como sendo a segunda opção ou, pior ainda, nem sequer sendo opção.

Por mais que me esforce até cair de exaustão, por mais que tente pensar em cada detalhe, me preocupar em fazer sempre a coisa certa, mesmo assim eu sinto não ser o bastante, e não consigo pensar em mim como nada além de um grande fracasso. Se eu sumisse hoje não faria falta alguma no mundo. 

Eu penso meu passado, tento vislumbrar um futuro, e mesmo quando me detenho agora, tudo parece um nada. Eu pareço um nada. Qualquer pessoa parece melhor do que eu. Vejo como os olhos brilham pelos outros, o quanto eu sou opaco aos seus olhos, o quanto mesmo nos meus dias mais felizes pareço cinza e triste aos olhos de todos. 

Por isso eu nunca sou a escolha de ninguém. Mesmo que eu esteja bem diante dos olhos dele, ele ainda não me vê... O que tem de tão errado comigo? Que defeito é esse que ninguém aponta mas que todos viram o olhar para que não vejam? Por que nunca sou eu? Por que nunca pode ser eu? Por que não eu? O que tem de tão errado assim comigo? Será que sou um monstro tão feio assim? Uma garatuja que a todos desperta apenas asco, que a todos desperta o desejo de fugir? 

E então fico com medo, de todos irem embora, de ficar sozinho porque todos encontraram alguém na vida, todos se acharam, todos têm alguém com quem partilhar suas dores, todos têm alguém para oferecer o ombro quando as coisas ficam difíceis, e eu o que tenho? Uma cama fria e lágrimas pesadas do pesadelo onde, depois de muito chamar, ninguém respondeu e eu fiquei só, com os joelhos ralados no meio da escuridão nebulosa. 

Eu faço todas essas perguntas a mim mesmo, como se não soubesse bem a resposta. Eu já havia visto, sabia e fingia não saber. Meu olhar no espelho revela toda vez que procuro com cuidado. Como você é patético, mendigando afeto dessa maneira. Eu tenho nojo de você, tenho vergonha de ser você! Preferia não existir, preferia a morte mais dolorosa a me olhar no espelho e ver criatura tão miserável quanto você!

Como eu odeio você! Como eu odeio tudo o que há em você! Como eu odeio cada fibra do seus ser, cada pedaço podre de carne, cada fio de cabelo imundo que você tanto tenta fazer parecer melhor. Mas nunca vai ser melhor! Seu jeito patético de pedir por afeto, seu jeito afetado de demonstrar carinho, sua incapacidade de encontrar alguém que te queira. Ninguém nunca vai querer você, porque você é um lixo, você é menos do que homem, você não merece amor, você não merece que lhe dirijam a palavra, você nem devia existir!

Esse é meu destino. Desejar aquilo que não se pode ter. Almejar o fogo dos deuses. Suspirar pelo cervo que fugiste, havendo me ferido. Amar quem não pode me amar mesmo se quisesse. Amar quem não pode ficar comigo. Amar sem nunca saber o que é a reciprocidade desse sentimento que dizem ser tão lindo, tão doce, mas que para mim tem o gosto amargo de estar sozinho, de nunca ser o objeto de desejo de alguém. 

E eu queria não saber disso. Queria não entender isso tão profundamente que me curvo ao peso de minha própria verdade, que me corta a carne como aço frio. Queria não ver. 

Por isso eu invejo os ignorantes, aqueles que ignoram a verdade, ou mesmo os que fogem dela tão bem que verdadeiramente conseguem viver como se ela não existisse. Eu não posso me dar esse luxo, a cada momento sinto os ferimentos que ela me causa em meus pulsos, como as grossas correntes que me prendem a um destino que não posso mudar, um fardo que não posso deixar de carregar. 

Mas eu não posso ignorar a verdade, não eu. Não quando ela é exatamente o mundo em que vivo, não quando ela está presente em cada instante da realidade que vivo, não quando ela é tão real quanto o chão que piso ou a mão que seguro, e que logo me solta para ir atrás de outra pessoa. 

Minha sina de poeta é falar do amor sem nunca tê-lo vivido. E depois de anos estou escrevendo sobre as mesmas coisas. Falar sobre o que nunca viveu, que propriedade tenho eu? Mas eu não me detenho no amor, que admito não saber do que se trata, me detenho na solidão, que conheço profundamente, como  a uma velha amiga que se deita comigo todas as noites. 

Recomeçar

Tem dias que eu tenho vontade de ir embora, não como um daqueles desejos apaixonado de simplesmente desaparecer por aí, sem rumo, somente pra fugir de tudo e de todos. Claro, meu objetivo é ainda o de fugir de tudo e de todos, mas eu não quero algo assim., como quem sai a 200km/h na contramão. 

Queria me mudar pra uma nova cidade, uma cidade mesmo, com alguma coerência arquitetônica, que respeitasse o espírito da própria história, onde a beleza não estivesse só nos filmes. Talvez no sul, onde as coisas me parecem um pouquinho mais boitinhas. Não sei, uma grande casa perto do centro, porque gosto de estar perto de tudo, com uma grande igreja onde se celebre a Missa Tridentina, construída para ser exatamente isso, igreja, e não um salão qualquer com algumas imagens e uma mesa no meio.

Fico imaginando, acordar e olhar pela janela e, ao invés de ver um muro grande de alvenaria com partes mofadas pela última temporada de chuvas, ver uma bela paisagem, ainda que sejam prédios e casas, mas uma paisagem que não seja apenas o amontoado caótico de construções sem relação alguma entre si. 

Imagino visitar pequenas casas de café, com o cheiro doce inebriando o ar, enquanto sentado perto da grande janela de vidro eu possa ver as pessoas caminhando lá fora, ocupadas em suas rotinas, negócios e amores. Ver o pôr do sol da sacada, usá-lo como inspiração pro dia seguinte. 

Quem sabe eu consiga morar numa casa bonita, com o chão de madeira brilhante, as paredes limpas, portas fechadas e uma grande prateleira de livros, expostos orgulhosamente como séculos de conhecimento e de viagens inesquecíveis à minha disposição. A grama verdinha, onde de vez em quando eu me sento para sentir o sol em minha pele e ouvir música baixinho. 

Gostaria de andar por novas ruas, ver como as pessoas se comportam, descobrir lugares bons para tirar fotos, algum teatro ou uma confeitaria daquelas que uma fatia de bolo custa quase a parcela de uma casa.

Também poderia me adaptar a algum lugar no interior, não tão no interior a ponto de não ter uma boa internet ou energia elétrica, mas uma casa um pouco mais distante, onde possa sentir o cheiro da terra úmida pelo orvalho da manhã, os pássaros em seu desfile pelos céus, ver o brilhante das folhas, as cores e perfumes das flores. Minha mãe ia adorar rodear a casa e espalhar pelo quintal várias de suas plantas, com a diferença de que agora ela não teria só um jardim no quintal, mas o próprio quintal seria o próprio jardim. 

Me imagino acordando e sentindo o cheiro do café e ouvindo ela remexendo a terra para colocar alguma nova muda, regando com uma mangueira quando ficamos alguns dias sem chuva, entrando em casa com um chapéu de palha com um lacinho vermelho, luvas amarelas e algumas ervas que vai usar para fazer algum chá. 

Mas, acho que de tudo isso o que mais me agrada em sair daqui e ir, não pra qualquer lugar, é justamente a possibilidade de sair desse meio tão doente. Estou cercado de pessoas egoístas, vazias, que não concebem nada no universo além das próprias vontades e paixões, no sentido mais pejorativo que Schopenhauer pôde conceber, pessoas infantis, dispensáveis no mais das vezes. É um ambiente que já não funciona para mim, além de não me encaixar ele simplesmente me deixa doente. 

Gostaria de recomeçar. Se for conhecer novas pessoas escolher conviver apenas com as que não me fazem passar raiva ou querer sumir. Frequentar lugares diferentes, não me sentir sufocado, fechado em mim mesmo. 

Claro que poderia fazer algo disso aqui, mas esse lugar, minha vida aqui, já está gasta não comporta reformas, pede por recomeço. É difícil olhar para as pessoas e sentir enjoo por ter de partilhar da companhia delas, sentir que muitos te tratam como se fosse um moleque ou, pior ainda, como se tivesse obrigação de fazer tudo o que elas não querem fazer. Queria recomeçar. Esquecer os dias que passei em cima da minha cama sem querer ver um feixe de luz sequer, sem querer ouvir a voz de ninguém, sem querer viver.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Cidade

É o início de uma noite de sexta bastante melancólica. Algumas pessoas parecem bastante animadas, e eu até entendo. A sexta-feira é uma libertação da rotina maçante e extremamente opressiva do trabalho semanal. Chefes imbecis, colegas falsos, um trabalho que muitas vezes não chega a lugar nenhum e você fica com a impressão de que seu trabalho é inútil pro mundo, e muitas vezes é mesmo. 

Então um dia que traga consigo a libertação de sair numa noite fresca como essa para encher a cara de cerveja ou vodka barata com os amigos é um momento de alento. Eu entendo. 

Aqui em casa as pessoas parecem animadas, mesmo quietinho no meu quarto eu ainda posso ouvir muitas vozes na sala aqui ao lado. Dó com baixo em Dó, Sol com baixo em Si, Lá com baixo em Lá, Lá com baixo em Sol. Alguém fala no viva-voz do celular, aliás essa é uma tecnologia que me irrita profundamente pois, afora os motoristas que precisam das mãos livres para dirigir e não bater de cara num outro carro ou em algum poste, não vejo necessidade de uma pessoa usar o viva-voz. Meu pai discorda veementemente e, exceto algumas vezes em que ele falava com alguma mulher com quem traía minha mãe, eu nunca o vi falando normalmente ao telefone. 

Nós moramos numa casa pequena. Na verdade não exatamente pequena, de tamanho normal, mas pequena pra quantidade de gente que tem aqui. Eu, mãe, pai, irmã, namorada da irmã, amiga, filha da amiga. É muito, acho que pra qualquer casa com menos de dois andares e alguma possibilidade de privacidade, ou de paz, ou de silêncio. 

A casa foi aumentada pelo antigo dono, a sala, que meus pais usam como quarto, tem cerâmica cinza, enquanto o resto tem um azulejo marrom já bastante desgastado. A cozinha, que faz parte da área que foi aumentada, não tem forro, de modo que faz mais calor lá do que no resto da casa. Minha mãe é a única pessoa que se obriga a ficar lá durante a tarde, cozinhando ou arrumando uma bagunça que nunca está arrumada porque ninguém parece colaborar pra isso, num calor horrendo do qual em sequer passo perto. Detesto calor.

A fachada daqui parece uma casinha de boneca. Alguém achou que seria interessante pintar as paredes de um creme e as janelas e portões de rosa choque. Aqui dentro reina a mais absoluta confusão, a sala apertada num corredor depois que meus pais se apossaram da sala de verdade com a desculpa de que têm coisas demais. Móveis em cima de móveis e não é possível ir de um quarto até a cozinha sem tropeçar em alguém e ser obrigado a pedir licença. Prefiro ficar no meu quarto. O banheiro, pequeno e escuro, o único da casa, é pouco pra tanta gente.

Aqui faz muito calor, na maior parte do ano faz calor e é bastante seco. Estamos no meio do cerrado. Durante alguns meses é frio no início da manhã e fim da tarde, congelando de madrugada, e bastante seco. Lábios rachados não importa a quantidade de balm labial que se use. Narizes sangram. Eu me irrito. 

Não gosto muito de sair de casa. Preguiça. E também uma boa dose de desencanto. O país todo, com raras exceções de algumas cidadezinhas que ainda conservam algum resquício de harmonia arquitetônica, é uma grande aberração visual. As paisagens naturais salvam, mas eu detesto mato, a menos que seja pra fazer sexo. De qualquer jeito, nada aqui faz sentido. As pessoas pintam as casas com cores aleatórias e nada parece dialogar com o todo. Aqui na rua tem uma casa amarelo gema e poucas casas a frente um grande muro bem mais alto do que todos os outros esconde uma hidromassagem onde o dono sempre faz algumas festas, daquelas que se escuta as vozes das mulheres de longe, aparentemente nenhum homem. 

Cada uma das esquinas dessa cidade são uma declaração da absoluta decadência cultural desse povo. Não que seja tudo cinza ou sépia, mas tudo parece coberto por uma camada de poeira que nunca desaparece não importa o quanto se limpe. Povo que acha que churrasco com sertanejo universitário estalando no volume máximo é o melhor que se há pra fazer da vida. Não conhecem nada para além disso. As pessoas que vão a teatros ou passeiam em parques são uma invenção dos filmes americanos. 

Nas avenidas comerciais a coisa é ainda pior. Placas desbotadas entre outras em cores chamativas e letras garrafais se espremem em qualquer lugar que tenha algum mínimo espaço. Salões de beleza com nomes clichês, farmácias (muitas farmácias, o que diz muito sobre o lugar) e uma distribuidora de bebidas a cada dois quarteirões, as vezes menos. A necessidade de fuga por meio do álcool é presente, real e recorrente. 

Poucas árvores, se tivesse algum poder sobre isso pelo menos encheria as ruas de Ipês, já que parece ser a única coisa que realmente floresce por essas bandas do centro-oeste. E eu sonhando com flores de cerejeira, com suas pétalas voando e caindo sobre a água de pequenos lagos e canais de água cortando a cidade, de onde podemos ver o pôr do sol brilhando no espelho abaixo de pequenas pontes ligando um bairro a outro. Bom, tem muitos buracos com água, e todo ano a dengue leva muitas pessoas pro hospital.

Quase todo mundo se conhece, de um jeito ou de outro, e parece que todos estão ligados de algum modo. Tem algumas pessoas famosas, aliás, com muitos seguidores nas redes sociais ou que cumprimentam alguém na rua a cada três metros. Quase todos na minha idade parecem já ter namorado, e a troca de casais é algo recorrente. Todo mundo já se pegou e não me impressiona que essas pessoas achem que fazer sexo é a outra melhor coisa que se tem pra fazer na vida por essas bandas. E é bem provável que seja mesmo. Ah, já ia me esquecendo, além de bares e igrejas protestantes também alguns campos sintéticos, onde meninos bonitos correm suados e ofegantes em shorts curtos e colados no meio de meninos não tão bonitos assim. 

Algumas pessoas já saíram do país, é claro. Não consigo entender como alguém pode visitar a Europa e não morrer em depressão ao voltar pra cá. Nunca saí daqui e a depressão é minha única realidade diária, desde o amanhecer até quando eu me deito.

Não sei por qual razão resolvi dar esse breve retrato de minha cidade, e de minha casa. Influência do livro que estou lendo, Todos nós amávamos caubóis, que recebi de uma das assinaturas de clube do livro que eu tenho. Não conheço mais ninguém que tenha lido. 

Na quietude do meu quartinho, tentando ignorar o volume exagerado da televisão e das vozes que tentam falar mais alto do que a televisão, eu escuto o álbum de um cantor tailandês que eu nunca tinha ouvido falar, baixando toda a discografia pelo simples fato de que ela estava disponível quando entrei no blog de compartilhamento de arquivos atrás de alguma coisa nova pra ouvir. Embrulhado, com meias nos pés, eu acho que vou tentar terminar o livro, e quem sabe entender o significado por trás da jornada das personagens e, quem sabe, o significado para essas palavras ou para a minha vida. É, talvez não chegue a tanto.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O observador

Esse frio do início de agosto tem sido bastante agradável, tenho dormido mais cedo e acordado mais tarde, sem me preocupar em tirar longas pausas durante o dia, entre uma aula e outra ou após um artigo particularmente complexo de análise política que eu de fato não entendi, mas que apenas li para tentar forrar um pouco o meu substrato mental com algum conteúdo de fora de minha área de domínio. Área esta que eu nem sequer sei qual é, de qualquer modo. 

Tenho estado satisfeito com os progressos na leitura que tenho feito. Passei alguns meses sem conseguir sair de um único livro, o que é irônico comparado a quantidade de livros que eu compro com frequência, que já não encontram outra forma de serem guardados senão empilhados nos móveis já abarrotados de títulos que vão desde um grande dicionário de liturgia a clássicos da literatura juvenil, além, é claro, de algumas obras de filosofia e uma porção de livros que me foram enviados pelos clubes de leitura justamente pelo fato de que não sabia por onde começar a ler e que tenho uma certa quedinha por coleções bonitinhas expostas na estante. Um dia ainda farei uma grande prateleira, sob medida, num cômodo destinado unicamente a guardar livros e alimentar meu desejo de ter uma pequena biblioteca de grandes títulos. 

Um sonho bobo talvez, pequeno até se considerar o desejo de tantos outros ou até mesmo o que já realizaram ou ambicionam realizar. Fico feliz em ver o quanto algumas pessoas cresceram. Uma amiga minha trabalha na emergência de um hospital, é fisioterapeuta, e fico imaginando como deve ser presenciar aquelas cenas tipo as de Greys Anatomy de salvamentos na sala vermelha. 

Eu nunca fui dado a grandes ambições. Desde que me recordo muito me agradou a posição de professor, um nicho adequado a alguém como eu, sem o dom da criação mas dotado do dom da reprodução, igualmente necessário, afinal todos que aprenderam alguma coisa foram ensinados por um professor. Acho nobre. 

A reprodução é algo que faz parte da minha vida. Reproduzo conhecimentos que aprendi de outros. Como músico eu canto peças que foram escritas por outros, e me encanto com os meus amigos, que possuem uma potência criativa belíssima também. Mas não os invejo. Embora todos se recordem de Beethoven mas nem todos se lembrem do maestro que conduz as suas sinfonias quase duzentos anos depois é esse maestro que me permite contato com o mestre alemão. Ser professor é ser ponte. Como músico também sou ponte, entre quem ouve e quem escreveu as peças que tanto amo. Transmito aos outros, seja na música ou na sala de aula, aquilo que de algum modo me encantou. 

Talvez seja um criador aqui nesse espaço. As palavras que escrevo são minhas, mesmo que inspiradas por outros, diga-se, mas ainda são minhas. São o reflexo de minhas impressões, são minhas expressões.

Esse tema é algo que me chama muito a atenção. Desde muito novo percebi o abismo entre as minhas impressões e as dos outros que me cercavam. Lembro de certo episódio, lá pelos seis ou sete anos, quando me enfureci com o fato de que todas as minhas roupas eram pretas ou azuis, e que eu sempre tinha de andar com as mesmas combinações de calça e camisa enquanto minha prima, que morava na casa colada a minha, tinha a sua disposição um leque enorme de opções. Preto, azul, rosa, amarelo, branco. Sandália, salto, sapatilha, tênis. Calça, shorts, regatas, com alça, sem alça, vestidos, saias. Isso me incomodou. Mas "menino se veste assim" foi a única resposta que consegui, além das ameaças de meu avô que não gostou nem um pouco de ouvir aquela indagação de tamanha injustiça.

Demorei muito tempo pra entender que tinha outras opções, e os meus pais ainda acham estranho. Posso preferir preto e azul, mas abomino qualquer coisa que faça parte da gama de "roupa social" desde que tentaram me obrigar a usar apenas camisetas com estampas religiosas e cabelo penteado bonitinho pro lado, como todos os outros garotos que iam a missa. Continuo indo a missa, quase todos os dias, mas é preciso uma tortura pra me colocar dentro de uma roupa social. Prefiro as batas, as calças largas, muito tecido. A vestimenta oriental é meu sonho mais elevado. Gosto das tatuagens do cabelo um pouco grande, se fosse bom deixaria ainda maior, das unhas pintadas. 

E as diferenças de percepção não pararam aí. Comecei a gostar de anime, coisa de menino que não joga bola na rua. Animes sempre foram uma inesgotável fonte de inspiração para aventuras fantásticas que gosto de imaginas todos os dias, de portas fechadas, quando consigo fugir deste mundo para qualquer outro lugar onde poderes sobrenaturais sejam tão comuns quanto meninos gostarem de futebol. Eu, aliás, sempre odiei jogar bola, tanto que sequer cheguei a aprender. 

Eu gostava dos personagens delicados, que justamente não se pareciam nada com os meninos que eu conheciam, todos iguais de algum modo. Shun de Andrômeda, o viadinho, Kazuki, o viadinho dos fios que namorava o viadinho das agulhas, Angemon, o digimon do moleque que com certeza ia ser viadinho e que quem gostava ia ser viado também sempre foram meus favoritos. 

Nunca consegui gostar da mesma música que ouviam também. Em casa, sertanejo. Até hoje tenho certa ojeriza por esse gênero, embora conceda algumas exceções quando estou bêbado ou demasiado apaixonado. Os meninos (sic!) gostavam de rap, nunca achei mais do que barulho e gente falando rápido, bizarro. Gostava de coisas mais melodiosas, que falassem de coisas diferentes, e demorei muito pra achar algo que me agradasse, e isso se mostrou outro abismo de percepções.

Meu mundo se abriu para um universo cor de rosa quando conheci os primeiros musicais, e eu decorava as músicas com uma velocidade alucinante, até hoje gosto bastante. Acompanhada dessa descoberta eu fui parar do outro lado do mundo, onde estou até hoje. Primeiro a música japonesa, trilha dos animes, depois a coreana, chinesa, tailandesa e que, hoje, já não tem fronteiras. High School Musical, Camp Roch, The Chettah Girls, Ikimono Gakari, Kiroro. Ali eu me achei. Mais tarde conheci também a música clássica, outro universo que me elevou ainda mais aos céus, e ainda mais distantes de todos os outros que, ao meu redor, ainda preferem o sertanejo repetitivo das rádios ou rock barulhento de viciados que já morreram de overdose ou que hoje cultivam uma pose de jovialidade que me faz sentir pena. Mozart, Verdi, Tchaikovsky são alguns dos compositores que me emocionam e que fazem parte da trilha sonora da minha vida. 

Crescendo um pouquinho eu fui entendendo que minhas percepções em relação aos meninos da minha idade só iam aumentando, não vivíamos no mesmo mundo e, no entanto, eu não conseguia parar de olhar para eles com certo ar de encantamento, encantamento que eu não entendia mas que aprecia muito com o mesmo encantamento com que eles olhavam para as meninas. 

Passei a ser mais observador, afinal não tinha muitos amigos para conversar ou brincar, e comecei a reparar neles. O cabelo bonitinho, um sorriso fofo, um corpo mais ou menos definido. Aos poucos fui percebendo que minha sexualidade também era diferente, da maioria. Naquela época nem me passava pela cabeça que muitas pessoas além de mim sentiam o mesmo. 

E então me vi assim, gostando de tudo que os outros não gostavam e, ainda assim, gostando dos mesmos meninos que eram tão diferentes de mim. Não demorei a me apaixonar pela primeira vez por um menino. Coisa de escola. O garoto popular e eu, o nerd que tirava boas notas e que ele nem sequer sabia o nome. Depois, outro menino que, mesmo esse sabendo bem quem eu era, também não sentia o mesmo por mim. E depois outro, esse também não se interessava, era hétero. E outro, que não passou de algumas poucas conversas na internet. E outro, que estava confuso mas acabou preferindo namorar uma garota e nunca mais falar comigo. E outro, que me procurou porque tinha brigado com a namorada mas não queria nada sério com um menino. E outro. E outro. E outro. E outro. E outro. 

E hoje, com vinte e cinco anos ainda não achei alguém que não parecesse estar do outro lado de um abismo, olhando pro céu enquanto eu olho pra baixo, com medo de cair. Parece, eufemismo meu, que tenho uma quedinha por garotos que estão do lado de fora da minha caixinha de possibilidades. Caixinha essa que parece vazia, diga-se. 

Experiências à parte, o primeiro namorado, aquela paixão avassaladora que durou apenas uns poucos meses. A primeira vez, o beijo com sabor de skol beats azul. Depois alguns outros, um que não sabia beijar ainda, outro que beijava muito bem. Um que não queria nada sério, eu também não. Um que não soube lidar com um relacionamento que também durou poucos meses. Alguns beijos nos amigos durante as festas, mais uma vez com gosto de bebida. Mas nenhum deles vivia nesse mundo.

Na internet a coisa não mudou muito. Ao menos conheci pessoas que gostam das mesmas coisas. Mas ainda assim não me achei. Tem o fandom de kpop, o fandom de BL, os apreciadores de música clássica, os colegas do curso de filosofia, o pessoal da Igreja, mas sei lá, em todos os lugares parece que eu vejo um mundo diferente. 

Assim eu continuo aqui, escrevendo na esperança de ao menos essas palavras possam me entender de algum modo. Talvez algum dia encontre alguém que as entenda ou quem sabe, eu esteja mesmo apenas destinado a ver as coisas de um jeito um pouco diferente da maioria. Talvez eu seja, na verdade, um observador, um observador que silenciosamente apenas contempla o mundo ao redor e que registra essas impressões sem fazer parte dele na realidade. 

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

No espelho

As vezes a imagem que vejo no espelho me choca. Custo acreditar que sou eu mesmo a me fitar, com olhos alucinados, o reflexo. Não sou como o Narciso que se apaixonou pela própria imagem que se mostrou na fonte, antes disso, a reação que me aparece é de ojeriza, um horror que me toma o ser ao ver esses olhos escuros e profundos como um abismo. 

Eu me vejo, muitas vezes mas especialmente em dias como esse, como um animal. O cabelo desgrenhado, desde que cortei ainda sem uma forma definida, a barba longa, com falhas em algum ponto, crescendo sem limites em partes do rosto que não deveria crescer. As sobrancelhas unindo-se no cenho. Há dias que não faço a barba ou tiro o excesso de pelos no rosto. E quanto mais me olho no espelho, menos tenho vontade de me cuidar. É um ciclo vicioso. 

Tenho sido disciplinado, no entanto, com os cuidados faciais. Duas vezes por dia lavo o rosto, hidrato com meia dúzia de cremes, séruns e pomadas e, ainda assim, parece que a cada dia eu estou pior. As olheiras não diminuem, o cansaço parece se mostrar com mais peso, puxando para baixo cada fibra de meu rosto. Meus olhos estão frios, já não vejo traços daquela galáxia brilhante de outrora. Parece que os cuidados externos não são suficientes se no interior tudo parece desandar. 

Olhando bem de perto cada pequenino defeito do meu rosto eu consigo entender a resposta que dei para aquela pergunta que meu amigo fez outro dia: como posso ainda estar só? Acontece que cada pequeno poro dilatado, cada pelinho fora do lugar, tudo isso grita ao outro não apenas um exterior definhando, mas um interior já apodrecido. Ninguém há de querer aproximar-se de alguém que, virtualmente, já desistiu de viver, e que vive um dia após o outro apenas para não decepcionar, ainda mais, as poucas pessoas que ama. 

Jã não vejo figura humana, senão que vejo um monstro a gritar numa grande careta de ódio, de desespero e ânsia de algo que nem mesmo ele sabe o que é. Vejo algo que já foi humano, mas que agora é mais monstro do que homem. Uma fera, a fera que gritou EU no coração do mundo, e que agora grita pela própria existência prenunciando a própria extinção. 

De que adianta uma inteligência acima da média (segundo eles). De que adianta despojamento e estilo próprios se, na realidade, me falta disposição para levantar da cama e pegar água? De que adianta ser engraçado (novamente, segundo eles) se por dentro tudo o que eu sinto é um vazio imenso, um niilismo absoluto que me fez perder toda e qualquer perspectiva de vida? 

É aquela história da máquina de refrigerantes com a plaquinha dizendo "a luz de dentro apagou mas eu ainda funciono." É exatamente isso que acontece comigo. Estou funcionando no automático. Acordando e ligando as coisas não por vontade própria, mas porque é isso que tenho que fazer. E assim eu vou vivendo, um dia após o outro, sem que nada possa fazer brilhar novamente a luz que se apagou dentro de mim. E isso não é vida, é um arremedo. Apenas subsisto para que alguns poucos não sofram tanto com meu fim. Não quero que minha mãe sofra, já que a outra filha já consegue sozinha esgotar toda uma cota de desgostos para duas ou três vidas. Não quero que ela chore por mim. Mas enquanto isso, eu continuo, vagando por aí, etéreo, lúgubre, sem destino, apenas uma casca vazia, um sopro do que um dia já fui. Uma boneca de trapos, que vai de um lugar a outro sem vontade própria. 

terça-feira, 4 de agosto de 2020

O Desespero Humano

Milhares de ideias pululando em minha mente desde que decidi, algumas horas atrás que escreveria, que colocaria para fora o que nos últimos dois ou três dias tanto tem pesado em mim. Mas, ao ver a página em branco diante de meus olhos as ideias simplesmente desapareceram, voando para um céu distante, inalcançável para uma serpente que rasteja pelo chão sonhando em conquistar os altos céus. 

Resta-me o despejo, dizer aquilo que me vem a cabeça, como as torrentes poderosas de uma tromba d'água violentíssima que destróis e arrasta com violência tudo o que vê pela frente. 

Sinto-me péssimo. Não só a visão do homem me causa repugnância como a simples memoração da existência de uma pessoa que está no quarto me enche de uma cólera, de uma fúria incontrolável que, no entanto, não pode explodir sem causar danos irreparáveis. 

E tudo retorna ao nada.

Não aguento mais o caos da existência. As pessoas incapazes de conviver com o silêncio que buscam na loucura total a fuga para os seus medos. Eu olho tudo isso com um único julgamento: vivo entre animais! E mesmo que eu também seja levado pelos meus instintos luxuriosos e primitivos ao mesmo estou consciente desse processo. Os outros não. Entregam-se aos prazeres mais imundos como se fosse o ápice do espírito humano. O desespero humano, doença até a morte, é a tentativa de fugir do chamado do ser pela sua própria realização no plano da vida terrena. Tudo que vejo são animais, feras primitivas.

Esse ambiente me causa repugnância, e não consigo olhar para ninguém sem sentir um gosto de vômito subindo-me pelas entranhas, ansioso por fazer jorrar tudo que me destrói. Mas isso é impossível. Meu sangue já verteu-se sangue, mas como não posso fazer meus inimigos respirarem dessa névoa sangrenta eu sou o único que padece de sua potência assassina. 

A destruição em mim não encontra precedentes. Eu penso na minha vida, na casa onde moro, nas pessoas que aqui vivem, penso no meu futuro, no que sou capaz, no que já realizei e sou incapaz de vislumbrar outro futuro senão o da miséria existencial absoluta. O progresso material nada tem a ver com isso. Existencialmente me encontro sem nenhuma sombra de esperanças ainda que ostente um estilo de vida completamente aceitável e até mesmo confortável. 

Mas o que é a causa de tudo isso? É estar preso num meio incapaz de me ajudar no crescimento, seja intelectual ou espiritual ou que, pelo menos, o dificulta para muito além das minhas capacidades. É ver que o ápice da realização humana é perder os sentidos em doses maciças de álcool, dançar impropérios e gritas obscenidades como se o lado mais baixo e sujo do homem fosse o que ele tem de melhor. E a absoluta falta de vontade de querer mudar, evoluir, crescer e conhecer novos mundos, realidades mais elevadas, ou de simplesmente de parar de chafurdar no lamaçal malcheiroso da miséria em busca de pedras preciosas que não estão ali. 

Essa é a realidade do meio em que estou: deprimidos todos pelo meio opressivo, feito, que a tudo que é bom, justo e verdadeiro declarou guerra, vê-se desacreditado que o mundo pode oferecer algo de melhor. Presos nesse provincianismo maldito, que os faz pensar que tudo que há pra se ver e experimentar no mundo é o pouco que conhecem. Lamentável é pouco, essa situação me causa asco. 

E então me deparo com o meu desespero humano, no sentido proposto por Kierkegaard. Enquanto tento me tornar eu mesmo eu encontro abismos e um número imensurável de obstáculos. Não consigo ser eu, senão que eu não tenho sido mais do que uma massa disforme e confusa de sua própria existência. Meu espírito deixou-se abalar por esse meio. Não sou Sêneca ou Marco Aurélio. A depressão se apossou de mim. Não consigo ver tudo e todos como um meio de santificação. É tudo dor, horror, é tudo um mundo selvagem demais para eu entender, selvagem demais para fazer qualquer coisa além de sobreviver precariamente. 

E tudo começa a desmoronar.

Estou irritado, com tudo e todos, e já não consigo olhar sequer nos olhos dos que vivem aqui sem que sinta do profundo do meu ser ânsias de vandalismo. Não quero conversar, não quero sorrir. venho magoando, sendo grosseiro, com aqueles que sinceramente vêm ao meu encontro, aqueles que mais amo, que se preocupam comigo, que me perguntam como estou. E u me sinto culpado, me sinto culpado por não ser doce e paciente como eles mereciam. Me sinto culpado por não querer vê-los. Me sinto culpado por ver que eles querem assumir comigo o que sinto, mas eles não sabem que podem acabar sendo envenenados por meu próprio sangue.

E eu já não possuo equilíbrio suficiente para separar as coisas, está tudo uma confusão terrível dentro de mim. Como se pegasse um punhado de pedras e as jogasse para o alto. O som dessas pedras batendo no chão frio é a única coisa que consigo abstrair de meus pensamentos. Me tornei monstro, esperando no escuro a quem devorar.

Noutros momentos me vejo desejando alguém ao meu lado, talvez isso seja falta daquelas tantas experiências que nunca vivi. Mas isso me parece tão distante quando eu estou da grande Aldebaran, na constelação de touro. Ela brilha com milhares de vezes mais poder e imponência do que o nosso Sol, mas está tão distante que não sinto seu calor, senão que sinto apenas aquilo que se dizem dela. A solidão é minha cruz.

O que está feito está feito, me sinto tão mal
O que uma vez foi alegre agora é triste
Eu nunca vou amar novamente
Meu mundo está acabando...

Quero apenas ficar quieto, sozinho, esperando até que comece a definhar de fome, esquálido sobre a cama, aguardando o fim, que parece ser a única liberdade absoluta capaz de me libertar desse niilismo maldito que me foi imposto.

"Porque eu quero morrer.  
Eu quero desesperança. 
Eu quero voltar ao nada.*

É assim que acaba. Esse é o único final possível.

~

NOTAS:

- Texto em negrito retirado de trechos de KOMM, SUSSER TOD, de ARIANNE, trilha sonora de The End of Evangelion. 
- *Hideaki Anno do penúltimo episódio de NEON GENESIS EVANGELION - O Fim do Mundo - Você me ama?

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Berserker

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Humanos miseráveis, sorrindo e gritando por aí como se fosse algo de importante por sobre a terra, não passam de simples animais, movidos pelas suas paixões mais baixas, pelos instintos mais primitivos. Não se diferem dos macacos que balbuciam ou de feras que se atracam no mato. Bestas, é isto que são! 

E ao ver homens tão baixos, que parecem não ter recebido a graça da educação humana, capaz de elevar um pouco essa baixeza onde se encontra, ao ver homens assim eu me encho de cólera. Vejo os homens bradarem aos céus clamando por vingança. Seres pequenos que, dentro de si, guardam grandes demônios. Olhe-se no espelho, no fundo de seus olhos e veja se há algo mais do que um imensurável potencial destrutivo dentro de si, um berserker pronto para partir ao meio o primeiro ser que cruzar o seu caminho. 

A minha carne queima como brasa e o meu sangue ferve de tal modo que verte-se em veneno. Uma sombra se aproxima de mim e me abraça, e posso sentir os tentáculos gelados da morte ao meu redor. O ódio aos poucos me consome e, olhando ao meu redor, eu começo a desejar que o mundo todo queime e se torne cinzas. 

Como podem ser tão baixos? Como podem trazer consigo uma racionalidade atrofiada e se comportarem como animais? É a isto que reduziu-se o homem? Eu tenho nojo do homem, a visão do homem me cansa. Estou cansado do homem. estou cansado desse animal que chafurda na lama em busca de um sentido para a sua existência, e sequer tem a coragem de olhar aos céus, buscando acima dele aquilo que não pode encontrar no lamaçal malcheiroso e pútrido de seus próprios sonhos caídos.

Antes fossem todos extintos, sem deixar sequer vestígios de sua passagem por esse mundo, não mais do que uma memória distante de seres inferiores que apenas sabiam cultivar o horror e o ódio entre os seus. Um ponto negro na história da existência. Um lapso errado da criação. 

Como pode o homem ocupar lugar tão dileto perante Deus? Como pode Deus se dedicar tanto a seres tão mesquinhos, tão horrendos. O homem não merece amor, o homem não merece sequer uma segunda chance. O homem merece apenas a dor, o sofrimento e a morte, algo que seja capaz de expurgar a maldade que se encontra em suas entranhas. O homem não é apenas o lobo do próprio homem, o homem é também a causa da destruição de todo o mundo, deixando seu rastro imundo por onde quer que passe.

O homem não merece perdão. O homem merece a morte, a desesperança. O homem deve voltar a inexistência, ao nada, ao menos voltar aquele útero primitivo que perdemos tempos atrás. As almas que se afobam devem preencher umas as outras, tentar atingir um grau de perfeição, algo que fuja a intrínseca malícia do coração do homem. 

Não há outro final possível. Não há outra forma de existir. O homem tornou o universo hostil e a humanidade tornou-se ela mesma inviável. 

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

(Augusto dos Anjos)

domingo, 2 de agosto de 2020

A pior coisa

A verdade é imposta ao ser, é soberana, não permite fugas, muito embora permita ser mascarada. Não pode ser negada completamente, senão que sendo negada na esfera social ela continua sendo percebida na esfera real, ainda que a pessoa já esteja tão viciada em cacoetes mentais, vícios de linguagem, que não consiga mais expressar essa verdade, mesmo que ela esteja perdida numa língua viciada, nos pensamentos de alguém que já nem sabe quem.

"Eu sou a pior coisa que poderia acontecer na vida de alguém."

Ainda que superposta de palavras doces ou de negação essa afirmação continua sendo verdadeira. E o que a torna verdadeira? Não é uma construção lógica, ou um argumento ontológico, mas uma experiência real, que mesmo na esfera puramente argumentativa pode ser contestada mas na realidade é tão verdadeira quanto os rasgos dos nervos e músculos causados pelo aço frio de um inimigo, cravado com força no peito. 

Ela se prova na experiência real, não no mundo dos entes de razão de segunda intenção. Ela se prova nas palavras mesmas daqueles que tentam impugná-la. E o que a torna tão real? Todos colocam um limite a minha presença, esse limite é a linha que separa o melhor do pior, é aquilo que está entre a palavra dita e o verbo vivido por cada um que já esteve em contato comigo. Se prova e se torna real nos olhares, nos reflexos de negação, na ojeriza, no horror, na distância. E mesmo não fazendo nenhum sentido do ponto de vista lógico ou racional, ela ainda é mais real do que qualquer silogismo aristotélico, tão visível quando uma montanha, tão palpável quanto uma rocha, tão destrutiva quanto a lâmina mesma que resga a carne e rompe a alma numa constatação gélida como aço frio. 

O que mais pode provar essa afirmação? 

Estou escrevendo essas palavras na solidão do meu quarto, numa noite escura e fria, enquanto alguns me abandonaram, outros me trocaram pela pior companhia possível (o que por si só já validaria essa afirmação) e outros tentam impugnar a razão com argumentos vazios, ao passo que algo dito a partir da realidade só pode ser contestado pela mesma realidade em que está. E a constatação que me permite essa realidade é justa e simplesmente essa. A realidade grita, de uma forma impossível de não se ouvir que sim, eu sou a pior coisa que poderia acontecer na vida de alguém e a maior prova disso é que todos só me aceitam por perto até certo ponto, ao passo que me rechaçam na primeira oportunidade, que me empurram para longe. 

Seus braços, lábios cerrados, são mais verdadeiros que as palavras de seus lábios. Assim como a palavra 'cão' não morde também o amor simplesmente dito não ama, senão que busca apenas mascarar a verdade que, uma vez mascarada pode ser disfarçada, mas nunca deixa de ser ela mesma uma realidade soberana, constatada nem que seja no mais íntimo do ser, constatada no desespero humano, na doença até a morte que é a da percepção de verdade tão fria.  

As lágrimas que escorrem pelo meu rosto são tão reais quanto essa verdade. 

Um amigo me disse que não sabia qual era a razão de eu ainda estar sozinho. Disse que me achava bonito e inteligente ao ponto de alguém se interessar sim por mim. Mas a resposta a esse questionamento está numa decisão do destino mesmo, em algo que não posso provar por meio de argumentos mas que a própria experiência mostrou a mim de modo inegável: o destino não quer que eu conheça a companhia. A conheço apenas por analogia, apenas pela concepção de que não é isso que vivo e que, portanto, vivo apenas aquilo que o destino reservou para mim, do alto de seu trono onipotente: a solidão total. Mesmo rodeado de amigos e parente, condenado a ser sozinho, o único entre os pares. Aquele destinado a viver o que lhe reserva o girar da roda do destino, aquele a quem o mesmo destino cravou com força sua espada caída do céu. 

"Porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não teriam uma segunda oportunidade sobre a terra."

Monstro, aberração, arremedo de ser humano condenado a vagar pela terra sem achar companhia, sem ter onde reclinar a cabeça. Condenado a viver para sempre, impossibilitado de voltar aquele útero primitivo, consciente do vazio que existe no coração do homem desde o seu primeiro pensamento. 

Eu sou a pior coisa que poderia acontecer na vida de alguém. 

sábado, 1 de agosto de 2020

Sobre coisas estranhas

É estranho, planejar todo um dia com os amigos e de repente, não mais que de repente, sentir toda o ânimo que tinha se esvair pelos dedos, como se evaporassem por entre cada um de meus poros. É estranho acordar e me sentir triste por não ter nenhuma mensagem de bom dia, ninguém dizendo que sentiu minha falta ou que pensou em mim enquanto eu dormia. É estranho pois, no dia seguinte, me sinto sufocado ao ver o celular abarrotado de notificações, estranhos, conhecidos pedindo favores, e então sentir vontade de simplesmente desaparecer. É estranho sentir-se sozinho mas, ao mesmo tempo, não querer conversar ou ver ninguém. É estranho, passar a semana inteira esperando pela Missa de Domingo e, no sábado a noite ser tomado pelo desânimo que mergulhou o meu corpo num torpor terrível, dentro do qual eu não consigo ver nada além de uma névoa e me obscurecer a visão, a me sugar as forças, a me deixar inerte, no silêncio, sozinho e, mesmo experimentando o gosto amargo da solidão ainda sentir vontade de me isolar ainda mais nos recessos profundos da minha mente. É ser tomado por uma tão grandiosa desesperança com relação aos homens, ao mundo e a existência, que o simples fato de sair do quarto e viver torna-se um suplício. É querer sumir, evaporar, e ainda assim ser lembrado, ser querido, ser amado. Pode ser apenas a expressão de uma necessidade patológica de atenção, não sei. Conhecer, conviver é, não só doloroso e cruel, mas tão desgastante que parece que criei certo trauma do outro, trauma do homem. De um lado há o desejo, provocado pelos instintos primitivos de medo e carência, do homem, e por outro há o que se aprender durante a dura experiência humana. A constatação de que o universo é hostil e a humanidade é inviável. É como um prato, que ao ser preparado se mostra aromático, belo, e potencialmente saboroso, mas que no fim torna-se insosso, difícil de engolir. 

Antídoto


"O mundo moderno quer criar uma espécie de antídoto para essa ameaça que é Deus e a Beleza, e o resultado não poderá ser outro que não a feiura e a negação de absolutamente tudo. Vamos então conceber o nosso mundo como horroroso para podermos dar-nos ao luxo de acreditar que temos uma defesa, um escafandro contra aquela súbita surpresa, aquele temor e tremor de acordar diante daquilo que realmente somos. E então passaremos o tempo empilhando latas no supermercado e tentando fazer disto arte."

(Bruno Tolentino)

Essa pequena reflexão do amigo de meu mestre é algo que eu consigo constatar quase que diariamente, em simples ações como abrir qualquer página que fale sobre arte na internet. Há uma completa inversão de valores que tentam empurrar goela abaixo de todos a concepção esdrúxula de que tudo pode ser arte e de que a beleza é algo tão subjetivo que absolutamente qualquer coisa pode ser considerada bela. 

Não é mais do que um abortivo essa concepção, uma afronta que brada aos céus clamando pelo dies irae, uma fuga da realidade que se interpõe a nós com uma violenta verdade, mas que negamos no íntimo e nas expressões, correndo para longe daquele maravilhoso, porém assustador, temor que sentimos diante da imensidão do mundo e da complexidade da nossa própria existência. 

A beleza concebida por Deus como sua mais antiga assinatura é então arranhada, como as marcas de uma faca numa superfície de madeira, de modo a não mais prestarmos atenção ao assinante, e nem a sua obra, mas apenas nos rabiscos que agora nela nos chamam a atenção. 

O medo deu ao homem esse desejo íntimo pelo horror, pelo feio, pois o homem ao olhar a beleza sente-se diante de Deus, e sente também a miséria de sua própria condição. Como não sentir isso? Olhando, não para Deus, mas para si mesmo, e ignorando até mesmo as marcas desse mesmo Deus que conservamos em nós, no nosso ser, e plasmando um novo deus, um deus feio, mas que não aponta nada de errado e nem nos convida a mudar e a imitar a sua própria beleza, antes disso, um deus que plasma apenas as suas palavras a nos dizer que nada precisa ser mudado, que tudo em nós já se encontra em plena realização. Mas quem de nós, senão Deus, pode dizer-se plenamente realizado? 

Daí o maravilhamento provocado em nós pela beleza. A beleza que nos faz desejar melhorar, crescer, imitar até atingir tão grau de perfeição que outros também queiram imitá-la. A Beleza não é outra coisa senão um convite à presença de Deus, a imitação d'Ele, por isso o homem que já não deseja Deus mas, antes disso, deseja fugir e esquecê-lo, foge também da beleza, criando para si outra beleza que não é outra coisa senão um retrato digno de sua própria imperfeição.