domingo, 9 de agosto de 2020

Velha amiga

Já se sentiu sem valor algum? Já sentiu que ninguém enxergar você, e que todos olham através de você, e que todos os outros são mais interessantes e têm mais valor do que você? Como se tudo o que fizesse nunca fosse o bastante ou bom o suficiente?

Pois eu nunca me senti diferente. Eu nunca me senti importante, sempre me senti como sendo a segunda opção ou, pior ainda, nem sequer sendo opção.

Por mais que me esforce até cair de exaustão, por mais que tente pensar em cada detalhe, me preocupar em fazer sempre a coisa certa, mesmo assim eu sinto não ser o bastante, e não consigo pensar em mim como nada além de um grande fracasso. Se eu sumisse hoje não faria falta alguma no mundo. 

Eu penso meu passado, tento vislumbrar um futuro, e mesmo quando me detenho agora, tudo parece um nada. Eu pareço um nada. Qualquer pessoa parece melhor do que eu. Vejo como os olhos brilham pelos outros, o quanto eu sou opaco aos seus olhos, o quanto mesmo nos meus dias mais felizes pareço cinza e triste aos olhos de todos. 

Por isso eu nunca sou a escolha de ninguém. Mesmo que eu esteja bem diante dos olhos dele, ele ainda não me vê... O que tem de tão errado comigo? Que defeito é esse que ninguém aponta mas que todos viram o olhar para que não vejam? Por que nunca sou eu? Por que nunca pode ser eu? Por que não eu? O que tem de tão errado assim comigo? Será que sou um monstro tão feio assim? Uma garatuja que a todos desperta apenas asco, que a todos desperta o desejo de fugir? 

E então fico com medo, de todos irem embora, de ficar sozinho porque todos encontraram alguém na vida, todos se acharam, todos têm alguém com quem partilhar suas dores, todos têm alguém para oferecer o ombro quando as coisas ficam difíceis, e eu o que tenho? Uma cama fria e lágrimas pesadas do pesadelo onde, depois de muito chamar, ninguém respondeu e eu fiquei só, com os joelhos ralados no meio da escuridão nebulosa. 

Eu faço todas essas perguntas a mim mesmo, como se não soubesse bem a resposta. Eu já havia visto, sabia e fingia não saber. Meu olhar no espelho revela toda vez que procuro com cuidado. Como você é patético, mendigando afeto dessa maneira. Eu tenho nojo de você, tenho vergonha de ser você! Preferia não existir, preferia a morte mais dolorosa a me olhar no espelho e ver criatura tão miserável quanto você!

Como eu odeio você! Como eu odeio tudo o que há em você! Como eu odeio cada fibra do seus ser, cada pedaço podre de carne, cada fio de cabelo imundo que você tanto tenta fazer parecer melhor. Mas nunca vai ser melhor! Seu jeito patético de pedir por afeto, seu jeito afetado de demonstrar carinho, sua incapacidade de encontrar alguém que te queira. Ninguém nunca vai querer você, porque você é um lixo, você é menos do que homem, você não merece amor, você não merece que lhe dirijam a palavra, você nem devia existir!

Esse é meu destino. Desejar aquilo que não se pode ter. Almejar o fogo dos deuses. Suspirar pelo cervo que fugiste, havendo me ferido. Amar quem não pode me amar mesmo se quisesse. Amar quem não pode ficar comigo. Amar sem nunca saber o que é a reciprocidade desse sentimento que dizem ser tão lindo, tão doce, mas que para mim tem o gosto amargo de estar sozinho, de nunca ser o objeto de desejo de alguém. 

E eu queria não saber disso. Queria não entender isso tão profundamente que me curvo ao peso de minha própria verdade, que me corta a carne como aço frio. Queria não ver. 

Por isso eu invejo os ignorantes, aqueles que ignoram a verdade, ou mesmo os que fogem dela tão bem que verdadeiramente conseguem viver como se ela não existisse. Eu não posso me dar esse luxo, a cada momento sinto os ferimentos que ela me causa em meus pulsos, como as grossas correntes que me prendem a um destino que não posso mudar, um fardo que não posso deixar de carregar. 

Mas eu não posso ignorar a verdade, não eu. Não quando ela é exatamente o mundo em que vivo, não quando ela está presente em cada instante da realidade que vivo, não quando ela é tão real quanto o chão que piso ou a mão que seguro, e que logo me solta para ir atrás de outra pessoa. 

Minha sina de poeta é falar do amor sem nunca tê-lo vivido. E depois de anos estou escrevendo sobre as mesmas coisas. Falar sobre o que nunca viveu, que propriedade tenho eu? Mas eu não me detenho no amor, que admito não saber do que se trata, me detenho na solidão, que conheço profundamente, como  a uma velha amiga que se deita comigo todas as noites. 

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