sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Cidade

É o início de uma noite de sexta bastante melancólica. Algumas pessoas parecem bastante animadas, e eu até entendo. A sexta-feira é uma libertação da rotina maçante e extremamente opressiva do trabalho semanal. Chefes imbecis, colegas falsos, um trabalho que muitas vezes não chega a lugar nenhum e você fica com a impressão de que seu trabalho é inútil pro mundo, e muitas vezes é mesmo. 

Então um dia que traga consigo a libertação de sair numa noite fresca como essa para encher a cara de cerveja ou vodka barata com os amigos é um momento de alento. Eu entendo. 

Aqui em casa as pessoas parecem animadas, mesmo quietinho no meu quarto eu ainda posso ouvir muitas vozes na sala aqui ao lado. Dó com baixo em Dó, Sol com baixo em Si, Lá com baixo em Lá, Lá com baixo em Sol. Alguém fala no viva-voz do celular, aliás essa é uma tecnologia que me irrita profundamente pois, afora os motoristas que precisam das mãos livres para dirigir e não bater de cara num outro carro ou em algum poste, não vejo necessidade de uma pessoa usar o viva-voz. Meu pai discorda veementemente e, exceto algumas vezes em que ele falava com alguma mulher com quem traía minha mãe, eu nunca o vi falando normalmente ao telefone. 

Nós moramos numa casa pequena. Na verdade não exatamente pequena, de tamanho normal, mas pequena pra quantidade de gente que tem aqui. Eu, mãe, pai, irmã, namorada da irmã, amiga, filha da amiga. É muito, acho que pra qualquer casa com menos de dois andares e alguma possibilidade de privacidade, ou de paz, ou de silêncio. 

A casa foi aumentada pelo antigo dono, a sala, que meus pais usam como quarto, tem cerâmica cinza, enquanto o resto tem um azulejo marrom já bastante desgastado. A cozinha, que faz parte da área que foi aumentada, não tem forro, de modo que faz mais calor lá do que no resto da casa. Minha mãe é a única pessoa que se obriga a ficar lá durante a tarde, cozinhando ou arrumando uma bagunça que nunca está arrumada porque ninguém parece colaborar pra isso, num calor horrendo do qual em sequer passo perto. Detesto calor.

A fachada daqui parece uma casinha de boneca. Alguém achou que seria interessante pintar as paredes de um creme e as janelas e portões de rosa choque. Aqui dentro reina a mais absoluta confusão, a sala apertada num corredor depois que meus pais se apossaram da sala de verdade com a desculpa de que têm coisas demais. Móveis em cima de móveis e não é possível ir de um quarto até a cozinha sem tropeçar em alguém e ser obrigado a pedir licença. Prefiro ficar no meu quarto. O banheiro, pequeno e escuro, o único da casa, é pouco pra tanta gente.

Aqui faz muito calor, na maior parte do ano faz calor e é bastante seco. Estamos no meio do cerrado. Durante alguns meses é frio no início da manhã e fim da tarde, congelando de madrugada, e bastante seco. Lábios rachados não importa a quantidade de balm labial que se use. Narizes sangram. Eu me irrito. 

Não gosto muito de sair de casa. Preguiça. E também uma boa dose de desencanto. O país todo, com raras exceções de algumas cidadezinhas que ainda conservam algum resquício de harmonia arquitetônica, é uma grande aberração visual. As paisagens naturais salvam, mas eu detesto mato, a menos que seja pra fazer sexo. De qualquer jeito, nada aqui faz sentido. As pessoas pintam as casas com cores aleatórias e nada parece dialogar com o todo. Aqui na rua tem uma casa amarelo gema e poucas casas a frente um grande muro bem mais alto do que todos os outros esconde uma hidromassagem onde o dono sempre faz algumas festas, daquelas que se escuta as vozes das mulheres de longe, aparentemente nenhum homem. 

Cada uma das esquinas dessa cidade são uma declaração da absoluta decadência cultural desse povo. Não que seja tudo cinza ou sépia, mas tudo parece coberto por uma camada de poeira que nunca desaparece não importa o quanto se limpe. Povo que acha que churrasco com sertanejo universitário estalando no volume máximo é o melhor que se há pra fazer da vida. Não conhecem nada para além disso. As pessoas que vão a teatros ou passeiam em parques são uma invenção dos filmes americanos. 

Nas avenidas comerciais a coisa é ainda pior. Placas desbotadas entre outras em cores chamativas e letras garrafais se espremem em qualquer lugar que tenha algum mínimo espaço. Salões de beleza com nomes clichês, farmácias (muitas farmácias, o que diz muito sobre o lugar) e uma distribuidora de bebidas a cada dois quarteirões, as vezes menos. A necessidade de fuga por meio do álcool é presente, real e recorrente. 

Poucas árvores, se tivesse algum poder sobre isso pelo menos encheria as ruas de Ipês, já que parece ser a única coisa que realmente floresce por essas bandas do centro-oeste. E eu sonhando com flores de cerejeira, com suas pétalas voando e caindo sobre a água de pequenos lagos e canais de água cortando a cidade, de onde podemos ver o pôr do sol brilhando no espelho abaixo de pequenas pontes ligando um bairro a outro. Bom, tem muitos buracos com água, e todo ano a dengue leva muitas pessoas pro hospital.

Quase todo mundo se conhece, de um jeito ou de outro, e parece que todos estão ligados de algum modo. Tem algumas pessoas famosas, aliás, com muitos seguidores nas redes sociais ou que cumprimentam alguém na rua a cada três metros. Quase todos na minha idade parecem já ter namorado, e a troca de casais é algo recorrente. Todo mundo já se pegou e não me impressiona que essas pessoas achem que fazer sexo é a outra melhor coisa que se tem pra fazer na vida por essas bandas. E é bem provável que seja mesmo. Ah, já ia me esquecendo, além de bares e igrejas protestantes também alguns campos sintéticos, onde meninos bonitos correm suados e ofegantes em shorts curtos e colados no meio de meninos não tão bonitos assim. 

Algumas pessoas já saíram do país, é claro. Não consigo entender como alguém pode visitar a Europa e não morrer em depressão ao voltar pra cá. Nunca saí daqui e a depressão é minha única realidade diária, desde o amanhecer até quando eu me deito.

Não sei por qual razão resolvi dar esse breve retrato de minha cidade, e de minha casa. Influência do livro que estou lendo, Todos nós amávamos caubóis, que recebi de uma das assinaturas de clube do livro que eu tenho. Não conheço mais ninguém que tenha lido. 

Na quietude do meu quartinho, tentando ignorar o volume exagerado da televisão e das vozes que tentam falar mais alto do que a televisão, eu escuto o álbum de um cantor tailandês que eu nunca tinha ouvido falar, baixando toda a discografia pelo simples fato de que ela estava disponível quando entrei no blog de compartilhamento de arquivos atrás de alguma coisa nova pra ouvir. Embrulhado, com meias nos pés, eu acho que vou tentar terminar o livro, e quem sabe entender o significado por trás da jornada das personagens e, quem sabe, o significado para essas palavras ou para a minha vida. É, talvez não chegue a tanto.

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